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Apesar do discurso moralista e da mão de ferro para controlar as mudanças nos costumes, a ditadura militar financiou a construção e a consolidação dos motéis, emblemático espaço para a prática de sexo livre no país, que se espalharam pelo território a partir de 1968.
A liberação de recursos públicos e os incentivos fiscais ocorreram nos governos mais repressivos do regime, dos generais Artur da Costa e Silva, que impôs o AI-5, e Emílio Garrastazu Médici, no qual a tortura de opositores se institucionalizou como prática de Estado. Se no espaço público, os generais proibiam de tudo – da nudez ao sexo, de letras de canções românticas a discurso de paraninfo em formatura, do palavrão aos cabelos longos -, nos motéis tudo era permitido. Adultério, ménage a trois, orgias, homossexualidade, consumo de drogas ilícitas e de pornografia eram tolerados desde que não comprometessem a discrição necessária ao negócio.
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Os jornalistas Murilo Fiuza e Ciça Guedes abordam os meandros dessa história no livro “Motéis e o poder: Da perseguição pelos agentes de segurança ao patrocínio pela ditadura militar”, o terceiro de autoria da dupla. Quem assina a capa é a niteroiense Marina Erthal. O lançamento será nesta quarta-feira (15) na Livraria da Travessa, em Icaraí. Além da noite de autógrafos, será realizado também um bate-papo com os autores às 18h.
Em conversa com o A Seguir: Niterói, os autores do livro contam como foi o processo de se debruçar em um tema que ainda é considerado, por parte da sociedade, como um tabu e que ainda está muito atrelado a uma imagem de imoralidade e de infidelidade. Ao desconstruir estereótipos, os autores imprimem um olhar repaginado sobre os motéis. No total, foram 6 anos de pesquisa, entre muitas entrevistas, consultas a material de imprensa da época, documentos, Biblioteca Nacional, Arquivo Nacional, entre outros.
– O motel é um lugar de libertação, onde as pessoas podem ser o que querem ser, desde que se pague, não infrinja nenhuma lei e não cometa nenhum crime. No livro, a gente condena essa moral infantil. Estou animada para o lançamento. Temos muitos amigos em Niterói, muitos jornalistas – sublinhou a autora do livro, Ciça Guedes.
A obra expõe as contradições do discurso da “defesa da moral e dos bons costumes da família brasileira”, utilizado pelos militares para angariar o apoio de parte da sociedade brasileira ao regime – a mesma estratégia, aliás, adotada por Jair Bolsonaro na sua campanha eleitoral à Presidência da República, em 2018.
– A percepção das pessoas sobre o motel fala muito sobre a nossa característica como povo, né? Eu costumo dizer que a gente tem muito uma moral de vitrine. A sociedade brasileira vive muito de aparência. A gente finge que não acontece quando é conveniente e isso é muito assustador. Essa coisa dos militares em defesa da moral, dos bons costumes… Todo mundo fingia que não percebia o motel, até que acontece um crime e as pessoas levantavam aquele discurso de sempre, da perversidade. Isso se aplica a várias situações que temos na nossa sociedade – destacou.
“Delegacia de costume” e os olhos de jacaré, em Niterói
Havia antigamente as chamadas delegacias de costume, criadas pelos franceses para controlar e reprimir questões que envolviam prostituição, jogos de azar e afins. Elas eram uma forma de manter a moral e a ordem da sociedade, como verdadeiros antros de corrupção.
– Os policiais iam lá e tiravam dinheiro dos bicheiros, de hotéis suspeitos. Isso em Niterói, no meio dos anos 60. Um delegado de costume inventou os olhos de jacaré. Ele ficava incomodado com os casais que iam para as praças à noite para namorar, então ele colocava uns seis guardinhas para ficarem vigiando e os policiais ficavam parados olhando com aqueles olhos de jacaré, até que os casais ficavam sem graça e iam embora. Depois, os policiais comemoravam e diziam que finalmente a cidade tinha se tornado bucólica, do interior, que respeita a família.
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O turismo
O que acontece é que o dinheiro público jorrou para esses estabelecimentos inicialmente de forma involuntária. O governo identificou o turismo como uma das indústrias com potencial para alavancar o crescimento econômico do Brasil. Criou-se, então, a Empresa Brasileira de Turismo (Embratur), em 1966, e foi desenhado um plano para dotar o país de infraestrutura hoteleira. A ideia era também incentivar a nascente indústria automobilística, que se instalara no país no início da gestão de Juscelino Kubitschek. Os militares incluíram o modelo norte-americano do “motorist’s hotel” (origem da palavra motel) entre os meios de hospedagem que receberiam financiamentos e incentivos.
