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Um jogo educativo lançado pelo governo federal em 2020 e deixado de lado pelo Ministério da Educação foi apresentado pelo presidente Jair Bolsonaro no último debate com o candidato do PT, na TV Bandeirantes, o ex-presidente Lula, como a solução para enfrentar o problema da educação no país, especialmente na alfabetização das crianças. Segundo ele, o aplicativo teria a capacidade de alfabetizar crianças em seis meses. A realidade, no entanto, é outra: trata-se de uma ferramenta de apoio ao ensino, sem maior alcance que isto, segundo os próprios desenvolvedores. Mas o objetivo do presidente não era pedagógico, era apenas eleitoral: passar de fase no jogo das eleições presidenciais.
Durante o primeiro debate do segundo turno eleitoral, promovido pela TV Bandeirantes, um dos temas levantados foi educação. O foco da questão era como recuperar a defasagem no ensino em escolas da rede pública, que enfrentaram em média 287 dias sem aulas em decorrência da pandemia da Covid-19.
Foi quando o candidato à reeleição presidencial sacou o GraphoGame, aplicativo que, segundo ele, seria capaz de, sozinho, alfabetizar crianças em seis meses. Até então, o projeto desenvolvido por pesquisadores finlandeses tinha caído no esquecimento, desde o seu lançamento, no Brasil.
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– Esse programa não visa substituir o professor. É apenas uma ferramenta de apoio à alfabetização – declarou o então ministro da Educação, Milton Ribeiro, quando do lançamento do Graphogame, em novembro de 2020.
No Brasil, o projeto foi adaptado pelo Instituto de Cérebro, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Foi explicado que, “na prática, o aplicativo usa uma metodologia que estimula o desenvolvimento da consciência dos sons da língua oral e sua relação com figuras, em um processo chamado de instrução fônica”.
Na época do lançamento, reportagem da Agência Brasil registrou que o objetivo do jogo era “ajudar o processo de alfabetização de crianças entre 4 e 9 anos de idade, de forma lúdica”.
A mesma reportagem informou que o aplicativo é efetivo principalmente quando utilizado pela criança sob supervisão e com o engajamento de um adulto e a recomendação é que ela seja usada por, no máximo, 15 minutos, por dia, pelas crianças.
Na ocasião, o ministro da Educação afirmou que não havia previsão de licenciamento para professores acompanharem online a evolução das crianças.
O jogo começa com exercícios que trabalham a associação entre letras e sons da linguagem. Passando de nível, os exercícios ficam mais difíceis, trabalhando sons de sílabas e de palavras inteiras. O Ministério da Educação (MEC) recomenda o GraphoGame Brasil para todos os estudantes do 1º e do 2º ano do ensino fundamental e para aqueles com defasagens no aprendizado da leitura.
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Diante da repercussão da fala do atual presidente da República sobre o game, a PUCRS se manifestou esclarecendo que o GraphoGame não é um aplicativo de alfabetização e sim apenas uma ferramenta de apoio ao ensino.
“A universidade explica que o aplicativo pode ser uma ferramenta de apoio, mas que sozinho não é capaz de alfabetizar. Este não foi e não é o objetivo da iniciativa e dos pesquisadores em nenhum momento. Para uma criança ser alfabetizada ela precisa de instrução sistemática e consistente, precisa de vivências e sem dúvida alguma do apoio da Escola e especialmente de educadores“, afirmou a PUCRS em nota à BBC News Brasil.
De acordo com a universidade, foram investidos R$ 100,5 mil pelo MEC para a adaptação do jogo feita pelo InsCer.
Pedagoga da rede Municipal de Ensino de Niterói, especialista em alfabetização, Soymara Emilião informou que o GraphoGame não é utilizado no município.
– Na rede não é usado e nem nunca tivemos acesso a esse aplicativo. Até porque não acreditamos nesse tipo de trabalho – afirmou ela que tem 22 anos de magistério, sendo também Professora Assistente do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (Cap-UERJ).
Ela observou que, dependendo do endereço do aluno, nem acesso à Internet ele tem – seja em casa ou no colégio.
Na época do lançamento do aplicativo, o então ministro da Educação afirmou que crianças que não tivessem acesso à Internet poderiam baixar o jogo nas escolas para, depois, utilizá-lo off-line.
