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Lupulinário

Por Sônia Apolinário

Sônia Apolinário é jornalista tendo trabalhado nos principais jornais do país, sempre na área de Cultura. Também beer sommelière, quando o assunto é cerveja e afins, ela se transforma na Lupulinário.
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Mulher, cerveja e bruxaria

alewife corte

Na coluna intitulada “AcervA Niterói será presidida pela primeira vez por uma cervejeirA”, a presidenta Fernanda Marques afirma que “a produção de cerveja caseira é um lugar nosso (das mulheres) por direito histórico.”

Que direito histórico é esse a que ela se referiu?

Voltando no tempo

Acredita-se que a história da cerveja tenha surgido com os povos Sumérios, há 8 mil anos a.C., na região da antiga Mesopotâmia, atual território iraquiano. Eram terras férteis, que contribuíram com o desenvolvimento da agricultura, favorecendo os então povos nômades a se tornarem sedentários. Foi o começo de cultivo de cereais como cevada, trigo e sorgo.

Desde aquela época, passando pelos vikings, egípcios, gregos e romanos, até a Idade Média europeia, a produção de cerveja era mais uma das atividades domésticas, de responsabilidade das mulheres recatadas e do lar. Da mesma forma que a produção do pão. Na verdade, a cerveja era chamada de pão líquido e fazia parte da dieta das pessoas comuns, principalmente, no desjejum.

Naquela época, consumir cerveja era mais seguro do que água. Afinal, a água não era tratada e transmitia doenças. Na produção de cerveja, a água passa por um processo de fervura que, hoje sabemos, inibe a proliferação de microorganismos causadores de doenças.

As mulheres usavam caldeirões para fazer a cerveja e o mosto era misturado com a ajuda de grandes pás. Aos cereais, eram juntadas as mais diferentes ervas, que em seu conjunto se chamava Gruit. Somente muito tempo depois é que as ervas foram substituídas pelo lúpulo – cujas propriedades foram, inclusive, descobertas por uma mulher, a freira alemã Hildegard von Bingen.

Leia mais: Niterói tem uma única mulher à frente de fábrica cervejeira

Bruxas

Na Inglaterra da Idade Média, as produtoras de cerveja eram chamadas Alewifes (esposas cervejeiras). As mais talentosas, chamaram a atenção para suas bebidas e passaram a vender o excedente da quantidade feita para o consumo doméstico. Na rua, elas usavam um grande chapéu pontudo. Para avisar que havia cerveja disponível para venda, na casa, elas colocavam uma varinha ou uma vassoura na porta.

Além das mulheres, somente monges produziam cerveja, naquela época, nos seus monastérios e algum excedente também era vendido.

Na Alemanha, lucrar com a produção e venda de cerveja foi um negócio da Igreja que, na Idade Média, chamou a atenção de nobres e burgueses. E as primeiras cervejarias comerciais foram criadas. Na Inglaterra, a Revolução Industrial também facilitou o aparecimento de grandes cervejarias, deixando a produção das Alewifes obsoletas.

Porém, não se mudam hábitos seculares assim tão facilmente. Era preciso desmoralizar definitivamente as antigas produtoras de cerveja.

Reparou os elementos? Chapéu pontudo, caldeirão, grandes pás, ervas – qualquer semelhança com a imagem que ficou associada às bruxas e suas poções mágicas não será mera coincidência. Ah, ainda tem os gatos, animais associados a elas: reza a lenda que as Alewifes se cercavam de gatos para que eles não deixassem os ratos se fartarem nos sacos de cereais.

O consumo de cerveja em cerimônias religiosas também era uma prática desde que o mundo é mundo. Afinal, não se sabia sobre a produção do álcool no processo de fabricação da bebida. E seu poder inebriante também sempre foi associado a uma certa magia.

Em plena época das inquisições religiosas, acusar uma mulher de bruxaria era o suficiente para eliminá-la, literalmente. Os homens e a Igreja se aproveitaram dessa “oportunidade” para, digamos, diminuir a concorrência na produção de cerveja.

Depois, a propaganda se encarregou de dar novas funções para as mulheres, na chamada Idade Moderna. E ser produtora de cerveja, definitivamente, não estava na lista de afazeres da nova versão de mulher recatada e do lar.

Daí para frente, a história é conhecida. É por isso que o retorno das mulheres à frente dos caldeirões, atualizados em forma de panelas elétricas, inclusive, significa o resgate de um direito histórico, como disse a presidenta da AcervA.

 

Ilustração: Mother Louse, uma famosa Alewife de Oxford (UK) no século 17, por David Loggan, via Wikipedia

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