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Niterói é a quarta cidade do estado com maior número de casos de racismo. Um estudo de crimes raciais feito há três anos pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) mostrou que a cidade ficava em quarto lugar como a que mais registrou ocorrências dessa natureza no ano de 2019. Só nos últimos dias a cidade teve dois casos que ilustram bem o cenário de aflição e medo da pessoa negra. O vendedor de balas assassinado a tiro na praça Arariboia por um PM à paisana e a denúncia de racismo na mais conhecida churrascaria de São Francisco.
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Para analisar esses dois casos e outras questões relacionadas ao racismo estrutural, o A Seguir: Niterói conversou com o juiz negro André Luiz Nicolitt, que estuda a questão do reconhecimento de suspeitos, tanto presencial como por fotografias, e conhece profundamente as falhas do sistema. Autor de sete livros – entre eles o “Manual de Processo Penal”, com mais de mil páginas que passou da 10ª edição, o juiz diz que negros no Brasil ainda sentem o peso do regime escravagista.
Confira a entrevista abaixo:
A Seguir: Niterói: Recentemente tivemos alguns casos de morte de pessoas inocentes em decorrência do racismo, como o vendedor de bala, de 21 anos, em frente à estação das barcas de Niterói, e o congolês em um quiosque na Barra. De que forma esses dois casos dialogam entre si e como eles são um retrato da sociedade?
André Luiz Nicolitt: A gente vive um cenário social no Brasil e de certa forma no mundo no qual as pessoas negras ainda sofrem o peso de um regime escravagista, no qual os corpos negros eram coisas matáveis, que se podia usufruir e descartar. Isso habita o imaginário das pessoas até hoje. É claro que esses episódios violentos ocorrem mais com pessoas negras periféricas, mas as pessoas pretas que encontram uma visibilidade social não escapam desse regime.
Sobre o caso da funcionária do Tribunal de Justiça, que foi espancada e agredida verbalmente numa churrascaria de Niterói, se mesmo uma pessoa com o seu poder de consumo – tendo em vista que está em um restaurante considerado caro – o único fato de ela ter a pele preta faz com que ela seja hostilizada e agredida, imagina o preto periférico que trabalha como ambulante? Esse é o caso do vendedor de bala Hyago. O que não se pensa desse corpo preto?
O caso da funcionária do Tribunal de Justiça foi registrado na Delegacia de Polícia de Jurujuba (79ª) como lesão corporal e ameaça. O que cabe no âmbito do Judiciário?
O caminho natural é que a polícia ouça todas as partes, examine o material, analise as imagens, ouça testemunhas e encaminhe um relatório ao Ministério Público. Por exemplo, a injúria racial é um crime de ação público incondicionado e nesse caso o Ministério Público é obrigado a analisar. E tem a lesão corporal que, dependendo do grau da gravidade, a vítima deve se apresentar na delegacia, como já feito.
Agora o próximo passo é a conclusão da investigação pelo delegado, a opinião do Ministério Público sobre os fatos e esperar que, com os elementos que comprovem a existência desses crimes, o MP possa fazer a denúncia e a justiça efetivamente possa analisar o caso. Como o caso teve grande repercussão, não me parece que irá demorar a se chegar a uma conclusão.
A população negra sofre mais e tem mais mortos pela PM. Quais são os fatores que agravam isso?
Eu acho que os números são efetivamente grandes. Mas acho que a sensação de aumento que a gente tem na verdade é devido à percepção maior que temos agora com as redes sociais. Sem contar que com o compartilhamento de notícias, os casos se tornam mais visíveis. De um tempo para cá, o racismo se tornou um tema muito presente no Brasil e no mundo e pôs em cheque o racismo reverso, gerando uma tensão muito grande. No Brasil, nós temos há algum tempo a política de cota nas universidades. Isso significa que todas as vagas das universidades públicas, que são as mais concorridas e de difícil acesso, eram, antigamente, disputadas pela elite branca.
As pessoas que estudaram em colégios caros e que pagaram cerca de R$ 3 mil de mensalidade hoje disputam muito menos vagas, que agora são destinados a pessoas negras, aos indígenas. Agora pensa só na perda desse privilégio. As pessoas ainda não estão acostumadas com isso. Ver o filho da funcionária que trabalha na sua casa “tirando”a vaga do seu filho é algo afrontoso e isso repercute nessa tensão política racial no Brasil, dando mais visibilidade à temática e, consequentemente, aos casos de violência em decorrência do racismo.
