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O que era para ser uma viagem de comemoração de aniversário se tornou um plano sequência digno de filme de terror, mas com uma reviravolta de tirar o fôlego e um final feliz, dentro das condições possíveis. O médico Leandro Crespo, 54 anos, chefe da cirurgia do Hospital Icaraí, estava com a sua família de férias, em Fernando de Noronha, e estacionava seu bugre quando ouviu gritos de socorro na praia do Sueste, na última sexta-feira (28). Ali, minutos antes, um tubarão tigre havia mordido a perna direita da menina Nicole, de apenas 8 anos.
Com o instinto de cirurgião em estado de alerta a todo o tempo, foi guiado pelos timbres agudos de um pedido de socorro. Entre a vida e a morte, Nicole foi amparada com a experiência de dois médicos. Um deles foi Leandro, que saiu correndo em direção à areia onde estava a menina, já em um quadro preocupante. Sem o material adequado e necessário, o médico lançou mão do que estava ao seu alcance. Com a sua experiência de cirurgião, teve a ideia de improvisar um garrote com as luvas que lhe deram, o que foi o suficiente para estancar o sangue da pequena Nicole. Salvou a vida da menina, como contou o jornalista Gilson Monteiro em sua coluna.
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O transporte, também improvisado, a levou para o Hospital São Lucas. Nicole foi colocada na caçamba de uma pic-up e o médico a acompanhou até o hospital da ilha. No meio do percurso, a menina foi transferida para uma ambulância do Corpo de Bombeiros. Foram cinco horas de tensão dentro do centro cirúrgico, com os pais aflitos pela recuperação da filha.
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Os médicos de lá ficaram impressionados com o fato de Leandro ter conseguido comprimir a veia femoral de Nicole sem fazer nenhuma ligadura. A combinação de um trabalho de equipe bem executado, a assistência necessária e a força de vontade de ajudar o próximo foi a equação perfeita para Nicole sair dessa com vida. A menina já passou pelo centro cirúrgico e está recebendo todos os cuidados necessários em um hospital de Recife, para onde foi transferida.
Para acompanhar a recuperação da menina, que teve a perna direita amputada, Leandro mantém contato diário com a mãe. Ela deve receber alta nesta sexta (4).
Em entrevista ao A Seguir: Niterói, o médico Leandro Crespo conta os detalhes dessa história.
Confira abaixo:
A Seguir: Niterói: O que passou pela sua cabeça quando ouviu os gritos de socorro? Qual foi sua primeira atitude ao ver o estado da menina Nicole?
Dr Leandro Crespo: Eu já estava há dois dias em Noronha com minha esposa. Era aniversário dela e a ideia era ir a uma praia com uma fauna marinha diferente. A gente tinha alugado um bugre e já no estacionamento a gente ouviu os pedidos de socorro, acendendo já aquela linha de tensão. Cirurgião já tem instinto, né? E eu logo pensei: “será que alguém já se afogou nesse mar?”. Não conhecia essa praia para saber como era o perfil dela, mas quando eu olhei, a princípio de longe, foi como um alerta. Vi aquela cena toda, do pai saindo com a criança no colo. Minhas pernas entraram em modo turbo e só pude pensar em ir em direção a ela.
Você segurou o sangramento da Nicole por 5 horas seguidas. Quais recursos você usou em meio a uma situação tão precária?
No momento, olhei a criança já em situação aguda, sem a perninha, em estado de choque. O que deu para fazer foi estancar o sangramento em cima do membro amputado. Não tinha osso, só tinha parte mole, o que dificultava ainda mais essa compressão. Estava eu e mais uma pessoa que conheci dentro daquele contexto. Foi chegando, sem a gente ver, uma gaze e luva, que serviu de garrote. Eu fiz duas voltas com a luva, depois coloquei outra, para dar mais firmeza. Fizemos o garrote e logo depois chegou uma mesa de transporte. Já tinha uma caminhonete aberta nos esperando. No meio do caminho, ela foi transferida para o carro do Corpo de Bombeiros e chegamos ao hospital.
Assim que chegamos, as médicas logo pegaram o acesso venoso e já colocaram em Nicole. Quando eu vi que ela já tinha sinais de vida e a frequência cardíaca adequada, eu me senti confortável. Queria fazer de tudo para que ela restabelecesse volume e estabilidade.
