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“A gente, que vem de baixo, tira leite de pedra”, diz fundador de banco comunitário em Niterói

Por Camila Araujo
| aseguirniteroi@gmail.com

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A Seguir: Niterói entrevista Marcos Rodrigo, fundador do Banco do Preventório e doutorando em Tecnologia de Sociedade, pela Coppe/UFRJ
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Marcos Rodrigo no Morro do Preventório. Foto: Arquivo pessoal

Nascido na maternidade pública de São Francisco e criado em comunidades de Niterói e São Gonçalo, Marcos Rodrigo fundou o Banco do Preventório, uma associação comunitária que tem como objetivo promover o desenvolvimento local do morro que fica em Charitas, em Niterói. O banco financia comércio, serviços, pequenos negócios da favela e incentiva o consumo em moeda social digital, a Prevê.

O Banco do Preventório tem uma série de frentes e projetos também na cultura, no meio ambiente, na tecnologia e na educação que beneficiam cerca de 30 mil moradores.

Marcos foi criado em comunidades de Niterói e São Gonçalo, mas foi no morro do Preventório onde ele passou boa parte da vida. Ajudava o pai no comércio familiar no pé da comunidade, o Maloca, um dos mais antigos do bairro, ativo há mais de quarenta anos.

Em entrevista ao A Seguir: Niterói, Marcos, que hoje cursa o doutorado, fala sobre desigualdade, inclusão social e resiliência comunitária, a potência e força motora de quem vem de baixo. Ele também conta como a economia solidária contribuiu para que ele conseguisse romper diversas barreiras e chegar à universidade, além de beneficiar milhares de pessoas da periferia.

 

A Seguir: Niterói – Vamos começar falando um pouco da sua trajetória. Qual sua história com a cidade de Niterói?

Marcos Rodrigo – Bom, eu sou o Marcos, sou do Preventório, me criei boa parte da minha vida aqui. Sempre fui um ativista da comunidade, um líder comunitário, ajudei na formação do Banco do Preventório há mais de dez anos. Eu nasci em São Francisco, na maternidade pública. Quando eu nasci eu morei um pouquinho em Niterói, meu pai morava na Grota. E aí, até meus 8 anos, eu morei no Capote, no Colubandê, em São Gonçalo. Depois morei no Viradouro, ali próximo em Santa Rosa. Voltei para São Gonçalo para uma comunidade chamada Beco do Urubu, no Porto da Pedra e aí quando eu fiz 18 anos eu decidi morar no Preventório. O meu pai é comerciante aqui da praia, ele tem uma barraca chamada Maloca, um dos bares mais antigos da região, há mais de 40 anos, junto com o Cantinho da Pedra e o Chalé Dois.

Apesar de morar em São Gonçalo, eu vinha trabalhar com meu pai. Na minha adolescência, eu estudei em Niterói, fui coordenador do grêmio do Liceu Nilo Peçanha. Nessa época eu comecei uma vida social em Niterói, então decidi morar mesmo no Preventório, porque era muito cansativo ir e voltar todos os dias, saindo tarde e acordando cedo, além do estudo. Meu pai tinha um quartinho com banheiro em cima do comércio dele e eu resolvi trazer minha vida para cá. Me casei, construí mais dois quartos nesse barraquinho que meu pai tinha, fiz sala, cozinha, banheiro.

A Seguir: Niterói – Você é fundador do Banco do Preventório. Como surgiu a ideia de criar um banco comunitário?

Marcos Rodrigo – Quando eu vim para Niterói, eu acabei me envolvendo com os trabalhos comunitários daqui. Eu já tinha uma atuação em São Gonçalo, era coordenador de grêmio, participei de pastoral na igreja. Então, enquanto eu estava aqui no Preventório, eu me envolvi com a economia solidária, um movimento que discutia trabalho, renda, associativismo, cooperativismo.

