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Sergio Torres

Sergio Torres trabalhou nos três maiores jornais do país ao longo de 35 anos. Mas se interessa mesmo é pelas notícias locais de Niterói, onde nasceu e sempre viveu. 
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A morte de Nelson Gonçalves

O médico Marcio Torres e o pai, Renato (à esquerda). Foto arquivo família
O médico Marcio Torres e o pai, Renato (à esquerda), em foto do arquivo da família

Não virei jornalista por influência familiar. Meu pai era médico; minha mãe, dona de casa. Escolhi a profissão porque gostava de ler jornal, nada mais que isso. E acreditava não ter a menor vocação para as opções tradicionais à época: engenharia, advocacia e medicina. Quase todos os meus amigos fizeram vestibular para uma dessas carreiras. Corri delas.
Era natural que, filho mais velho de cinco irmãos, pretendesse virar médico. Meu pai era bastante conceituado em Niterói e no Rio. Pois foi Marcio Torres quem me disse algo do tipo: “Vai ser o que você quiser. Não quero filho médico. Esse negócio de filho seguir a carreira do pai por conveniência é estupidez”.
Aprendi a ler jornal com ele. Todos os dias, primeiramente o “Correio da Manhã”. Quando o diário acabou, o “Jornal do Brasil”. Jamais “O Globo”, por quem nutria tremenda repulsa pelo apoio do jornal à ditadura. Se tem um sujeito que meu pai detestava era Roberto Marinho. Tanto que há uns quatro anos perguntei a ele se gostaria de ganhar de presente a biografia do já então falecido jornalista, escrito pelo colega Leonêncio Nossa.
“O livro é bom, pai. Conheço o cara que escreveu”, disse a ele, que respondeu. “Pode ser bom, mas não vou perder meu tempo com Roberto Marinho.”
Lia também “O Pasquim”, os jornais nanicos “Movimento” e “Opinião”, a revista “Veja”, especialmente a página de Millôr Fernandes, de quem era grande fã. Quando acabava de ler, eu pegava tudo e lia também. Assim, decidi, cedo até, que seria jornalista.
No início dos anos 80 ele começou a ler a “Folha de S. Paulo”, que assinou até a morte, esta semana. Era um entusiasta da coluna de Janio de Freitas. E também de Carlos Heitor Cony, Otto Lara Rezende, Cláudio Abramo, Newton Rodrigues, Flávio Rangel, Tarso de Castro, Tostão e Antônio Prata, este uma descoberta bem mais recente que os demais.
Eu trabalhei na “Folha” de 1988 a 2010. Sempre na Sucursal do Rio, sempre com Janio por perto. Era um cara por quem eu tinha e tenho enorme respeito. Janio ocupava uma sala só dele na sede da Presidente Vargas. Todo dia estava lá trabalhando. Como era muito educado e acessível, aos poucos fomos conversando.
Tive a chance de várias vezes falar com Janio sobre a admiração que meu pai sentia por ele. Uma ou duas vezes botei os dois para conversar brevemente por telefone. Janio nunca deixava de me perguntar quando nos encontrávamos: “Como está o nosso clínico?”.
Devo a meu pai meu primeiro emprego como jornalista, em “O Fluminense”, principal diário niteroiense no início dos anos 80. Eu me formei pela UFRJ em dezembro de 1983. Em meados daquele ano, terminara o estágio no Serviço de Documentação Geral da Marinha. Estava sem emprego.
O dentista do meu pai chamava-se Conrado. Era também dentista de Ephrem Amora, superintendente do Grupo Fluminense Comunicações. Conrado falou com Ephrem se poderia dar estágio para um garoto filho de um médico amigo dele que estava para se formar.
Ephrem mandou me chamar. Era um sujeito que não sorria. Perguntou algumas coisas e, acho, mandou eu preencher uma ficha.
O tempo passou, nada aconteceu, já tinha até esquecido aquilo. Até que em 1º de novembro de 1983 recebi um telefonema.
“Aqui é Oséas de Carvalho, editor geral de ‘O Fluminense’. Você sabe escrever? Tem uma vaga de estágio aqui, você se candidatou, aceita?”.
“Sim”, respondi.
“Então começa amanhã”, rebateu ele.
Aí deu-se o problema. O “amanhã” de Oséas era Dia de Finados. Eu já tinha vários programas para o feriado. Contei, então, a primeira das muitas mentiras dirigidas a um chefe.
“Caro Oséas, prometi levar minha mãe ao cemitério para prantear meu avô, recém-falecido.”
“Então começa depois de amanhã”, admitiu o veterano jornalista.
Na verdade, meu avô, o velho desembargador João Machado, estava enterrado havia oito anos, em Manaus, a milhares de quilômetros de Niterói.
O fato é que comecei em 3 de novembro e nunca mais parei. São quase 39 anos no jornalismo.
Tive a ajuda de meu pai em muitas reportagens sobre Niterói. Sempre perguntava a ele sobre episódios históricos, como a revolta das barcas, que presenciou em 1959, e o incêndio do circo, em que morreram 503 pessoas e centenas sofreram queimaduras muito graves. Meu pai se orgulhava muito do trabalho que realizara com colegas da medicina na tentativa de salvar os queimados. Acho que ele foi o último daqueles médicos abnegados e brilhantes a nos deixar.
Uma história muito curiosa aconteceu quando internou-se no antigo Procordis o cantor Nelson Gonçalves, com dores no peito e dificuldades respiratórias. O artista morava em Niterói.
Telefonei para meu pai e perguntei se ele me conseguiria alguma informação sobre o estado de saúde do artista.
O velho, que não gostava nem um pouco da qualidade do atendimento médico prestado pelo Procordis, muito menos de quem mandava no hospital, limitou-se a dizer.
“Sergio, pega a caneta e o bloco.”
“Já tô com a caneta e o bloco, pai.”
“Então anota aí: a música popular brasileira está prestes a perder um dos maiores cantores de sua história.”
Não deu outra.

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