Qual sua opinião sobre a postura de PMs ao agir, em muitos casos, de forma agressiva e violenta?
Assim como toda instituição que pertence ao Estado, que é estruturalmente racista, no âmbito da Polícia Militar não é diferente. As instituições acabam por refletir esse racismo. A gente não consegue pensar numa instituição que seja imune a essa estrutura, seja polícia, Ministério Público, o Judiciário, a escola. É natural que a polícia, por ser uma instituição numerosa, mal treinada, mal estruturada mal remunerada e pouco valorizada reproduza de forma intensa esse racismo.
O que ocorre com a polícia, nesse caso, é ainda pior, porque diante desse cenário, ela funciona como um braço armado do Estado. E por isso ela reflete o racismo de acordo com sua forma de atuar. A polícia tem o exercício do uso da força, de modo que quando ela reflete esse racismo, é com maior vigor.
De que forma o recurso de reconhecimento por foto é falho e como ele pode ser um elemento importante caso utilizado da forma correta?
Primeiro, temos que fazer uma distinção. No Brasil, não existe muito bem reconhecimento por foto, que é uma técnica sofisticada, regulada, protocolada, de se fazer uma investigação. No Brasil, ocorre algo muito pior: a identificação criminal através de algo suspeito. E isso é muito grave.
As pessoas formam, sem qualquer regra, fiscalização e controle, bancos de suspeitos com álbuns de fotografia e submetem as vítimas a examinarem esses álbuns de suspeitos. Isso do ponto de vista da psicologia, do testemunho e dos estudos mais avançados a esse respeito é algo além de inconstitucional, absolutamente falho. Mesmo o reconhecimento de pessoa presencial, que obedece a rigorosos critérios, também é falho, apesar do nível ser menor, já que se tratam de provas falíveis que dependem da memória humana, que é algo falho.
Agora você imagina a investigação criminal por álbum de suspeitos… As falhas são potencializadas. Nós estamos muito mal nesse cenário. Para complicar, há uma supervalorização desse tipo de atividade investigativa por parte da polícia, do Ministério Público e do judiciário. Com isso, a gente amplifica as possibilidades de erro judiciário.
Quais são as principais ocorrências que envolvem pessoas negras?
Majoritariamente roubo, seguido de estupro.
Quais atitudes racistas são mais recorrentes no meio Judiciário? Você já vivenciou algum episódio?
Todos os lugares em que a gente habita há casos de racismo, em maior ou menor escala. Se você entrar no Tribunal pela garagem e o porteiro olhar para você, ele pode achar que você é motorista de algum funcionário. No caso de elevadores privativos, só para juízes, por exemplo, também é bem comum ser confundido. Conheço algumas juízas negras que em algumas audiências foram perguntadas sobre onde estaria a juíza…
Tendo como base que ler é educar, quais leituras você recomenda sobre questões relacionadas ao racismo?
Eu acho que isso é realmente importante, estudar sobre o tema. Hoje existe uma produção incrível sobre a questão racial. Uma coisa banal é as pessoas proliferaram piadas de cunho racial e acharem normal. Nesse sentido, o livro “Racismo Recreativo” do Adilson José Moreira vai, com profundidade acadêmica, demonstrar o quanto isso é preocupante. No livro, ele faz referência ao Freud, mostrando como o humor pode ser agressivo, sem que você se coloque numa posição ruim na sociedade. Mas, na verdade, quando você conta uma piada, você tem o mesmo menosprezo, mesma diminuição, sem ter o linchamento social.
O Nei Lopes também tem o ótimo “Racismo explicado aos meus filhos”. A Djamila Ribeiro também tem um livro interessante, o “Pequeno Manual Antirracista”. Acho que é um caminho. Se as pessoas estudarem um pouquinho vão ver que não tem mais espaço para fazer piada sobre negros, assim como trans, homossexuais…
Sobre o juiz:
Andre Luiz Nicolitt é Doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa-Lisboa, Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, graduado em Direito pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro – TJRJ. Professor no Curso de Pós-Graduação em Ciências Criminais na UERJ, no curso de Especialização em Direito e Processo Penal na Universidade Cândido Mendes. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação stricto sensu em Direito da Faculdade Guanambi.
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