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Kely Pinheiro, violoncelista formada pela Orquestra da Grota: uma história que soa como música para Niterói

Por Livia Figueiredo
| aseguirniteroi@gmail.com

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Kelly fala ao A Seguir sobre sua trajetória na música, a faculdade nos Estados Unidos, os obstáculos que enfrentou como artista negra e os projetos autorais
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A violoncelista Kely Pinheiro se formou em m Performance (Cello) e Contemporary Writing and Production na Berklee College of Music, uma das mais prestigiadas do mundo.. Foto: Arquivo Pessoal

“Tem que ser assim por força. Nada a pode impedir.” Esse verso conhecido e impresso no poema “Se eu morrer novo”, de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, é um bom retrato da trajetória de Kely Pinheiro, 24 anos, violoncelista, principalmente, por força da natureza. Ela, que  também é multinstrumentalista, começou sua trajetória na Orquestra da Grota do Surucucu, em Sâo Francisco, quando tinha apenas 5 anos. Mal sabia ler, mas já tinha uma noção que a sua história com a música já estava escrita por força maior.

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Menina, o seu parque de diversão era bem diferente do convencional.  Foi na Orquestra da Grota que o projeto de Kelly ganhou corpo e sustância. Mesmo com todas as dificuldades de uma mulher negra, ela soube conduzir como poucos a sua trajetória profissional.

Foi na Grota que Kelly aprendeu o básico e, mais tarde, pode apurar as arestas. A Grota é um projeto de ação social que teve início na década de 80 e tem como propósito ajudar as crianças da comunidade, gerando oportunidades e mais visibilidade.

Após anos de dedicação à Grota e um amadurecimento que desde nova a envolveu, Kelly pode colocar em prática todos os seus aprendizados. Em 2018, ela ganhou uma bolsa integral para estudar nos Estados Unidos, na Berklee College of Music, uma das universidades de música mais respeitadas do mundo. E mobilizou Niterói, que contribuiu orgulhosa para a sua viagem, numa campanha espontânea para conseguir os recursos para a viagem.

Lá ela pode se colocar mais uma vez numa situação de desafio. Longe da sua família, amigos, do seu berço e da sua língua, ela foi lá e mostrou mais uma vez como era capaz. Não bastasse ter sido aprovada, um feito por si já admirável, ela optou por fazer não só uma, mas duas faculdades: Performance (Cello) e Contemporary Writing and Production. Isso em tempo recorde: quatro anos. Seus projetos e experiências profissionais reacenderam nela a urgência do seu primeiro trabalho autoral, que está em etapa de mixagem e será lançado no primeiro semestre de 2023.

Para se manter lá, Kelly lançou uma campanha de financiamento coletivo para arcar com os custos de passagem aérea e aluguel. Depois lançou outra para ajudar a concluir seus estudos. Sem o suporte financeiro, seu sonho não poderia se materializar.

Mas não é só isso. A história de Kelly serviu de inspiração para um documentário que também ainda será lançado. O filme contará a trajetória de vida de vários artistas da música. Um concerto recém gravado no Theatro Municipal em que mostra uma performance de Kelly do seu primeiro trabalho autoral estará no documentário. Há também cenas de vários lugares de Niterói, cidade onde Kelly nasceu, cresceu e nunca esqueceu.

– Eu sou suspeita para falar porque eu amo demais a cidade. Independente para onde eu for, eu sempre vou ter memórias muito boas de Niterói. Me sinto muito grata e muito sortuda mesmo – revela ela que ainda lançará no que vem seu primeiro trabalho com seu Quarteto de Cordas.

Kely Pinheiro, violoncelista da Orquestra da Grota para o mundo. Foto: Arquivo Pessoal

No mês da Consciência Negra e em todos os outros dias, o A Seguir reverencia Kely Pinheiro e todas as artistas que possuem um talento nato para a música e um resgate ímpar da sensibilidade.

De Nova York, sua base atual, Kely conversou com o A Seguir: Niterói sobre o começo de sua trajetória na música, os principais obstáculos que teve de enfrentar e antecipou alguns projetos para o ano que vem.

Confira a entrevista na íntegra abaixo:

– A Seguir: Niterói: Conte um pouco da sua trajetória na Orquestra da Grota. Como surgiu a oportunidade de tocar lá? Como tem sido a experiência?

Kely Pinheiro: A minha trajetória na Grota começou muito cedo. Quando eu tinha por volta de 5/6 anos, que é a faixa etária mais ou menos em que eles começam a receber as crianças nas turmas. Eu passava a maior parte do meu tempo na Grota porque era o único projeto que eu tinha fora da escola e meus pais queriam que eu me ocupasse bastante. Eu basicamente saía da escola, ia para casa e voltava para a Orquestra da Grota para ter aula de flauta doce. E eu me via muito inserida em todas as atividades que eles ofereciam. Eu era muito nova, tinha tempo livre e eles sempre me deram muita liberdade para eu assistir os ensaios, estar por volta.

