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Violência doméstica ocorria antes e não acabará depois da pandemia, diz especialista

Por Redação
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Em Niterói, número de casos diminuiu nos meses de isolamento social
professora psi uff
Professora do Instituto de Psicologia da UFF, Paula Land Curi
Em entrevista ao A Seguir: Niterói, a professora do Instituto de Psicologia da UFF Paula Land Curi traz reflexões sobre como a pandemia pode agravar e intensificar as ocorrências de violências domésticas, mas também subnotificar os casos, devido à restrição de atendimento nos órgãos de fiscalização e acolhimento. Em Niterói, por exemplo, houve redução na procura por ajuda. Também coordenadora do Programa “Mulherio: tecendo redes de resistência e cuidados” da UFF, a especialista alerta que relacionar diretamente as violências domésticas à pandemia pode criar uma falsa impressão de que tudo ficará bem quando a pandemia melhorar.
 
A Seguir: Os órgãos públicos registraram um aumento na violência doméstica durante o período da pandemia. Como a pandemia do Covid-19 pode ter influenciado neste resultado?
 
Paula Land Curi: Infelizmente, violência doméstica não pode ser circunscrita apenas à pandemia. Hoje escutamos muito que a violência aumentou por causa da pandemia. No entanto, ela sempre esteve presente na nossa sociedade. Ela é efeito do patriarcado, do machismo estrutural, e não exatamente de um momento pandêmico. A pandemia pode corroborar para seu agravamento, mas violência doméstica é um problema complexo, que atravessa nossa sociedade, com ou sem pandemia. Parcimoniosamente, talvez possamos dizer que a pandemia agudiza (intensifica) as violências, retira de cena as redes de apoio extensas e dificulta a busca por ajuda nos serviços e dispositivos.
 
Mas prefiro dizer que temos duas pandemias em curso: uma provocada por um vírus invisível que, dada a sua alta taxa de contágio e letalidade, ganhou destaque neste ano, e outra, que inscrita na história das sociedades, desde os tempos mais remotos, seguiu invisibilizada, a despeito do sofrimento e da letalidade que causa aos indivíduos, em especial, do sexo feminino. Não devemos falar de violência doméstica, no singular, mas de violências, no plural. Elas se apresentam de diversas formas e nem sempre são tão evidentes. Normalmente, nunca vêm sozinhas, ou melhor, são possíveis de serem caracterizadas em um único tipo. Seus limites são borrados… As violências domésticas são aquelas que ocorrem no âmbito da unidade doméstica, da família, das relações íntimas de afeto. São caracterizadas como violências físicas, psicológicas, sexuais, morais e patrimoniais.
 
Por que considera a violência doméstica como uma pandemia?
 
Marco desta forma porque, apesar de a violência doméstica ter como suas maiores vítimas meninas e mulheres, isso não quer dizer que ela não possa atravessar outros corpos. Não podemos deixar de dizer que as violências domésticas são violências de gênero, e gênero não é sinônimo de homem ou mulher, mas sim uma categoria que dá sentido às relações de poder. Aproximamos gênero às mulheres porque, em nossa sociedade, a mulher ocupa posição subalterna ao homem, ficando sujeita à dominação masculina.
 
Segundo dados da ONU, sete em cada dez mulheres no mundo sofreram ou sofrerão algum tipo de violência apenas por serem mulheres e, em 2015, o Brasil já ocupava o quinto lugar no ranking mundial de violência contra mulheres. Em 2019, um pouco antes da pandemia, o Observatório de Violência de Gênero da América Latina e do Caribe, apresentava números chocantes, dada a sua magnitude: 3800 mulheres foram vítimas de feminicídio. De lá para cá, parece haver uma tendência ao aumento dos números de violências dirigida às mulheres, tendo gênero como sua motivação, quer no Brasil, quer no mundo.
 
