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Roteirista da série de tirinhas Confinada, Triscila Oliveira diz que Niterói vai muito além de Icaraí e do Centro

Por Amanda Ares
| aseguirniteroi@gmail.com

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Em entrevista ao A Seguir: Niterói, a roteirista fala das inspirações para a série de sucesso, ciberativismo e HQs
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Escritora de Niterói começou com ciberativismo, e viralizou com críticas sociais cortantes. Arquivo Pessoal

Diferenças sociais, racismo, heranças dolorosas e também as pequenas alegrias da vida do morador de periferia foram a base para o sucesso da série Confinada, que retratou as diferenças na vivência da pandemia de Covid-19 dependendo da classe social, do poder aquisitivo e do CEP. A série que começou online e virou livro foi uma parceria do quadrinista Leandro Assis (46) com a escritora Triscila Oliveira (36), de Niterói, que roteirizou toda a história de Ju, sua família e sua experiência com a patroa da Zona Sul, a influencer e herdeira Fran.

O sucesso foi tanto que os autores decidiram levar essa história para o impresso. Mas, sem recursos, montaram um financiamento coletivo para lançar o livro da Confinada (2021, Editora TodaVia).

Com milhares de apoiadores em todo o país, agora a publicação de 125 páginas e histórias inéditas chega às livrarias.

Triscila, que é nascida, criada e moradora de Niterói,  contou ao A Seguir: Niterói sua trajetória na internet, suas inspirações na literatura, no mundo geek, e a experiência de criar uma das séries de HQ mais populares do país.

Confinada, na prateleira de Autores de Niterói da Travessa de Icaraí. Foto de leitor

A Seguir: Niterói – Em Confinada, você e Leandro Assis falam sobre a vivência da pandemia, no Rio, a partir de perspectivas diferentes: a da empregada doméstica Ju e sua patroa, influencer e herdeira Fran. Além da questão social, o racismo também é  abordado na série. Tem  vida cotidiana,  família, futebolzinho e baile charme, como em uma crônica. O que inspirou você na criação dos personagens e das situações abordadas na série?

A Fran é um megazord de várias blogueiras brancas da internet. E a Ju é a mistura de várias vivências, várias coisas que eu sempre falei na página.

Na verdade não são crônicas, são vivências. A maioria das pessoas pretas, na internet e nas redes sociais, escreve sobre vivências. É muito difícil você passar por uma série de violências, bullying, desde a infância, e ao escrever você não falar sobre isso. Então, no momento que você recebe alguma formação que te esclareça sobre isso, você começa a colocar isso para fora de alguma maneira.

Muita gente se revolta com o mundo, com os pais… eu comecei a expressar essas revoltas escrevendo. Colocava tudo no papel. Quando eu já tinha quase 30 anos, e quando  passei a ter mais contato com informação, internet, computador, foi que eu entendi que o que eu sentia não era individual. Era uma luta coletiva, secular. Então,  criei uma página, chamada Femme, e passeia a publicar ali. Eu compreendi que tudo o que eu sentia não era meu, era nosso.

Trecho da tirinha Confinada. Imagem cedida pela autora.

Quando você começou a escrever e de onde surgiram os primeiros roteiros? Foi a partir de algum curso?

A formação veio através de muitos sites. Eu me considero uma pessoa autodidata, sempre estudei muito. No Liceu (Nilo Peçanha), matei muita aula na biblioteca da escola, onde eu comecei a devorar todos os livros sobre filosofia, sociologia, História… que eu adoro. Então,  comecei a compreender a partir desses livros que minhas lutas eram muito maiores que eu. Só com 28 passei a ter internet na minha casa.

Eu acordava às 5h da manhã para entrar na escola no horário, às 7h, mas tive que parar para trabalhar e ajudar minha mãe. Terminei com 20 anos, quando voltei para terminar em um Ciep no meu bairro.

Venho de uma família 100% negra mas que não tem nenhum tipo de consciência racial, e isso é muito interessante pros governantes do Brasil, porque a gente continua como gado deles. E na minha família, ninguém nunca teve consciência racial. Fui eu sozinha, batalhando com depressão, na época, que eu pensei “eu preciso colocar isso na internet”.

