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Quilombo do Grotão: uma história de resistência negra e luta por terra em Niterói

Por Gabriel Mansur
| aseguirniteroi@gmail.com

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Quilombo é reconhecido pela Fundação Palmares e perpetua cultura africana na cidade; história começou nos anos 20
Renatão e seus familiares no Quilombo do Grotão. Foto: leitor
Renatão e seus familiares no Quilombo do Grotão. Foto: leitor

Era 20 de novembro de 1695, há 327 anos, quando Zumbi dos Palmares, símbolo da luta dos africanos contra sua escravização no contexto do Brasil colonial, teve sua mão cortada e sua cabeça decepada e levada para Recife, onde ficou em exposição em praça pública. Embora morto, Zumbi vive como legado de resistência ao povo negro. Legado este que perdura por séculos a fio e tem sua vertente em Niterói: o Quilombo do Grotão.

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Localizado no bairro do Engenho do Mato, em meio ao Parque Estadual da Serra da Tiririca, unidade de conservação de proteção ambiental, a área quilombola resiste por ali como valorização dos saberes e práticas ancestrais do povo negro há 66 anos.  No alto de seus quase dois metros de altura, o líder comunitário do local, José Renato Gomes da Costa, o Renatão do Quilombo, diz que o espaço está consolidado como território de cultivo das raízes da cultura afro-brasileira no estado.

Faixa em homenagem a Zumbi dos Palmares. Foto: Gabriel Mansur

– Imagina em 1600, quando havia apenas escravidão, você pensar em ser livre. Você fugir de uma fazenda e montar um exército de 22 mil pessoas com o único objetivo de se livrar das amarras da escravidão. Não tem como você não ficar emocionado e satisfeito em ouvir essa história. Por isso, o Zumbi sempre será símbolo de resistência para quem luta por igualdade. Para essa luta ter intensidade, a gente começou a tratar da cultura afro-brasileira – ressaltou.

A história

Há cerca de um século, nos anos de 1920, Manoel Bonfim e sua esposa, Maria Vicência, descendentes de negros escravizados no estado do Sergipe, deixaram o Nordeste e cruzaram o país em cima de um pau-de-arara para trabalhar na Fazenda Engenho do Mato, de propriedade de Irene Lopes Sodré, responsável pela produção em larga escala de farinha, banana prata (até 3 mil quilos por mês) e hortifrutigranjeiros.

Foi depois de 28 anos de lavoura, principalmente em bananais, que a história da família de Renato com a terra que hoje é o Quilombo do Grotão começou de fato a ser escrita. Na década de 50, o negócio faliu. A partir daí, Manoel e Maria ganharam, como indenização, cerca de dois alqueires e meio de terra, além de duas mil mudas de banana para recomeçar a vida.

A entrada do Quilombo do Grotão. Foto: leitor

A vida da família Bonfim transcorreu com normalidade até 1956, quando a especulação imobiliária começou a assolar pelas terras do bairro, nomeado atualmente como Engenho do Mato, homônimo à ex-fazenda. Nos anos de 1960, o Estado precisou intervir para dividir as terras e assegurar que a família de Manoel e Maria permanecesse com a sua área.

– Meu avô veio de Sergipe para trabalhar aqui. A escravidão havia sido abolida há pouco, mas as condições de vida não mudaram muito. Minha avó contava muita história da escravidão quando morava no Sergipe. Ela tomava conta dos filhos dos senhores de engenho. Então eles vieram Trabalhar para ter onde morar, e ainda pagavam parte da produção que conseguiam por fora. Quando a propriedade fechou, eles ficaram na terra. Eram 30 famílias. Descendentes de apenas 15 delas continuam aqui – disse.

A briga pela terra

Depois de resistir por 55 anos, o Quilombo do Grotão passou a travar uma dura batalha pelo território. Com a demarcação do Parque Estadual da Serra da Tiririca (Peset) pelo Instituto Estadual do Ambiente (INEA), em 1991, para a proteção ambiental, um plano de manejo elaborado em 2003 previa a remoção dos residentes dentro da área.

Diante desse cenário, os moradores, liderados por Renatão, decidiram se mobilizar. Com a intenção de dar visibilidade àquela ameaça e arrecadar verbas para a fundação de uma associação própria, eles decidiram organizar uma programação cultural no local, que atraísse a atenção pública.

Feijoadas são servidas para angariar fundos na comunidade. Foto: leitor

– A gente vem tocando nossa luta de várias formas, como a defesa de território, porque a gente teve um momento em que um projeto de lei queria desapropriar todos os moradores da Serra da Tiririca. Houve uma reação, que dura até hoje. Iniciaram reuniões que nós não podíamos participar porque não tínhamos entidades representativas, associação, e para a gente conseguir participar e fazer parte do Conselho do Parque, nós começamos a fazer algumas feijoadas na lenha para arrecadar dinheiro e fazermos a nossa associação – explicou.

