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Na próxima quarta-feira, 12 de fevereiro, começa um novo capítulo na história da navegação entre os municípios do Rio e de Niterói. Nessa data, entra em cena o Consórcio Barcas Rio, novo operador de um serviço que completará 190 anos em outubro.
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Serviço este que ficou na mão de empresas privadas, na maior parte do tempo. Porém, atuando como monopólios, sem precisar enfrentar qualquer tipo de concorrência. O ponto de partida dessa história, no entanto, foi “estatal”. Um decreto do tempo do Império criou a primeira companhia que viria a operar o serviço. Além disso, houve períodos em que o poder público teve que chamar para si a responsabilidade da operação diante de uma situação também constante, em 190 anos: o descontentamento da população com o serviço.
Nessa nova história que começa, sai a CCR Barcas. Entra o consórcio vencedor da licitação promovida pela Secretaria de Estado de Transporte e Mobilidade Urbana (SETRAM), em novembro de 2024, liderado pela empresa paulista BK Consultoria. Desde 2016, a CCR Barcas tenta pular fora do negócio por ter deixado de ser lucrativo.
De 2019 até 2023, as barcas que fazem a travessia da Baía de Guanabara perderam cerca de meio milhão de passageiros. De acordo com uma pesquisa do Programa de Engenharia de Transportes (PET) da Coppe/UFRJ, o serviço aquaviário transportou 1.187.989 pessoas em 2019; em 2023, o número de passageiros estava em 747.876, o que representa uma queda de 440.113 passageiros ou 37% no movimento. Atualmente, a travessia entre Rio e Niterói é feita por cerca de 40 mil pessoas por dia.
Em 2016, a CCR Barcas informou ter obtido um registrou recorde no número de usuários na linha Praça XV-Praça Arariboia (Rio-Niterói), em fins de semanas. Foi nos dias 13 e 14 de agosto, quando 139.651 pessoas fizeram uso do transporte aquaviário para se locomoverem entre as duas cidades, um aumento de 458% em relação à média de sábados e domingos. Na época, o Rio sediava uma Olimpíada.
A navegação entre Rio e Niterói existe desde outubro de 1835; entre o Rio e Paquetá, desde 1877. Porém, muito antes disso, canoas indígenas já faziam a ligação entre os dois lados da Baía de Guanabara. Eram pequenas embarcações a remo ou a vela, chamadas de faluas, que faziam, principalmente, o transporte de víveres e de pessoas, entre os povoados.
Em 1779, cerca de 20 lanchas e 10 saveiros realizavam viagens frequentes entre o então Saco da Boa Viagem (atual região das praias das Flechas, Itapuca e Icaraí) e a capital colonial, o Rio de Janeiro.
O lado de cá da Baía de Guanabara ainda não se chamava Niterói, mas já tinha vários locais de atracação: dois em Mata-Porcos (Icaraí), dois em Maruí, sete na Vala (São Lourenço) e três no Barreto.
Em 1817, o Governo Real concedeu as primeiras permissões para quem quisesse explorar a então moderna navegação a vapor na Baía. No entanto, não houve interessados no negócio.
Esse serviço só foi implantado 17 anos depois, quando a Vila Real de Praia Grande foi elevada à condição de município e passou a ser a capital da Província do Rio de Janeiro com o nome de Niterói. Coube à empresa particular Companhia de Navegação de Nictheroy inaugurar a exploração do transporte aquaviário entre a nova capital e a então Corte Imperial.
A Companhia de Navegação de Nictheroy foi criada por decreto em 14 de outubro de 1835. A primeira embarcação a fazer a travessia foi o vapor inglês “Especuladora” que, juntamente com as barcas “Nictheroyense” e “Praiagrandense”, formavam a totalidade da frota.
Cada vapor tinha capacidade para 250 passageiros, que atravessavam a Baía entre o Cais Pharoux (atual Praça XV de Novembro) e a Praça Martim Afonso (atual Praça Arariboia), em 30 minutos de viagem. Na época, a tarifa custava 100 réis nos dias úteis (o correspondente a R$ 2,50) e 160 réis aos domingos e feriados. Após as 18 horas, todas as tarifas subiam para 320 réis. Os escravos pagavam 80 réis nos dias normais e 100 réis após as 18 horas.