Foi quando criei a página @AFemme. E comecei colocando um conteúdo ou outro, texto de outras pessoas, até vivências que eu não tenho propriedade para falar, como maternidade, gravidez, coisas que eu nunca passei, eu repostava. E criei conteúdos durante 7 anos na minha página.

 E quais são essas vivências que você descreve nas publicações e que serviram de base para a criação das séries Os Santos e Confinada?

O primeiro texto que escrevi foi falando sobre bullying contra crianças negras, já com 30 anos. Foi sobre o meu primeiro contato com bullying, como criança. Eu tinha um caderno, que era o meu diário, um caderno simples de uma matéria. Boa parte do que eu escrevia eu colocava ali, não necessariamente para mostrar a outras pessoas, mas tudo o que eu sentia quando era adolescente eu escrevia ali. Tirei dali muitas coisas, não descrevendo a minha experiência, mas escrevendo coisas a partir do que eu passava.

Triscila começou a escrever como um desabafo, mas muitas pessoas se identificaram com suas vivências. Imagem do livro “Confinada (Todavida, 2021).

Dentro do cyberativismo, falo muito sobre racismo, sobre femininsmo, feminismo negro, e também não tem como não falar de questão de classe. A pobreza no Brasil tem cor, a gente sabe muito bem disso. Por exemplo, no começo de janeiro, a Dea Freitas, do podcast Não Inviabilize, lançou uma vaga exclusiva para mulheres negras, pessoas pretas, PCDS (Pessoas Com Deficiência) e indígenas. E a internet espumou, acusando ela de racismo reverso e exclusão. Ou seja, quando existe uma vaga para pessoas negras, que são excluídas na sociedade, vem as pessoas dizer que isso é uma discriminação contra pessoas brancas.

É engraçado porque eu já passei por muitas entrevistas de emprego e  nem cheguei a entrar na sala da entrevista porque diziam que eu ‘não tinha o perfil da vaga’. Que perfil é esse, se nem meu currículo a pessoa pegou, nem sabia minha qualificação?

E como esses temas se encaixam na série Os Santos, por exemplo? Você se inspirou em alguma pessoa conhecida para criar algum personagem?

Como você e o Leandro Assis começaram a trabalhar juntos na série Os Santos?

A minha página foi desativada ano passado pela plataforma. Foi quando eu conheci o Leandro Assis. Ele estava viralizado com a tirinha “Manteiga”, [da série] “Os Santos”. Deixei um comentário despretensioso, mas o Leandro, que é uma pessoa muito honesta, sabia que uma hora ele ia precisar de alguém pra ajudar ele a roteirizar o conteúdo que ele produzia. Ele já estava procurando alguém, e aí foi que, conhecendo a minha página, por acaso, ele se interessou e rolou o convite pra eu ajudar a produzir o Nos Santos.

E a série “Confinada”?

Em 2020, quando começou a pandemia, a gente criou a Confinada, que seria um Spin off de Os Santos, mas por causa da duração da pandemia, acabou virando uma história paralela.

Fran, a influencer e lifestyle. Imagem do livro Confinada (TodaVia, 2021).

Os HQs infantis são uma porta de entrada para crianças no mundo da leitura. Você era uma leitora ávida na infância?

Minha mãe me incentivou a ler trazendo Turma da Mônica. Eu acredito que foi o primeiro quadrinho da maioria dos brasileiros. E a patroa da minha mãe também enviava para mim livros infantis. Ela me estimulou bastante a ler. Ela é médica, e faz atendimento com médico de família no Preventório, inclusive.

 E a Triscila adulta, que escritores ou escritoras você lê e nos quais se inspira?

Eu me inspiro mais em criadores de conteúdo. As pessoas não levam a sério o criador de conteúdo na internet. Só que uma pessoa negra na internet precisa ter muita certeza do que ela tá falando, porque a gente não pode errar, falar uma besteira e depois pedir desculpas, com a gente vê outras blogueiras brancas na internet. A gente fala a partir de fatos, e para isso a gente precisa ler muito, estudar muito.

