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“Mas de tudo fica um pouco. Da ponte bombardeada, de duas folhas de grama (…) Mas de tudo, terrível, fica um pouco, e sob as ondas ritmadas e sob as nuvens e os ventos e sob as pontes e sob os túneis (…) As igrejas triufantes.” Em “Resíduo”, Drummond relata, com toda sua poética, algumas das muitas nuances que ficam dos grandes acontecimentos, que mobilizam gerações e marcam a história. Ele cita as sequelas, os rastros e vestígios que ficam de certa forma carimbados em nós.
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Depredação, bombardeio, incêndio, roubos… Quem olha hoje a Ilha da Boa Viagem não tem a dimensão de tudo que culminou para o total descuido com o patrimônio histórico de Niterói tombado pelo Instituto do Património Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A imersão na história remonta a 1650, quando o local virou centro de peregrinação de marinheiros, que agradeciam pelas viagens bem-sucedidas e pediam benção para os próximos trajetos. Em 1711, a capela foi destruída durante a invasão francesa e reconstruída em 1780, toda em estilo neoclássico.
Além da vocação religiosa, o monumento foi historicamente destinado para fins militares. A visão privilegiada da Baía de Guanabara tornou a ilha parte do antigo sistema defensivo brasileiro. Mas isso é apenas parte da história que ajuda a lapidar o que significa o retorno de não apenas um ponto turístico, mas de um local que ajudou a construir parte da história do Brasil. O A Seguir esteve na tarde desta sexta-feira (22) na Ilha da Boa Viagem, que além de guardar muita história, é como um recanto de contemplação à natureza com uma vista de 360 graus.
Em seus 400 anos, essa é a primeira vez que a ilha abre a visitação para o público de forma regular. Seus monumentos históricos foram todos restaurados: o castelo, onde ficará agora um museu, o fortim e a igreja. O trajeto contém as indicações, com placas de sinalização que foram adaptadas ao novo ambiente.
O acesso à ilha merece atenção. Após atravessar a ponte, há logo a entrada com uma grande ladeira de pedras. E degraus. Muito degraus. Nem todos bem distribuídos, para preservar e não apagar parte da história, mas restituídos para evitar qualquer acidente. Ao subir os degraus, com algumas pausas e goles de água gelada, de preferência, para aguentar o calor, logo se avista uma casa, que será restaurada e servirá de sede dos escoteiros do mar.
E dá-lhe mais degraus, com vestígios de várias casas que ali existiram e formavam quase o que se pode nomear de uma vila. O caminho que leva à igreja é de muita vegetação. Em seu período de restauração, foram achados oito caminhos de acesso ao mar, sem contar com a entrada principal. Por conta da falta de vigia, muitos itens foram roubados como o sino da igreja, a santa, além de outros itens que foram perdidos e apagados no tempo porque não foram catalogados na época.
Após uma longa subida, o primeiro cenário é a vista para o Pão de Açúcar e o Corcovado. A vegetação acompanha a paisagem de deixar qualquer um minimamente impressionado. A igreja fica logo ali, estrategicamente posicionada, devido a sua estrutura militar. Na época, ela servia de base para a defesa de invasões e bombardeios. Ainda há ali tripés onde costumavam ficar posicionados os canhões. A igreja foi reconstruída em etapas. O piso foi todo restituído, o órgão, a sua estrutura, o telhado e o mobiliário. Uma curiosidade é que o azul representa o manto de Nossa Senhora, e por isso, não por acaso, as janelas da igreja foram repintadas neste tom.
A Ilha, debruçada na Baía de Guanabara, ganha uma nova roupagem, preservando os muitos objetos e rastros históricos. As visitas, orientadas, serão realizadas por agentes de turismo da Neltur, e podem ser feitas às terças, quintas e sextas, às 10h e às 14h. No fim de semana, devido à alta procura, serão disponibilizados quatro horários. A média é de 2.400 vagas por mês. Na última semana de todo mês, o agendamento será disponibilizado no site da Neltur, pelo link. Ainda está sendo estudado um projeto, que depende de uma série de aprovações de órgãos como o Iphan, para ampliar a acessibilidade do local e democratizar o espaço para o público geral.
O complexo histórico da ilha é administrado por um comitê formado pela Niterói Empresa de Lazer e Turismo (Neltur), Secretaria municipal de Ações Estratégicas e Economia Criativa e a Secretaria Municipal de Meio Ambiente. Por meio de uma parceria com a Unesco, a Ilha da Boa Viagem irá oferecer um museu com diversas experiências interativas, como recursos audiovisuais, hologramas, entre outros aparatos tecnológicos. A ideia é que as obras sejam expostas desde a entrada, criando uma espécie de museu a céu aberto.