A sala tinha tudo que a gente precisava: respirador, duas médicas extremamente competentes, formadas em Emergência. Pedi para hidratarem, hidratarem e hidratarem. Chegou uma bolsa de O negativo, que é o sangue universal, e com a estabilidade e com a compressão que já tinha sido feita, as médicas ficaram trabalhando em cima do volume e hidratando até que ela estabelecesse um pico de pressão. Depois, passamos uma sonda vertical para medir o nível de hidratação. Os pais estavam ao nosso lado, mas, ao mesmo tempo, orientados por um assistente social, sabendo que a gente precisava ficar focado. Tudo fluiu da melhor maneira possível devido a um grande trabalho de equipe.
Como você avalia a recuperação de Nicole, que teve a perna direita amputada? Você tem acompanhado a evolução dela?
Passamos 5 horas na emergência com Nicole, com os pais entrando e saindo, extremamente tensos, claro, preocupados com a chegada rápida de um avião. A gente entende que isso não é de uma hora para outra. São vários quilômetros de mar aberto. Até que Nicole acordou e é aquilo, aquele olhar de criança que a gente já conhece. Ela deu aquele sorriso suave e parece que fez um bloqueio para não entender o que estava se passando em relação à perninha. Ficou confortando os pais e o seu irmãozinho. Teve um momento em que ela ficou um pouco mais agitada com as medicações que usamos para não correr o risco de todo o compreensivo da perna não sair dali. Era o meu maior temor, apesar de ter todo o material ali do meu lado, se houvesse essa necessidade.
A gente fez os protocolos todos direitinho de analgesia e, para não deixar ela muito tensa, a mãe levou o ursinho dela, que serviu como um conforto. Aquilo ficou muito marcado na cabeça da gente dentro da emergência. Foi tudo fluindo com calma, mas, em dado momento, o pai teve que sair para um voo que estava previsto naquele dia. Ficamos eu, Nicole e a mãe dela, o que aumentou o meu nível de responsabilidade, principalmente porque o pai foi para Recife e ficou de aguardar a filha chegar lá, do jeito que ele deixou.
Eu estava mentalmente preparado para acompanhá-la até Recife. Queria ir com eles e entregar a Nicole. A minha proposta era tomar conta do curativo compressivo, mas como veio uma equipe muito bem preparada, eles falaram que não havia necessidade.
Os médicos do hospital ficaram impressionados com o fato de você conseguir comprimir a veia femoral de Nicole sem fazer nenhuma ligadura. E agora, quais são as próximas etapas?
Quando chegou ao hospital em Recife, a mãe de Nicole me deu a notícia de que os médicos ficaram muito impressionados com o tipo de garroteamento que nós fizemos e que ela já tinha saído da primeira etapa cirúrgica e estava indo para o segundo estágio, que contempla a lesão de grande dano. Estamos aguardando ansiosamente pela alta dela.
Como você avalia a recuperação da Nicole?
Tenho certeza que ela está recebendo todo o suporte e carinho necessário em Recife. A equipe técnica do hospital é muito competente. Tenho o contato com a mãe e estou torcendo para ela ir o mais breve possível para a casa para o conforto do lar.
Você é de Itaperuna e se transferiu para o Hospital Icaraí há 11 anos. O que te trouxe para Niterói? Como é sua relação com a cidade?
Vai completar 11 anos que estou em Niterói Costumo dizer que sou meio niteroiense. Meu pai estudou aqui, meu avô teve padaria aqui. Meus pais se casaram aqui. Coube ao destino, há 11 anos, me trazer de volta para a cidade depois de toda a minha formação e amadurecimento cirúrgico em Itaperuna. Meu pai também é cirurgião, mas veio a falecer muito cedo na minha formação médica. Vim para cá porque os médicos Dr José Egidio, Dr Savio Tinoco e Dr Ranulfo estavam com um projeto de abrir um hospital. Eles estavam com o desafio de abrir um novo hospital, alguma coisa nova para Niterói. Estou feliz e realizado aqui. Trouxe minha família. Minhas filhas já estão super adaptadas aqui, fazendo medicina. Só veio a acrescentar. A gente vai junto porque se sente valorizado como profissional.
Sobre o médico
Formado pela Faculdade de Medicina de Campos, com Residência Médica em Cirurgia geral e Vídeo Laparoscópica pelo (HSJA), Leandro Crespo é titular do Colégio Brasileiro de Cirurgiões e da Sociedade de Vídeo Laparoscopia. Atuou como professor de Faculdade de Medicina na área de Cirurgia Geral por 12 anos.
Fez residência médica em cirurgia no Hospital São José do Havaí, em Itaperuna, onde trabalhou por muitos anos até se transferir há 11 anos para o Hospital de Icaraí. No hospital, já chefiou a emergência e agora é o chefe do centro cirúrgico.
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