No entanto, a meu gosto, a pandemia veio apenas escancarar outra, mais silenciosa, sorrateira, silenciada, e sempre presente. Penso que, talvez, nem tenha sido exatamente a pandemia – muito embora entenda que o momento repercute nos indivíduos e coletividades podendo servir como estopim -, mas, o fato de estarmos vivendo este momento com recursos tecnológicos que nos permitem discutir publicamente a temática. Mulheres colocam suas vivências nas redes sociais, explicitamos diversas e várias violências vividas e sabidas. Meu receio em colocar que as violências domésticas estão diretamente relacionadas à pandemia é de criar uma falsa relação que aponte que, quando isso tudo passar, tudo ficará bem! As coisas nunca ficaram bem para as mulheres. Este é o ponto. Ser mulher numa sociedade patriarcal, por definição, é viver sob opressão, discriminações e violências.
 
Qual a situação de Niterói em relação à violência doméstica? Houve também o aumento de registros?
 
De acordo com relatório do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ), na comparação de abril deste ano com o mesmo período de 2019, o número de denúncias de violência contra a mulher cresceu 35%. Tal crescimento tem sido pautado em diversos canais informativos. Contudo, em Niterói, a delegada Titular da Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM) demarcou que houve uma redução de 48% nos registros nos meses de abril, maio e junho em relação ao segundo trimestre de 2019. Outros órgãos de defesa da mulher do município também têm percebido tal diminuição. O Centro Especializado de Atendimento às Mulheres (CEAM) da Coordenadoria de Políticas e Direitos das Mulheres (CODIM) indica que a procura por ajuda decaiu em 30% em junho de 2020, quando os atendimentos presenciais foram retomados.
 
A CODIM revela que se percebeu, em comparação entre o mesmo período entre os anos de 2019 e 2020, ter havido um aumento do número de casos de violência de gênero em Niterói – 144 para 155 – apesar de uma diminuição dos registros oficiais de violência doméstica. A delegada, assim como representantes da CODIM, associa tal cenário às subnotificações e as dificuldades de acesso, uma vez que o isolamento social provocou mudanças nas formas de atender os chamados das vítimas. Do mês de março ao mês de maio, o CEAM prestou atendimento apenas remotamente, por meio de ligações, chamadas de vídeo e mensagens, assim como outros serviços que integram a rede de atendimento às violências. Entretanto, mesmo com a ampla divulgação desta mudança, através das redes sociais da prefeitura, a procura foi baixa. A situação hoje é diferente, pois os serviços voltaram a seu funcionamento presencial e bem próximo ao normal.
 
No entanto, a meu ver, esta possível discrepância que se apresentou em Niterói não pode ser rapidamente conclusiva. Afinal, o Sistema de Notificação de Agravos de Violência (SINAN) e os registros de ocorrência policial não se encontram apartados da efetividade e da eficiência das políticas públicas. Dizer que o problema se encerra nos registros é não levar em consideração todas as políticas transversais que se articulam e consolidam a rede de enfrentamento, prevenção, assistência e combate às violências e cultura da paz.
 
Niterói oferece uma boa rede de atendimento e acolhimento às vítimas da violência doméstica?
 
Niterói tem uma rede de atendimento (de serviços) bem articulada, que funciona intersetorialmente, e que mantém suas reuniões ativas (remotamente), visando a dirimir lacunas que se apresentam. A CODIM articula a rede de enfrentamento às violências, em seus vários eixos: enfrentamento, prevenção, atendimento e combate. Este momento de pandemia e de crise sanitária trouxe vários problemas novos, jamais vividos, recomposições necessárias, mas vale dizer do esforço de Niterói para transpô-lo. Ressalta-se, inclusive, a sua Participação na Campanha do Sinal Vermelho e a inauguração da Sala Lilás.
 
Qual a importância da adesão de Niterói a campanhas como o Sinal Vermelho e a Sala Lilás?
 