– Essa proposta de alfabetização com o GraphoGame é desconectada com a realidade das escolas públicas. Além disso, não será um equipamento que substituirá o trabalho laboral e artesanal de um professor – observou Soymara que é Doutora e Mestre em Educação pelo PROPED-UERJ.
Segundo ela, para que haja eficiência no trabalho de alfabetização de uma criança, é preciso, primeiro, dotar as escolas de estrutura como biblioteca e acesso à Internet; diminuir o número de estudantes por turma e fortalecer os professores com formação continuada e plano de carreira.
Para recuperar defasagem de aprendizado, em qualquer época, a solução, segundo Soymara, é “simples”: escola em tempo integral, com apoio às crianças no contra turno.
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Ao mesmo tempo em que o atual presidente da República demonstra orgulho a um aplicativo que teria capacidade de alfabetizar em tempo recorde, ele e seus seguidores declararam guerra a um dos maiores pedagogos do mundo: o pernambucano Paulo Freire (1921-1997).
Patrono da Educação Brasileira, para ele, que era filho de um capitão da Polícia Militar, a educação passa pela leitura do próprio mundo, tendo como objetivo conscientizar os alunos para que eles possam transformá-lo.
Em 1963, a cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte, se tornou um marco da educação popular brasileira, ao colocar em prática o método de Paulo Freire pela primeira vez. O resultado foi a alfabetização de mais de 300 alunos em 40 horas.
Freire foi perseguido pelo regime militar brasileiro, que considerou seu método de alfabetização ameaçador. Ele foi preso depois do golpe de 64.
O que Paulo Freire tem que o GraphoGame não tem? Quem responde é Marta Nidia Varella Gomes Maia, professora aposentada da rede Municipal de Niterói, com 38 anos de magistério, sendo 34 deles na educação básica e quatro no ensino superior, mais precisamente na Faculdade de Educação da UFF.
Inicialmente, ela observou que a obra de Paulo Freire atenta para a relação “respeitosa, amorosa e verdadeira” com os sujeitos, com os estudantes de qualquer idade, tempo, lugar. Ou seja, “Freire defende e promove uma educação humanista e humanizada, crítica e situada nas vidas e histórias dos estudantes”.
Na sua opinião, o aplicativo se situa na exata contramão do que Freire defende:
– O aplicativo se situa no que nosso patrono conceitua como “educação bancária”, aquela na qual o/a professor/a (no caso o aplicativo) deposita no estudante as informações/conteúdos que elege para que ele tenha conhecimento. Com o aplicativo as crianças são tratadas como receptores de informações sobre junção de letras, sem qualquer significado efetivo para elas. As crianças são tratadas como serem não pensantes, não cognoscentes, que não processam e produzem conhecimentos sobre o mundo.
Marta explicou que a educação para a liberdade que Freire propõe parte da realidade dos estudantes para, de forma crítica e significativa, ampliar seu conhecimento e inserção no mundo.
Ela citou a obra do pedagogo, “A importância do ato de ler”, em que Freire diz que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra e, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele”.
– Assim entendemos que ler a palavra e ler o mundo são aprendizagens inseparáveis. Quando uma se dá sem a relação com a outra, algo é roubado do aprendente: a palavra ou o seu sentido na sua própria vida – afirmou a professora.
Para ela, em um país “que tem a felicidade de ter Paulo Freire entre os seus”, jamais se poderia pensar em dissociar a vida real concreta das crianças, sujeitos singulares, dos seus processos de aprendizagem de ler e escrever a palavra.
E concluiu:
– Tratar como política pública de alfabetização das crianças das classes populares a criação de um aplicativo que exige a posse e conhecimento de tecnologias de informação e comunicação (TIC’s) no momento em que as suas famílias sequer estavam podendo alimentá-las com segurança, é uma imoralidade, um deboche com suas vidas, suas aprendizagens.
Em março passado, o Milton Ribeiro deixou o cargo de ministro da Educação. Foi substituído por Victor Godoy, secretário-executivo da pasta desde julho de 2020.
É o quinto ministro da Educação, em pouco mais de três anos do atual governo.
Ribeiro perdeu a pasta após denúncias de irregularidades na sua gestão. Em áudios divulgados pela imprensa, ele aparece em uma reunião de prefeitos dizendo que priorizava repasse de verbas para municípios apontados por pastores. Ribeiro afirmou agia a pedido do atual presidente da República.
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