Foi uma experiência muito bacana. Fiz muitos amigos, cresci muito lá. Fiz meio que uma família e cresci inserida no projeto. Então todas as minhas atividades giravam em torno da Orquestra da Grota. Isso me possibilitou que eu amadurecesse mais cedo, porque a gente está sempre tocando, tem os shows, o profissionalismo, a disciplina. Eu ia trabalhando cada um desses aspectos conforme eu passava mais tempo lá.

– Você se formou em Performance (Cello) e Contemporary Writing and Production na Berklee College of Music, uma das universidades de música mais respeitadas do mundo. Conte um pouco da sua vivência, o que de diferente você aprendeu? De que forma você acha que esse estudo lá pode ter te aprimorado na sua vida profissional e pessoal?

Eu me formei na Berklee College of Music em agosto, que é basicamente quando começa o verão aqui nos Estados Unidos. Foi uma experiência e tanto. Por mais que os dois cursos sejam em dois anos, eu consegui fazer em quatro. Peguei muita aula, estudei bastante e não tirei férias. Foi um intensivão. Eu sinto que mudou minha vida de uma forma muito verdadeira, por mais clichê que isso possa soar. Fazer uma faculdade em outro país coloca um outro tipo de pressão de cursar faculdade no seu país. Fora as pessoas que conheci.

Quando eu fiz faculdade no Brasil, eu já tinha passado pela experiência de não morar com meus pais. Eu tocava minha vida, pagava aluguel, mas eu estava num lugar que era familiar para mim. Eu já tinha muitos amigos e quando eu mudei para cá foi essa pressão toda, além do choque cultural, a língua, não conhecer as pessoas. Mas de qualquer forma valeu muito a pena. Cresci muito como pessoa e como artista. Tive que lidar com coisas que me obrigaram a crescer e eu sou muito grata por isso.

Quanto ao violoncelo, minha mente disparou de uma forma que eu não acho que conseguiria crescer tanto como cresceria no Brasil. Eu estava fazendo licenciatura no Brasil, mas não estava tão feliz. Parecia que eu não tinha achado a minha área específica da música ainda, embora soubesse que essa seria minha vida daí para frente. Mas quando eu me mudei para cá e conheci mais possibilidades, pude ver que eles têm uns cursos de música que são muito mais específicos. Isso abriu meus olhos e me possibilitou crescer no que eu mais gostava: arranjo, produção e um violoncelo mais contemporâneo, que foge um pouco da linha do currículo de música clássica que temos na maioria dos lugares.

– Você lançará seu primeiro trabalho autoral em 2023. Como está o preparo do seu projeto de estreia? Ele ficará disponível nas plataformas de streaming? Terá material físico? E qual a importância de lançar um trabalho solo, com as suas características, suas linguagens, seu gosto ali?

O ano que vem vai ser bem agitado porque eu vou lançar meu primeiro trabalho autoral que eu já toquei na Berklee, na minha formatura, e no Brasil, em setembro, no Theatro Municipal. Foi tudo autoral, embora nada esteja ainda gravado. Mas eu tenho versões dessas músicas que são demos, que começaram num projeto ou em alguma aula da Berklee e eu vou aprimorar essas demos. Estou regravando bastante coisa para lançar em 2023.

Vai ser como um nascimento de um filho porque várias dessas músicas que eu estou trabalhando refletem muito esse período específico na Berklee. É como um retrato, uma reflexão dos meus últimos quatro anos. E acho que vai ser legal eu ter esse tipo de trabalho como meu primeiro autoral, já que vou disponibilizar nas plataformas digitais. Vai ser uma coisa muito sincera, que revela quem eu me tornei depois desses anos conturbados. Eu sinto que estou em um período da minha vida como artista completamente diferente de alguns anos atrás. E ter um material que me representa para o público é importante também, para todo mundo me ver.

Além desse autoral, eu vou lançar meu primeiro trabalho com meu Quarteto de Cordas. A gente já está com tudo gravado e agora estamos no período de mixar, editar e tudo mais. Isso deve sair entre abril e maio do ano que vem. Esse vai ser outro projeto super especial, porque cada membro do quarteto traz um pouco da sua experiência de vida e da música. Cada pessoa é de um lugar diferente e eu sou a única brasileira. No nosso processo de criação a gente tem coisas brasileiras, mais americanas. Quando as pessoas ouvem é fácil de reconhecer e é interesse a gente ouvir essa mistura também.

– A sua trajetória é tema de um documentário. Conte mais sobre ele. O que será revelado e qual a previsão de estreia? Ele irá para o cinema ou para as plataformas de streaming?

Acho que minha ficha não caiu ainda. Estar participando de um documentário sobre a vida de vários artistas e ter uma parte específico sobre a minha vida na música, na Orquestra da Grota e em todos os projetos que eu participei… Não dá para acreditar!

Tudo começou quando eu conheci um videógrafo brasileiro que estava morando no Canadá e ele estava com vontade contar a relação do artista, a arte que eles produzem e a fé deles. Ele foi para Boston e me gravou lá no fim do ano passado e a gente teve uma conversa super honesta falando sobre arte, música, o jeito como eu cresci, minha fé.