Nesse movimento, eu comecei a participar da fundação de um fórum de economia solidária no centro da cidade, pensando agroecologia, novas formas de organização do trabalho, entre outros temas. Em uma viagem ao Rio Grande do Sul, eu conheci a experiência dos bancos comunitários e achei bem interessante, mas não tinha noção se qualquer dia eu ia conseguir me envolver numa iniciativa dessa em Niterói. Hoje, eles já existem há 24 anos no Brasil. O primeiro foi o Banco Palmas, no Ceará, fundado pelo Joaquim Melo, um companheiro de militância.

Participando de uma reunião sobre economia solidária no Rio, eu encontrei uma professora amiga, a Barbara, que era coordenadora de uma incubadora de economia solidária da UFF. Ela disse que tinha muita vontade de apoiar iniciativas comunitárias e me falou dessa ideia do banco. Eu achei ótimo, só não sabia como fazer. Nessa época não tinha nenhum banco comunitário no Rio de Janeiro. Teve o banco de Silva Jardim, mas era municipal, depois ele parou de funcionar.

A Barbara me ajudou a ir atrás de financiamento, conseguimos com a antiga Ampla, que hoje é a Enel. Eles têm um fundo de inovação a nível nacional, e a gente conseguiu convencê-los a criar o banco. Conseguimos capital para criar o fundo de investimento comunitário e eu fui o primeiro presidente. Estamos na quarta gestão e até hoje tivemos três presidentes mulheres e um presidente homem.

A Seguir: Niterói – Como foi para você participar dessa fundação?

Marcos Rodrigo – Essa realização de criar o banco comunitário foi muito importante na minha vida, trouxe muitas coisas boas e uma mudança de vida. Além de contribuir com a comunidade, eu consegui muitos contatos com pesquisadores, consegui entender a importância dessas experiências para a sociedade. Terminei a faculdade, fui fazer mestrado e agora estou no doutorado.

A Seguir: Niterói – E qual é a sua formação hoje?

Marcos Rodrigo – Eu falo que minha formação de vida é ser líder comunitário, mas eu sou formado em Administração pela Estácio de Sá, fiz mestrado em Desenvolvimento Social, no Núcleo Interdisciplinar do Desenvolvimento Social da UFRJ e estou fazendo doutorado em Tecnologia de Sociedade, na linha de pesquisa informática e sociedade do Programa de Engenharia, Sistemas e Computação Coppe/URFJ.

A Seguir: Niterói – Como funciona o banco?

Marcos Rodrigo – Hoje a moeda social é circulada em aplicativo, o e-dinheiro. A gente usava moeda em papel para crédito para consumo dentro da comunidade. Fazia um crédito de 150 Prevês para a pessoa comprar dentro da comunidade, nos comércios locais que a gente cadastra e eles recebem os pagamentos em Prevês. E o microcrédito a gente fazia em reais porque as vezes a pessoa queria usar em um fogão, em algum equipamento para o seu trabalho.

Também fazemos microcréditos solidários aos empreendimentos. O morador vai ao Banco e com dois outros empreendedores e faz um grupo solidário que pode ter entre 3 a 5 empreendimentos. Todos apresentam suas ideias, fazem um cadastro e analisamos junto com eles as propostas empreendedoras. Uma semana depois retornarmos com a aprovação ou não. Se aprovado, liberamos crédito mediante a assinatura do grupo. É uma metodologia de aval solidário, com valor inicial de R$1000 para cada um do grupo.

A Seguir: Niterói – Como você percebe o impacto do Banco do Preventório para quem mora na comunidade?

Marcos Rodrigo – Nossa equipe é muito jovem, uma média de 22, 23 anos. Somos cerca de 20 pessoas na organização nesse momento, trabalhando como bolsistas, estagiários, CLT, contratos, porque a gente vai fazendo vários projetos ao mesmo tempo, e muitos voluntários, sem eles a gente não conseguiria. A maioria da equipe é feminina e a gente ousou criar uma iniciativa comunitária. O objetivo da organização é contribuir para o desenvolvimento local.

