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Foi um desfile de tirar o fôlego, difícil de se colocar defeito. Nos 40 anos da Marquês de Sapucaí, a escola de Niterói Viradouro conquistou o título – e os jurados – com o enredo “Arroboboi Dangbe!”, baseado nas crenças voduns dos povos africanos que viviam na Costa da Mina, região onde atualmente está Gana, Togo, Benim e Nigéria. O enredo mostra a força da mulher negra e o culto à cobra sagrada e sabedoria africana e saudou o vodum, palavra que significa espírito na língua bês, da serpente.
Leia mais: O coração da Viradouro bate na bateria e promete desfile vibrante
A Viradouro, agora tricampeã, foi a última a desfilar do Grupo Especial na Marquês de Sapucaí e encantou desde a abertura do desfile com uma serpente fluorescente, que abriu caminho para a passagem da escola.
O A Seguir preparou uma série de reportagens sobre as pessoas que viveram com intensidade os bastidores da escola, como a bailarina e coreógrafa Priscilla Motta. Em entrevista ao A Seguir, ela fala das principais apostas na concepção artística da coreografia da Viradouro. Priscilla também conta quantos testes foram necessários para o grande trunfo da noite, o “truque” da serpente, e não esconde a emoção ao falar do primeiro ensaio de rua na Avenida Amaral Peixoto e da sua conexão com Niterói, onde tem família.
A serpente foi um dos pontos altos do desfile. Ao A Seguir, ela conta como surgiu a ideia de colocar uma pessoa no comando e não um robô:
– A ideia de trazer uma serpente porque Dangbé é a serpente divinizada, o vodum Dangbé. A gente trouxe a serpente também na sua forma terrena. Foi um processo muito complexo porque a gente teve que chegar numa proporção da serpente. Não é só fazer ela andar, mas fazer com realismo, para não virar uma estrutura que não parecesse uma serpente. A serpente era um skate elétrico com uma pessoa dentro dirigindo por controle remoto. Fizemos muitos testes com quatro cobras de tamanhos diferentes – explica.
O A Seguir também conversou com a maquiadora da Viradouro Christina Gall, que já possui 6 anos atuando na escola.
Maquiadora há 30 anos, a niteroiense Christina Gall é enfática ao falar da ausência da maquiagem como quesito de avaliação das escolas de samba:
– Quem sabe um dia a gente tenha um quesito maquiagem. Afinal, no Oscar tem, não é verdade? Então porque não no Carnaval do Rio que sempre surpreende com suas criações? – diz.
Para esse desfile a Viradouro contou com 140 maquiadores, 15 franceses que vieram estagiar no carnaval, além de 5 maquiadores alunos do programa EMPODERADAS, que atende mulheres vítimas de violência.
Outro entrevistado foi o percussionista Gabriel Policarpo. Esse foi seu 25º desfile da Viradouro, sua escola de formação. O músico, nascido em uma comunidade próxima à Viradouro, conta ao A Seguir como as escolas de samba têm se profissionalizado, com a passagem do tempo, e como os instrumentistas têm investido em estudos de aperfeiçoamento, com a maior competição e exigência dos jurados.
Ele também revela um pouco dos bastidores da Viradouro, fala da rotina dos ensaios, do empenho e paixão dos ritmistas, assim como de todos os setores artísticos da escola. Ele também lembra da comoção do dia em que a escola foi campeã no Carnaval e do momento mais frustrante de sua história, quando foi rebaixada do Grupo Especial.
– Acho que o que mais mudou foi o profissionalismo de todos os setores da escola. Tudo evolui muito. Apesar de a escola de samba carregar muita tradição, muita raiz, ao mesmo tempo ela é um movimento constante de renovação. Todo ano muda o enredo, a administração, os componentes, os diretores. Na bateria, por exemplo, a cada ano tem uma bossa nova. Tem a ala das crianças, gente nova chegando… – revela.
O ponto de destaque foi a iluminação cênica, novidade do Carnaval deste ano. A escola foi uma das que mais utilizou o recurso. No momento em que as luzes da avenida apagavam, sobressaíam as cores neon das fantasias e do abre-alas, especialmente no primeiro setor do desfile.
Vodum era o nome usado para representar as divindades ou forças invisíveis do mundo espiritual Segundo a tradição original, as mulheres são escolhidas e iniciadas em ritos de louvor à serpente sagrada conhecida como Dangbé — a cobra que engole a própria cauda para dar equilíbrio. Segundo estes orixás, nada começa nem termina, tudo avança, tudo retorna.
Estas mulheres formavam uma poderosa irmandade de guerreiras voduns, com inteligência, fé, armas implacáveis e espiritualmente invencíveis.
O enredo foi desenvolvido pelo carnavalesco Tarcisio Zanon e convida a um passeio pela história, ao levar uma mensagem de defesa de liberdade de culto e do respeito entre as religiões.
Esse é o segundo título de Tarcisio Zanon. “A Viradouro é a escola que me fez amar carnaval. Eu me apaixonei pela escola em 1997, aos 19 anos de idade, e hoje estar aqui é um sonho realizado. Queria agradecer a todos da escola. Esse enredo nasce de uma forma muito intuitiva como uma forma desmitificar o vodum”, afirmou Zanon após o anúncio do título.
Rainha da bateria da Viradouro, Erika Januza acompanhou a apuração direto da quadra da escola, em Niterói, e comemorou a vitória nos braços da comunidade. Ela chegou ao Rio no início da tarde após compromissos em Belo Horizonte que duraram até a madrugada da quarta-feira, mas não desanimou com a maratona e até transmitiu a apuração em suas redes sociais. Quando o resultado foi anunciado, ela não conteve as lágrimas e caiu no choro.
A escola foi elogiada por diversos quesitos: alegorias e fantasia, Evolução e Harmonia. A agremiação foi muito elogiada.
A bateria, puxada pelo mestre Ciça, também trouxe força ao desfile e puxou o canto das arquibancadas para um samba difícil de cantar, considerando a quantidade de palavras estrangeiras.
O samba-enredo, defendido pelo veterano Wander Pires, funcionou e foi cantado pelos componentes. A bateria de mestre Ciça foi outro ponto alto.
A comissão de frente, idealizada por Priscila e Rodrigo Negri, impressionou pela sua estética e foi ovacionada pelo público. Houve apenas um pequeno deslize após o segundo módulo de jurados, quando o componente que rastejava, simulando uma serpente, quase foi “atropelado” pelo elemento cenográfico.
Foram 3 mil componentes dividos em 23 alas, 6 carros e 2 tripés. 1º casal: Julinho Nascimento e Rute Alves. Bateria: Mestre Ciça.
Participaram do desfile Erika Januza (rainha de bateria), Luana Bandeira, Egili Oliveira, Lore Improta e Thays Busson.
A escola venceu em 2020 com o enredo “Viradouro de alma lavada”, que falou sobre o grupo das Ganhadeiras de Itapuã, quinta geração de mulheres que lavavam roupa na Lagoa do Abaeté e faziam outros serviços em Salvador em busca da compra de sua alforria.
Também venceu em 1997 com o enredo “Trevas! Luz! A Explosão do Universo”, sob a batuta do gênio carnavalesco Joãosinho Trinta, que estava na escola desde 1994.
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