O primeiro livro que eu li de uma escritora preta foi “Mulheres, Raça e Classe”, de Angela Davis. E pra mim é muito simbólico que o primeiro livro que eu tenha lido de uma mulher preta tenha sido uma norte-americana, e não uma brasileira. Depois é que eu fui conhecer Conceição Evaristo, Sueli Carneiro, outras autoras menos conhecidas como Vilma Piedade, Carla Akotirene também.

Para quem não consegue ler o Mulheres, Raça e Classe, por achar complicado, pode começar pelo “Quem tem medo do feminismo negro” ou o “Prqueno manual antiracista”, que são livros de bolso, com histórias mais nossas, e acessível.

-E quadrinista, tem um preferido?

Quadrinistas eu gosto da Laerte, da Helô Dângelo, que também lançou um livro na pandemia chamado “Isolamento”, muito bom. Tenho acompanhado muitas mulheres no universo HQ, porque é um universo da cultura nerd e pop que ainda é dominado por homens. Existe muito machismo, muito racismo, por exemplo.

Tem um vídeo viral do Stan Lee, que mostra que todas as histórias de super heróis são analogias, porque todo artista cria a partir da sua visão de mundo. O Capitão América é um imigrante que luta pelo país onde ele se sentiu acolhido. Os X-Men são pessoas diferentes que estão lutando pra serem incluídas.

A trilogia Divergente e a trilogia Jogos Vorazes…Tem gente que não entende que aquilo ali é uma analogia sobre uma realidade que existe. Pessoas lutando para ter comida, para sobreviver. Isso não é uma utopia. São grupos de pessoas de grupos diferentes que se vêm unidos contra uma coisa que é maior que eles, um sistema, onde são todos segregados. Divergente eu gosto mais. Quando uma pessoa é ‘divergente’ é porque ela tem todas aquelas qualidades diferentes. Quando eu vi, eu pensei ‘como as pessoas não enxergam isso?’.

 No seu trabalho, tanto na sua página quanto nos roteiros para a tirinha, você demonstra como o racismo piora diversos problemas sociais já existentes. Que ações você considera importantes para superar os problemas sociais atravessados pelo racismo, por exemplo?

Por exemplo, as políticas afirmativas, as cotas, por exemplo. As cotas são a primeira política de inclusão de pessoas negras desde 1888. É o primeiro passo para a inclusão de pessoas negras no ensino superior. Sobre a mudança nas regras de bolsa do Prouni, por exemplo, eu fico chocada. Não tem nem mais adjetivo para falar.

Você nasceu e sempre morou em Niterói. Gosta de morar na cidade? Você, que é muito observadora, vê algo que poderia ser melhor?

Eu não sei se o meu bairro pertence à grande Pendotiba ou à Região Oceânica. Gosto muito da minha cidade, não tenho vontade de deixar Niterói, não. Mas poderia ser melhor. Poderia se descentralizar de Icaraí e do Centro da cidade. Existe mais Niterói do que isso.

 Depois do sucesso de Confinada, que terminou ano passado, os fãs agora acompanham a volta da série Os Santos. O que você e o Leandro Assis planejaram para a família Santos, esse ano?

Os Santos vão virar livro pela TodaVia. Mas primeiro, a gente está produzindo essa história inédita que todos os apoiadores que contribuíram com a vakinha pro lançamento do livro Confinada, vão receber. Vão ser 10 páginas.

E você, tem algum projeto autônomo em vista? Podemos esperar um livro da Triscila Oliveira em 2022?

Eu estou rascunhando um livro, a editora TodaVia também está interessada. Eu ainda não sei dizer qual vai ser o gênero, mas posso dizer que é um livro de acolhimento, para mulheres, principalmente para mulheres negras. Não vai ser quadrinho, mas estou estudando ilustradores.

Noite de autógrafos na Travessa de Icaraí

Fãs poderão ter livro autografado pela  roteirista. Foto de leitor.

Para acompanhar o trabalho da roteirista e ciberativista, que tem mais de 130 mil seguidores em sua rede social, basta seguir o @soulanja . Os fãs podem contribuir com a produção da autora, a partir de uma assinatura mensal de seus conteúdos. Também é possível fazer contribuições espontâneas. Informações, na página de Triscila.

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