Reconhecimento da Fundação Palmares

A ameaça de desapropriação foi parcialmente sanada com uma emenda à lei estadual de criação do parque. Além disso, também o Decreto Federal nº 4887, de 2003, fortaleceu a comunidade ao garantir o reconhecimento e a delimitação da propriedade – pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) – de toda terra ocupada por remanescentes de quilombolas, segundo sua trajetória.

Nesta época, oficializou-se seu nome, inspirado nas grandes grotas d’água existentes na subida ao local.

Hoje, na sexta geração da família Bonfim, o Quilombo do Grotão consolidou-se como celeiro da resistência da cultura negra na cidade. Com cerca de 60 pessoas, o local foi reconhecido em 2016 pela Fundação Cultural Palmares, órgão vinculado ao Ministério da Cultura voltado para a preservação da cultura afrodescendente. A Fundação certificou a autenticidade da comunidade tradicional que se autodefine como quilombola.

– Ultimamente, passamos por um período difícil, sem vontade política para quilombola, para indígena, nada favorável para os povos originários.  Só de luta neste sentido temos 30 anos. Hoje não tem mais o risco de desapropriação, porque o Marcelo Freixo (PSB), durante seu mandato de deputado federal, fez uma emenda parlamentar que nos favoreceu. Toda pessoa que mora há mais de 50 anos na Serra da Tiririca não será mais desapropriada. Mas você não tem tranquilidade – ilustrou.

Sem título de propriedade

Desde a promulgação da Constituição Federal, em 1988, é assegurado aos quilombolas o direito à terra. As comunidades formadas e nas quais hoje moram descendentes de pessoas escravizadas têm direito à titulação de suas propriedades. Apesar de reconhecida pela Fundação Palmares, o Quilombo do Grotão nunca teve a documentação regularizada.

A comunidade, aliás, não é a única sem titulação no país. De acordo com o observatório de Terras Quilombolas da Comissão Pró-índio de São Paulo, atualmente são seis mil comunidades quilombolas no país, mas apenas 136 terras foram tituladas, sendo 18 delas pelo Incra.

– A gente não tem título de terra, e essa é a nossa grande luta. Fomos certificados pela Fundação Palmares, demos entrada no INCRA, mas nem sequer abriram a nossa pasta. E já tem seis anos isso. Continuamos tentando e não estamos sozinhos nessa luta, Nossa comunidade, o centro de antropologia da UFF, e também políticos, todos tentando fazer com que o governo municipal reconheça nossa comunidade. A Prefeitura pediu para a UFF montar uma equipe de especialistas para nos ajudar. Esse trabalho, que era para estar sendo comemorado no dia 20, ainda não deu certo – concluiu.

Ponto de cultura afro-brasileira

O Quilombo do Grotão também se tornou Ponto de Cultura, pelo programa Rede Cultura Viva de Niterói, que traça um mapeamento de toda a produção cultural da periferia do município, com o objetivo de aumentar a interlocução entre a prefeitura e as ações realizadas em nível local.

Quilombo do Grotão promove aulas em prol da cultura afro-brasileira. Foto: leitor

Atualmente, o Quilombo do Grotão promove atividades que vão desde oficinas com ervas medicinais para a produção de sabonetes, até aulas de percussão, capoeira e artesanato. O Grotão se tornou um espaço de referência também para os amantes da tradicional feijoada à lenha e da roda de samba “raiz”, como é orgulhosamente chamada.

O dinheiro dos eventos é revertido em obras de saneamento, sinalização, água, eletricidade e sustentabilidade. A preservação do meio ambiente, aliás, é objeto de grande defesa dos moradores, conscientes de sua origem na agricultura e da relação direta da natureza com uma vida de qualidade.

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– Um resultado imediato em decorrência das nossas ações é a minha sobrinha, de 30 anos. Ela hoje é musicista. Ela iniciou toda a carreira dela, essa vontade de tocar instrumentos aqui, por meio da roda de samba. Ela pedia um cavaco para o pai, por exemplo, para tentar aprender. Hoje, com a música, ela conhece a Europa, conhece a Ásia, conhece o mundo, isso por conta do cavaquinho que ela toca. Nós fizemos uma roda de samba aqui, que dura até hoje, gratuita. Chamamos de Samba da Comunidade. Hoje esse samba tem 19 anos e se mantém – completou.

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