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O aumento atual no número de Microempreendedores individuais (MEIs) em Niterói não é fruto de maior aptidão ao empreendedorismo por vocação, mas revela que um número enorme de trabalhadores foi alijado do mercado formal de trabalho. Essa é a análise da professora permanente do programa de pós-graduação em Sociologia e Direito da UFF, Carla Appollinario de Castro, sobre a alta de MEIs no município.
Leia mais: Tendência para mercado de trabalho é informalidade e precarização, aponta especialista
Conforme antecipado pelo A SEGUIR: NITERÓI, existem atualmente 52.607 trabalhadores regularizados no Portal do Empreendedor em Niterói, ou seja, cerca de 27% da população economicamente ativa. Esse número, aliás, vem crescendo de forma gradativa. Durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), por exemplo, esse índice praticamente dobrou – em 31 de dezembro de 2018 havia 27.306 MEIs registrados.
Carla afirma que esse acréscimo representa uma precarização no mercado de trabalho. De acordo com ela, essa insegurança econômica e empregatícia tende a aumentar, “uma vez que a única política pública de promoção de renda e trabalho construída continua sendo a do microempreendedorismo individual”.
– O que a reforma trabalhista de 2017, concomitante à crise econômica, seguida da pandemia decorrente da COVID-19 produziu, no contexto brasileiro, foi o aumento significativo do desemprego e a ampliação da precarização para um universo maior de trabalhadores, processo que se revela já bastante duradouro sem qualquer indicativo de reversão por parte do poder público ou do mercado – avaliou, em entrevista à reportagem.
Ainda segundo a especialista, essa instabilidade “não é só do trabalho, mas da vida social como um todo dos trabalhadores, com ou sem vínculo de emprego”. Ela afirma, nesse caso, que é necessário reverter o processo “de precarização das relações de trabalho e condições de vida”.
– O indivíduo trabalha e não consegue arcar com todas as despesas relativas ao seu sustento e o de sua família. Uma prova disso é o elevado índice de endividamento das famílias, mesmo aquelas em que, pelo menos, um membro tem emprego regular. É preciso reverter o processo de precarização das relações de trabalho e condições de vida, pois não há, em todo o mundo, país que tenha se desenvolvido com o cenário econômico e social brasileiro atual – acrescentou.
Durante a conversa, a doutora em sociologia e direito abordou a reforma trabalhista imposta pelo então presidente Michel Temer, em 2017, falou sobre o aumento da crise econômica em decorrência da pandemia da Covid-19 e ressaltou a desigualdade social alimentada justamente pela precarização do trabalho.
Para responder a essa pergunta, em primeiro lugar, é importante analisar as atividades que reúnem quase metade (20.000) dos MEIs cadastrados no município, sendo elas as de cabeleireiros, manicure e pedicure, serviços ambulantes de alimentação, fornecimento de alimentos preparados preponderantemente para consumo domiciliar…
Um olhar mais detalhado sobre a natureza das atividades e sobre as condições em que elas são realizadas revela que claramente são indivíduos que, sob a forma do empreendedorismo individual, em sua maioria, exploram atividade econômica, por conta própria, sem a proteção social típica das relações de emprego protegidas e com todos os direitos trabalhistas correlatos. São indivíduos sem emprego e sem direitos, mas não sem trabalho.
O número de pessoas que se formalizaram e logo depois deixaram de contribuir por perda das condições financeiras para se manterem filiadas ao Programa sempre foi muito elevado. Além disso, nunca houve a construção de qualquer outra política que pudesse servir como alternativa às pessoas que não conseguem manter o status de MEI permanente e retornam à condição anterior de indivíduos totalmente desfiliados sob o ponto de vista social.
O que a crise econômica seguida de crise sanitária provocou agora foi o aumento exponencial do número de MEIs, uma vez que foi condição de acesso para o benefício da Renda Emergencial e, depois, ao Auxílio Brasil. Mas também foi possível observar que, logo depois de uma avalanche de formalizações no início da incorporação dos MEIs aos dois Programas federais mencionados, houve significativa elevação do número de MEIs que deixaram de ter disponibilidade de recursos para continuar contribuindo.