Em termos de resultado, a gente não conseguiu altos valores de microcrédito, que é uma das bandeiras dos bancos comunitários. Claro que temos moeda local, a moeda Prevê, mas o que eu notei é que a organização em si contribui muito para o desenvolvimento do território com a organização militante, presente, que está discutindo o território e participando de todas as lutas locais que são necessárias para garantir saúde, educação, assistência. Por esse lado, quando eu escrevi no mestrado sobre isso, eu deixei essa perspectiva, que a gente foi ousado em criar uma organização local formada por moradores. Não é comum você ter uma ONG gerida por pessoas da comunidade. A maioria delas é gerida por pessoas de fora.

Esse semestre nós apoiamos 40 empreendimentos locais. Então, a gente consegue ter uma importância no nosso território. E isso ajuda realmente a favela a ser um espaço de mais ações, mais projetos, de maior relevância política. O Preventório cresceu muito, se fala hoje em 30 mil moradores. É uma favela muito importante da cidade.

A Seguir: Niterói – Além da economia, quais são as frentes de atuação do Banco do Preventório?

Marcos Rodrigo – Temos também o Meio Ambiente e a Cultura. Na Cultura, nós oferecemos três oficinas para a comunidade: percussão, dança de salão e dança do ventre, mas queremos chegar a cinco. Fazemos eventos culturais, temáticos, temos uma roda de samba cultural também.

No Meio Ambiente temos ações muito grandes, que é o projeto de pesca artesanal que envolve quatro grandes comunidades, fora o Preventório.  Estamos também com uma cooperativa de reciclagem, um bazar solidário e um projeto de pesquisa sobre a resiliência comunitária, as emergências comunitárias.

A Seguir: Niterói – Como você avalia a inclusão social na cidade de Niterói para a população de baixa renda das comunidades?

Marcos Rodrigo – Em Niterói você tem uma rede de educação e assistência, por exemplo, que consegue abarcar as famílias que estão precisando de ajuda, com renda baixa, que são cadastradas no Cadastro Único da assistência social, e consegue abarcar uma grande maioria das crianças que estão nas escolas. Eu poderia dizer, usando uma régua, que Niterói estaria num nível básico de inclusão social. Por outro lado, se você comparar com outras cidades, nem isso é garantido. Então, a cidade atende pelo menos nesses dois eixos importantes, a educação e a assistência. Eu poderia também dizer que o sistema de saúde da cidade é bem territorializado. Mas se a gente começar a aprofundar um pouco mais, que é o que é preciso para que as pessoas saiam da pobreza, por exemplo, como o acesso à universidade, o acesso ao trabalho digno, uma renda digna, isso não está sendo garantido nem para a classe média. Até por fatores econômicos que extrapolam a territorialidade de uma cidade.

Em termos de inclusão não dá para se pensar como um muro, só em Niterói. Eu acho que, no geral, nós estamos vivendo uma exclusão social muito grande. Quando a gente tem uma conquista, por exemplo, eu conseguir acessar um espaço muito privilegiado que é a universidade, quando eu olho para o lado, não tem ninguém com as minhas características na minha turma, na minha linha de pesquisa. Isso é uma demonstração da dificuldade. A economia solidária me ajudou a chegar nesse lugar, mas tem também o esforço de chegar e ficar, conseguir me manter.

A gente vive num país com uma desigualdade muito grande. Ao mesmo tempo que a gente vive nessa exclusão, a gente, que vem de baixo, é muito resiliente, a gente tira leite de pedra para conquistar os espaços que a gente conseguiu. Mas isso não cancela a exclusão social. A gente vive nessa tensão entre a ausência que é a exclusão social e a resiliência que é a nossa potência.

A Seguir: Niterói – O que eu não perguntei que você gostaria de falar?

Marcos Rodrigo – Eu gostaria de acrescentar que essas experiências tentam ser uma alternativa a um sistema econômico-financeiro atual, que é um sistema muito excludente, que cobra tarifas altíssimas que consomem quase 30% da nossa renda, que não considera como valor as economias das favelas porque elas não são titularizadas, elas não têm registros. Só que a gente tem 900 milhões de pessoas, segundo a ONU, vivendo em favelas. Então, é uma economia muito grande.

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