Ciça traça um paralelo com os dias atuais:
– Por que o governo não fiscalizava o dinheiro que era destinado aos motéis? Porque estava sendo destinado a pessoas que interessavam a eles. É o tal do financiamento secreto hoje no Brasil. Por que eles não mostram para onde foram destinadas as verbas nesse orçamento paralelo do Congresso?
Mas foi entre os anos de 1968 e 1974 que os motéis se espalharam pelas maiores capitais e, depois, para as cidades de porte médio, financiados com recursos públicos graças à falta de fiscalização. Com base em entrevistas e extensa pesquisa, Ciça e Murilo revelam as relações íntimas entre militares e motéis. Um dos exemplos é o do Motel Dunas, ainda em operação na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio. Sua inauguração, numa noite de julho de 1973, contou com a presença do general João Batista de Oliveira Figueiredo, então chefe do Gabinete Militar de Médici, que se tornaria, 12 anos depois, o último presidente da ditadura militar. Os filhos do general eram amigos do filho de um dos sócios do Dunas, e chegaram a ter negócios em comum.
De acordo com o Anuário Estatístico da Embratur, de 1979, constavam 352 motéis registrados no órgão em 165 municípios espalhados pelo Brasil. Só no Rio, eram 50 estabelecimentos em 15 municípios. Era muito motel para pouca estrada.
– Os motéis surgem num contexto em que os militares queriam desenvolver o turismo no país, massivamente. Em 1966, foi criada a Embratur e, junto dela, o Conselho Nacional de Turismo, o qual distribuía recursos públicos por meio de incentivos fiscais, isenções, impostos, etc. Esse dinheiro, que não tinha controle, foi atropelado pela revolução sexual. Os motéis, de alguma maneira, serviram para as mulheres exercerem plenamente a sua sexualidade. Mas, apesar dessa passagem do tempo, o motel ainda é visto como um lugar de traição, de imoralidade. Isso ainda é muito estigmatizado – ressalta.
E completa: – O livro é um passeio pela história dos costumes no Brasil, tendo como gancho os motéis. É uma grande viagem. O grande lance foi amarrar essa história, que atravessa gerações. O jeito foi fazer essa conexão através dos personagens. Cada capítulo inicia com a história de um personagem – pontuou o autor do livro, Murilo Fiuza.
Em entrevistas aos autores antes de falecer, em setembro de 2020, o hoteleiro Eraldo Alves Cruz, que integrou o Conselho Nacional de Turismo (CNTur), órgão responsável por decidir quais empreendimentos seriam beneficiados com recursos públicos, confirmou que empresários recorreram ao financiamento para investir no sexo.
A história começou a mudar após a repercussão de um crime ocorrido no Vip’s, o mais famoso e caro motel do Rio de Janeiro, no ano de 1975. A atriz Leila Cravo foi encontrada nua e inconsciente no asfalto da Avenida Niemeyer. Ela sobreviveu e a polícia concluiu que foi uma tentativa de suicídio, apesar de todas as evidências levarem a um caso clássico de violência contra a mulher.
O crime rompeu com a discrição necessária ao negócio e, coincidência ou não, em 13 de novembro de 1975, dois dias depois do que hoje seria uma tentativa de feminicídio contra a atriz, o CNTur publicou a resolução 748, determinando que os motéis deveriam se instalar fora dos centros urbanos e manter “a destinação turística”. Era o reconhecimento oficial de que o regime havia falhado na fiscalização do dinheiro público destinado a promover a infraestrutura para o turismo. Só em 1983, contudo, que os motéis foram excluídos dos meios de hospedagem.
Sobre os autores
Ciça Guedes é jornalista desde 1988. Trabalhou nos jornais O Dia, Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil e na GloboNews. Atualmente, está em O Globo. É também graduada em Economia.
Murilo Fiuza de Melo é jornalista desde 1991. Foi repórter do Jornal do Brasil, do Estado de S. Paulo e da Folha de S. Paulo. Formou-se também em História. Desde 2006, trabalha em assessoria de imprensa.
Juntos, publicaram em 2014 “O caso dos nove chineses” (Editora Objetiva), que revelou o primeiro escândalo internacional de violação dos direitos humanos da ditadura militar brasileira, e, em 2019, “Todas as mulheres dos presidentes” (Editora Máquina de Livros), que conta a história pouco conhecida das primeiras-damas do Brasil desde o início da República.
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