O que a reforma trabalhista de 2017 produziu como resultado foi um grande contingente de pessoas alijadas do mercado formal de trabalho que, em grande parte, se formalizou como MEI, mas que logo perdeu as condições de se manter em condições mínimas de inclusão social. Isso ocorreu, principalmente, com as pessoas contratadas sob a forma de trabalho intermitente em que a remuneração só é garantida se houver trabalho efetivamente realizado.
Desde a sua criação, tenho sustentado a crítica ao programa do MEI pelo fato de ele ser a única alternativa construída ao problema do desemprego crônico ou estrutural que se instalou no Brasil nos anos 1990. O aumento atual no número de MEIs não é fruto de maior aptidão ao empreendedorismo por vocação, pelo contrário, revela que um número enorme de trabalhadoras e de trabalhadores foi alijado do mercado formal de trabalho (regular, pago e com todos os direitos).
Agora, esse grupo se vê obrigado a realizar uma das atividades autorizadas a serem exploradas sob a forma de MEI, caso queiram ou tenham condições mínimas de contribuir como forma de se manter minimamente filiado sob o ponto de vista social. A maior consequência desse momento é a explosão do empreendedorismo dos pobres, isto é, do empreendedorismo por sobrevivência.
A Espanha é um bom exemplo a ser observado. Ela havia realizado uma reforma trabalhista similar a nossa um pouco antes da pandemia. O que o cenário pandêmico explicitou é que não dá para se pensar em cidadania e democracia sem proteção social em larga escala. A desfiliação social, seja das redes estatais de proteção ou privadas (emprego), coloca em xeque o desenvolvimento econômico e social e a própria democracia. Por isso, a Espanha acabou de reverter a reforma que o Brasil realizou em 2017.
Na minha opinião, isso acende um sinal vermelho para que, coletivamente, a gente discuta a proteção social não apenas de quem tem emprego (e muitas vezes não tem proteção), mas também dos indivíduos que estão totalmente desprotegidos. A precarização, atualmente, não é só do trabalho, mas da vida social como um todo dos trabalhadores, com ou sem vínculo de emprego.
O indivíduo trabalha e não consegue arcar com todas as despesas relativas ao seu sustento e o de sua família. É preciso, portanto, reverter o processo de precarização das relações de trabalho e condições de vida, pois não há, em todo o mundo, país que tenha se desenvolvido com o cenário econômico e social brasileiro atual.
A precarização das relações e condições de trabalho era um fenômeno observado antes da pandemia e sua tendência à elevação já era apontada por diversas pesquisas em direito do trabalho e sociologia do trabalho. Se antes, a precarização era adstrita aos desempregados, trabalhadores informais ou por conta própria, a partir dos anos 2000, após sucessivas reformas trabalhistas, ela passava a ser também identificada dentre aquelas pessoas que possuíam empregos formais (sob a forma de flexibilização da jornada de trabalho, das formas de contratação, da prestação do serviço, da remuneração e das formas de solução dos conflitos trabalhistas).
O que a reforma trabalhista de 2017, concomitante à crise econômica, seguida da pandemia decorrente da COVID-19 produziu, no contexto brasileiro, foi o aumento significativo do desemprego e a ampliação da precarização para um universo maior de trabalhadores, processo que se revela já bastante duradouro sem qualquer indicativo de reversão por parte do poder público ou do mercado, uma vez que a única política pública de promoção de renda e trabalho construída continua sendo a do microempreendedorismo individual.
Apesar de todas as críticas que podem e devem ser realizadas ao modelo legislado de regulação do trabalho e promoção da cidadania adotado durante a sociedade salarial, em que os contratos formais de trabalho eram a principal forma de acesso aos direitos sociais, este parece ser o que garante maior proteção social e maior estabilidade econômica às trabalhadoras e trabalhadores em geral.
Não por acaso, a maior reivindicação por parte dos que estão completamente excluídos, sob o ponto de vista social, é por direitos que garantam renda e trabalho, não apenas no Brasil, mas no mundo todo. São trabalhadoras e trabalhadores ultra-precarizados que, diante da ausência completa de políticas públicas promotoras de inclusão social, reivindicam melhores condições de trabalho e, sobretudo, de vida.
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