Essa etapa está prevista apenas para março de 2024, mas neste fim de semana já é possível visitar a exposição com cerca de 25 fotografias da ilha antiga e os monumentos restaurados, além de objetos antigos e novos. A ideia é que o espaço sempre receba exposições regulares que narrem um pouco a história da Baía de Guanabara, a história dos povos que habitaram, como indígenas, escravizados, assim como o estilo de vida do entorno.
– Essa ilha ficou décadas fechada para visitação pública. Eventualmente tinham missas na capela, mas o público, em geral, não tinha acesso e o patrimônio foi todo se deteriorando. Com essa obra, a gente disponibiliza a ilha para o turista e principalmente para o niteroiense, que vai ter mais um motivo para se orgulhar da cidade. A gente movimenta toda uma cadeira produtiva do turismo. Quanto mais atrações você tiver, mais motivos as pessoas vão ter para vir à Niterói. Quanto mais personalidade, mais atraente a cidade fica. E isso faz uma dialética interessante porque aqui perto temos o MAC, uma obra do Niemeyer, contemporânea e moderna e aqui temos uma obra histórica, do período colonial – ressalta o prefeito de Niterói, Axel Grael, em entrevista ao A Seguir, durante a visita.
A igreja resgata esse espírito de resistência, da solidificação da história da Baía de Guanabara. A ilha foi ocupada originalmente por indígenas, construída por pessoas escravizadas e usada durante muitos anos para o processo de catequização dos indígenas. A ilha respira isso: a mistura do povo brasileiro, o catequizado, o colonizador e o nativo.
O trabalho de restauro foi enorme e durou apenas um ano e meio. Muitos dos elementos foram preservados para não desconfigurar o espaço e não apagar registros históricos e suas características arquitetônicas. Durante o processo, foram encontradas as ruínas das edificações antigas que vão compor o sítio arqueológico. O espaço já foi delimitado, a pedido do Iphan, para preservação. Mas quem se depara com essa nova ilha não imagina que o mais penoso foi o transporte do material. Segundo o arquiteto Marcelos Barcellos, responsável pelo gerenciamento de toda a restauração, o trabalho foi, sobretudo, pautado em uma recomposição gradual e braçal.
– A gente teve que fazer um trabalho bem artesanal. Chegamos a colocar 50 homens para fazer “escadinha” de material. A UFF cedeu o espaço para a gente ter um canteiro. Tivemos que carregar todo o material na mão até aqui em cima. Antes de tudo, criamos a estratégia de por onde íamos começar. Temos três edificações, com temporalidades diferentes e cada uma com uma logística diferente de serviço: a capela foi um caso de conservação e restauro, o fortim estava em estado de arruinamento, perdendo todo o seu formato, e o castelo, que é uma edificação do século XX, nós conseguimos manter a fachada, mas a parte interna transformamos em uma sala de exposição – explica.
No fortim, por exemplo, foi preservada a inclinação do chão para revelar a história, onde eram colocados canhões e os guarda-corpos. Há também uma masmorra, que não tem registro de uso, mas é possível visitar. A configuração se mantém como a original, apesar das restaurações. No fortim, há uma grande varanda a céu aberto debruçada na Baía de Guanabara, onde é estudada a abertura de um café, caso seja aprovado pelos órgãos reguladores. Nesse espaço, em especial, chama a atenção o silêncio, a fauna e riqueza da flora. Micos passeiam pelo local, além de capivaras e pássaros marinhos, mais migratórios. As pedras foram transportadas de Portugal, assim como o capim colonial. Também há plantas ornamentais, numa mistura de mata nativa com plantas invasoras.
O último ponto do passeio – não menos importante – foi o castelo, onde funcionará o museu. O piso foi todo reformado de taco e há, logo na entrada, um espaço que servirá como um posto de informação para turistas, além de uma sala de administração. A intenção da Prefeitura é que as exposições sejam regulares e sempre com foco em histórias que retratam a vivência do local, a cultura e a arquitetura da ilha.
Os poços de água foram revitalizados e adaptados. Um deles foi transformado em cisterna para servir de caixa d’água e o outro servirá como um reservatório de emergência. Também foram instalados biodigestores para tratar os resíduos dos banheiros.
No entorno do museu, além de muita vegetação, havia uma família de micos que clamava por atenção (e comida). “É a hora do lanche”, disse o arquiteto responsável pelo projeto. Junto eles faziam um coro que parecia ensaiado de tão sincronizado. Hora do lanche ou de dar as boas vindas aos visitantes nesse capítulo da Ilha da Boa Viagem que está prestes a inaugurar?
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