Já a segunda parte do documentário será eu no Brasil. Ele foi para Boston, contou minha história de lá. Ficou muito bacana e tudo mais, mas a história não estaria sendo contada 100% se não mostrasse um pouco do Brasil, de como as coisas são. A gente foi para o Brasil em setembro e gravamos bastante coisa minha, com meus amigos, professores, a Orquestra da Grota. E, no final, tivemos um grande concerto no final que resumia a minha trajetória musical dos últimos quatro anos. Foi muito especial. Ele gravou tudo, mostramos a realidade, sabe? Fomos em vários lugares de Niterói que eu já toquei e que tinham uma importância para mim.

Eu acho que vai ser um dos maiores projetos que eu já participei. Acho que porque o documentário é a junção do áudio com a imagem. Acho que vai ficar muito forte. Como é um projeto independente, depende do financiamento, da edição, mas deve sair no final do ano que vem, só não tem data certa ainda.

– Qual o efeito do violoncelo em você? O que sente quando toca o instrumento? Tem vontade de aprender outros?

O violoncelo é um instrumento especial para mim porque foi o último que peguei para aprender. Eu comecei com a flauta doce quando era bem novinha e depois passei por outros instrumentos como violino, guitarra, piano e tal. Quando eu tinha uns 11 anos, comecei a tocar violoncelo. Eu me apaixonei porque ele tinha tudo que eu precisava. Tinha essa questão de poder tocar melodia, umas coisas mais agudas, os mais graves. Aquela voz poderosa, grandiosa. Mas ao mesmo tempo eu posso tocar acorde que me lembra um pouco os instrumentos harmônicos, como piano, violão… Acho que eu me apaixonei pela versatilidade. Foi o instrumento que eu cheguei mais perto de me expressar de forma genuína. Agora posso afirmar que é o meu instrumento principal e é tão específico que nem sei se vou querer aprender outro depois dele.

– Quais são seus projetos atualmente? Você que está sempre em busca de aprender coisas novas

Os meus projetos atualmente são basicamente estudar bastante violoncelo e trabalhar num novo repertório que me coloque um pouco mais como um papel de violoncelista, porque tocando em orquestras e grupos eu estava sempre como parte de um grupo maior, mas não é sempre que você tem esse suporte. Eu estou investindo mais no repertório que tem o cello e voz como uma coisa mais principal e eu não dependo tanto de pessoas para me acompanharem. Além de trabalhar na mixagem das músicas que vou lançar ano que vem e as com o meu quarteto.

– Sabemos de toda a dificuldade da mulher negra na sociedade e a conquista ganha um peso ainda maior. Quais foram seus principais obstáculos ao longo de sua trajetória?

Eu acho que um dos obstáculos – porque são muitos e não é fácil realmente – é você se deixar influenciar muito pelo que as pessoas pensam. Às vezes dentro da música eu já achei muitos ambientes tóxicos e também fora da música já achei muita gente prepotente que não acreditava nos meus sonhos e eu quase me deixei levar por elas. Escutando outras pessoas você acaba por vezes acreditando em coisas que são mentiras, que te limitam de crescer. Eu vi muitas pessoas desanimadas com a música, com essa luta. Uma mulher negra sempre tem que lutar para fazer tudo. E tem muitas pessoas que estão lutando até hoje e tem histórias incríveis, mas tem muitas pessoas que ficaram pelo caminho porque estavam desacreditadas.

Eu tive que lutar bastante porque apesar da realidade que estou vivendo e de muitas coisas estarem me provando o contrário eu sei que tenho força e vou conseguir lutar, mudar minha história, minha realidade, por mais que isso me custe muito trabalho, noites em claro e muito sacrifício. Eu tive mesmo que focar bastante e não desanimar com as coisas que estavam acontecendo, porque se não eu seria só mais uma que desistiu.

– Você é nascida e criada em Niterói. Como é sua relação com a cidade? O que gosta de fazer aqui no tempo livre?

Nossa, eu amo Niterói. Acho que pelas amizades que fiz. É uma cidade muito artística, com muita gente talentosa. Eu me sinto muito sortuda quando penso que nasci lá, cresci lá. Se mostrou uma cidade que dá muito suporte aos artistas e a música. Eu tenho sentido isso de uma maneira muito mais forte desde que me mudei para Berkllee, porque a cidade de Niterói me abraçou e isso só me faz ter um carinho maior.

Uma das coisas favoritas que eu gostava de fazer era andar na Praia de São Francisco à noite, porque tem uns restaurantes e é uma área que a galera vai com a família. O pessoal fica jogando futebol na praia, ouvindo música, jogando conversa fora, rindo, enfim, muitas histórias ali. Também curtia muito ir para a Praia de Itacoatiara, Piratininga, dar um pulo no Parque da Cidade. Eu sou suspeita para falar porque eu amo demais a cidade. Independente para onde eu for, eu sempre vou ter memórias muito boas de Niterói. Me sinto muito grata e muito sortuda mesmo.

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