Niterói foi a primeira cidade a aderir oficialmente à campanha, idealizada pela Associação de Magistrados do Brasil e do Conselho Nacional de Justiça. Ela propõe que as farmácias, local que faz parte de nossos cotidianos e de fácil acesso, pudessem ser também funcionar como rede de apoio a mulheres que sofrem violência. Ou seja, as farmácias passam a servir como um local seguro para que as mulheres peçam ajuda.
 
A Sala Lilás, inaugurada neste mês de agosto, revela a vontade política e o esforço do município para com suas mulheres. A Sala, quarta do Estado, foi uma iniciativa do Tribunal de Justiça do Rio, em parceria com as secretarias municipal e estadual de Saúde, com a Polícia Civil e com o RioSolidário. É um espaço para acolher e prestar atendimento humanizado às mulheres vítimas de violência física e sexual que necessitam fazer coletas de vestígios. Funciona dentro do Instituto Médico Legal (IML), na Travessa Comandante Garcia D’ Ávila 51, Santana. Um local humanizado, que conta com equipe multiprofissional, pensado para mulheres, em um momento de muitas fragilidades.
 
É possível que a pandemia traga mudanças positivas para o futuro deste cenário, no sentido de desenvolver políticas públicas e maior resolução de casos de violência doméstica?
 
Historicamente, nenhuma pandemia foi benéfica para as mulheres. Basta que possamos olhar para como as mulheres as viveram ou “saíram” delas. Pelo que acompanho, os efeitos das pandemias sobre os corpos femininos são deletérios. Muitas violências – domésticas, institucionais e estatais – se acirram. Por que achar que será diferente? O Estado é aquele que mais viola as mulheres, especialmente, quando incorpora e presentifica o poder patriarcal e reforça a dominação masculina. As mulheres são as mais oprimidas pelo cenário pandêmico, vivendo ou não as violências domésticas. Para que este cenário seja minimizado no pós-pandemia, muita coisa terá que ser feita. Isso implica sim o poder público, que deve defender intransigentemente as nossas políticas públicas universais, e financiar políticas que tratem a temática da violência, mas, também implica cada um nós, a coletividade, a sociedade.
 
Não é possível que sustentemos cenários de violências como fazemos. Nós somos responsáveis por isso também. Vemos violações diversas contra meninas e mulheres o tempo todo, mas, de forma geral, a sociedade compactua ao se calar. A população em geral, marcado pelo machismo, consente as violências, seguindo em favor da lógica hegemônica da dominação! Na minha compreensão, o momento nos desafia a transformar, a ressignificar nossos fazeres, efetivar nossas políticas públicas, sermos intransigentes com a garantia de nossos direitos. Mas, só poderemos mudar o cenário se o poder público e a sociedade, de modo não apartados, se ocuparem de efetivamente discutir as mazelas sociais e buscarem caminhos para uma sociedade mais igualitária.
 
O Programa ‘Mulherio: tecendo redes de resistência e cuidados’ surgiu da necessidade de formalização da articulação entre três projetos: a) Por que também temos que falar de violência?; b) A luta pelo direito a se ter direitos e os enfrentamentos cotidianos das minorias; e, c) Promoção de cuidados humanizados às mulheres em situação de gestação, parto e puerpério. Articulados circunscrevem a atuação com e junto das mulheres. Evidenciam as problemáticas que são tratadas: as violências de gênero, a maternidade, a luta por direitos, enfrentamentos cotidianos. São temáticas que se articulam e visam à mulher como cidadã – autônoma e protagonista de sua história.
 
O Programa reafirma a necessidade de fazer insurgir o termo mulherio, utilizado por um jornal feminista da década de 80 – Jornal Mulherio – para retratar não só as mulheres brasileiras, diversas e plurais, mas também o compromisso das mulheres com a luta por direitos e com a construção de uma sociedade democrática. Afinal, diante da atual situação de nosso país, mulheres, atacadas pelo machismo estrutural, veem-se sendo violadas em seus direitos e alijadas de redes de cuidados.

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