Em 1840, foi fundada a Companhia Inhomerim, que passou a explorar o serviço de transporte marítimo entre o Porto das Caixas, em Itaboraí, e o Porto de Estrela (localidade no atual município de Magé).
Para aumentar a capacidade de transporte entre o Rio de Janeiro e Niterói, o Governo Imperial autorizou, mais uma vez por decreto, em 1851, a nova empresa a concorrer com a Sociedade Navegação de Nictheroy. No ano seguinte, elas se fundiram e surgiu a Companhia Nictheroy & Inhomerim.
A nova empresa criou novas linhas ligando o Largo do Paço até a Praia de Botafogo (na altura da Rua São Clemente) e os bairros da Ilha do Governador, Paquetá, Catete e Inhaúma. A frota era formada por nove embarcações.
Em 1853, o empresário norte-americano Clinton Van Tuyl chegou ao Rio de Janeiro com um plano: trazer embarcações semelhantes às balsas do Rio Mississipi para fazer a travessia Rio Niterói. Eram consideradas mais modernas que as utilizadas pela Companhia Nictheroy & Inhomerim, que detinha a exclusividade na exploração do serviço até 1861. Na época, a população não estava nada satisfeita com a empresa que operava o serviço.
Outro norte-americano, porém, se meteu no negócio e Thomas Rainey foi quem conseguiu o direito de fundar uma nova empresa de transporte aquaviário na Baía da Guanabara.
Os dois gringos brigaram por cinco anos até que se uniram. Assim, em 1862, a Companhia Ferry começou a operar. Com capacidade para transportar público e veículos, ganhou a preferência dos usuários. Resultado: três anos depois, a Nictheroy & Inhomerim faliu e saiu de cena.
À inauguração do novo serviço aquaviário pela Companhia Ferry compareceram Dom Pedro II, acompanhado de sua Família Imperial e um séquito de 1 600 pessoas.
Logo depois que a Nictheroy & Inhomerim faliu, a Ferry aumentou suas tarifas e mexeu na sua tabela de horários, que cessava às 22 horas. E os usuários voltaram a reclamar do serviço.
A Ferry atuou sozinha durante oito anos. Até que, em 1870, apareceu um concorrente. O alemão Carlos Fleiuss começou a operar a travessia com a sua Companhia Barcas Fluminenses. À inauguração do novo serviço aquaviário compareceram Dom Pedro II, acompanhado de sua Família Imperial e um séquito de 1 600 pessoas.
A concorrência resultou em redução de tarifas, o que aumentou o número de passageiros. A rivalidade entre as empresas, porém, acabou se tornando uma dor de cabeça para as autoridades por conta da rivalidade dos mestres de navegação de ambas. Era comum apostarem corridas pela Baía e praticarem manobras imprudentes durante as viagens.
A Companhia Ferry existiu até o final do Império, tendo, anos antes, sido vendida ao comendador Antônio Martins Lage. E, em 1877, após dificuldades financeiras, a Barcas Fluminenses foi incorporada pela própria Ferry que, assim, recuperou seu monopólio.
Às vésperas da Proclamação da República, em 1 de outubro de 1889, a Companhia Ferry se fundiu com a Empresa de Obras Públicas no Brasil (EOPB), responsável pelo abastecimento de água e pelo serviço de carris (transporte coletivo), em Niterói. Foi criada, então, a Companhia Cantareira e Viação Fluminense (CCVF), com onze embarcações batizadas como: Primeira; Segunda; Terceira; Quarta; Quinta; Sexta; Sábado; Dona Isabel e mais três que pertenciam à antiga EOPB.
Em 1902, a companhia foi remodelada, passando a ser administrada pelo capitalista luso-brasileiro Visconde de Moraes que, em 1908, se associou aos britânicos proprietários da Leopoldina Railway. Em julho daquele mesmo ano, foi inaugurada uma nova estação de passageiros em Niterói, a Estação Cantareira.
A partir da década de 1960, as barcas entre Rio e Niterói transportavam mais de 180 mil passageiros, por dia. A inauguração da Ponte Rio-Niterói, em 4 de março de 1974, mudou esse quadro. Quase que de imediato, provocou a extinção do sistema de balsas para travessia de automóveis e caminhões, que era explorado por companhias particulares que não haviam sido afetadas pela estatização.
Em 1977, como parte do processo de fusão entre os Estados do Rio de Janeiro e a antiga Guanabara, o Governo Federal transferiu o serviço de barcas para a esfera estadual. A então Serviços de Transporte da Baía da Guanabara (STBG) virou Companhia de Navegação do Estado do Rio de Janeiro (CONERJ). Com viagens superlotadas e sucateamento das embarcações, a CONERJ recebia constantes críticas da população.
Em 1998, o governador Marcelo Alencar privatizou a CONERJ. Assumiu a operação um consórcio de empresas do qual fazia parte a Auto Viação 1001. A CONERJ, então, virou Barcas S/A. A operação na linha Rio–Niterói passou a contar com oito embarcações ao invés das três anteriores. Em 2006, entraram em cena os primeiros catamarãs sociais, o “Gávea I” e o “Ingá II”.
Em 2012, 80% do capital da Barcas S/A foram adquiridos pelo Grupo CCR, que rebatizou a empresa com o nome de CCR Barcas. A partir de 2015, a empresa começou a sinalizar queda na arrecadação. No ano seguinte, manifestou, pela primeira vez, falta de interesse em seguir no negócio.
Em 23 de maio de 1844, ocorreu o primeiro acidente grave relacionado com o transporte aquaviário, na Baía de Guanabara. A pioneira “Especuladora” explodiu após um problema com sua caldeira. Cerca de 70 passageiros morreram e outros 50 ficaram feridos.
Em 6 de janeiro de 1895, ocorreu o segundo, quando uma instalação elétrica mal feita incendiou a “Terceira”, matando cerca de 200 pessoas.
Em 26 de outubro de 1915, nova tragédia: a barca “Sétima” naufragou nas proximidades da Ponta d’Areia, após se chocar contra uma rocha, matando 28 passageiros, quase todos alunos do Colégio Salesiano de Niterói em excursão.
Em dezembro de 1925, o preço das passagens aumentou para 600 réis (ida e volta). A população, revoltada, vandalizou a estação de Niterói e depredou embarcações. As barcas “Nichtheroy”, “Sétima” e “Gragoatá” foram bastante danificadas na ocasião.
Em 1959, houve a maior de todas as revoltas populares contra as barcas. Populares se voltaram contra a família Carreteiro, proprietária da CCVF (Companhia Cantareira e Viação Fluminense) e também das companhias Frota Carioca e Frota Barreto. Primeiro, foi incendiada a estação de Niterói. Depois, os populares se voltaram contra as residências dos acionistas das empresas. Com ajuda do Exército, a polícia enfrentou os manifestantes. A revolta deixou seis mortos e 118 feridos.
A Revolta das Barcas, como o episódio ficou conhecido, acabou por provocar a estatização do serviço. O Governo Federal cassou a concessão e disponibilizou embarcações da Marinha para a travessia dos passageiros.
Em 1962, através do decreto Nº 825, foi criada a Serviços de Transporte da Baía da Guanabara (STBG), vinculada ao Ministério da Viação e Obras Públicas, que encampou as embarcações pertencentes às companhias Frota Carioca, CCVF e Frota Barreto. Naquele mesmo ano, o Arsenal de Marinha iniciou o projeto de novas lanchas – embarcações monocasco com capacidade para dois mil passageiros.
Até 1965, seriam construídas as barcas “Vital Brazil”, “Santa Rosa”, “Martim Afonso”, “Visconde de Morais”, “Paquetá” e “Icaraí”. As quatro lanchas oriundas da antiga Frota Barreto continuaram em uso por mais alguns anos: “Alcântara”, “Itapuca”, “Fonseca” e “Ingá”. Estas lanchas tinham capacidade para 500 passageiros.
As quatro lanchas de mil lugares da antiga “Frota Carioca” também foram utilizadas pela STGB: “Lagoa”, “Neves”, “Maracanan” e “Itaipu”. Da antiga CCVF, foram mantidas as velhas barcas a vapor “Terceira” e “Guanabara”, com mais de 50 anos de uso, e também as lanchas “Gávea” e “Leblon”, com capacidade para 800 passageiros.
A CCR Barcas, ao se despedir da operação, mantinha uma frota de 16 embarcações, sendo que cinco pertencem ao governo do estado, que estavam cedidas à empresa; além de cinco estações de embarque e desembarque de passageiros. Em relação às embarcações, 11 foram adquiridas à época da privatização da antiga Companhia de Navegação do Estado do Rio de Janeiro (Conerj), no fim dos anos 1990.
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