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Roberto DaMatta: ‘precisamos pensar melhor o voto. E as instituições’

Por Luiz Claudio Latgé
| aseguirniteroi@gmail.com

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No aniversário do “A Seguir: Niterói”, o antropólogo fala sobre a pandemia, o futuro e Niterói: ‘quando eu vejo Icaraí, a praia ainda é deslumbrante’
Roberto DaMatta: 'precisamos pensar melhor o voto. E as instituições'
Roberto da Matta em seu escritório, em casa: o mundo cabe em Niterói. Foto: Acervo pessoal

O antropólogo Roberto DaMatta viveu entre os índios Gaviões e Apinayé, na Amazônia, morou nos Estados Unidos, passou temporadas na Europa, trabalhou a vida toda no Rio, mas mantém seu endereço fixo na cidade em que nasceu, em 1936: Niterói. Em artigo recente publicado no jornal O Globo, ele falou sobre o ator Paulo Gustavo, convencido de que só poderia ter surgido em Niterói, cidade a que se refere como aldeia. Na aldeia de DaMatta, aparece a forte relação com a paisagem, bicicletas, mulheres bonitas, a praia, cinemas e um sentimento de pertencimento. Não que seja um paraíso perdido, isolado de todo o Brasil, não: vê na cidade problemas parecidos com os do Rio, que perdeu o encanto e toda a maravilha. Para ele, o Rio resiste na melhor vista que se pode ter da cidade, a vista de Niterói.

Ao completar um ano de existência, o A Seguir: Niterói apresenta, nas próximas semanas, uma série de entrevistas com personalidades que vivem e pensam a cidade como um lugar de desafios, conflitos, afetos, encontros e realizações, o território da vida em sociedade. O antropólogo Roberto DaMatta é um pensador singular, autor de vasta obra dedicada a estudar o Brasil e o brasileiro. Uma sociedade fundada sob valores da aristocracia, que perpetua o compadrio e leva ao extremo o exercício da máxima “sabe com quem esta falando?”, tema recorrente da sua obra. DaMatta escreveu sobre a cultura, o carnaval, o jogo do bicho, a opressão da mulher, o patrimonialismo, a violência no trânsito… Nos momentos de folga, entre as aulas na PUC, artigos para o Globo e para o Estadão, livros e conferências, DaMatta gosta mesmo é de sentar no Seu Antônio e passar a tarde com os amigos. Quer dizer, gostava. Na pandemia, se protege em casa, num condomínio da Região Oceânica. Mas a janela mira o mundo. E o restaurante Seu Antônio tem delivery.

A entrevista começa antes da primeira pergunta, quando comento o artigo em que falava de Paulo Gustavo e sua relação com Niterói. No Globo, ele dizia que era fruto da aldeia, que só as peculiaridades de Niterói poderiam explicar a forma como se apresentava. De certa modo, o mesmo que Caetano Veloso enxergou quando se referiu a ele como “este talento que Niterói nos deu”. A conversa será sempre entremeada por recordações da cidade.

ROBERTO DA MATTA: Esse humor do Paulo Gustavo só podia mesmo ter nascido em Niterói. Ele se movia pela cidade, com naturalidade, na aldeia. Era gay, sem nunca ter levantado bandeira. Ele simplesmente fez a prática. Ele era incontrolável, imprevisível, não tinha script para ele. Eu vi aquela “peça da mãe”, logo que começou, levado pelo meu irmão, que conhecia Dona Déa Lúcia. O Paulo Gustavo traz à tona os relacionamentos complicados que temos com a nossa mãe, o autoritarismo brasileiro, que começa dentro de casa. Ele expôs as relações da família. As expectativas da família em relação a você, que lança nas costas do brasileiro uma tonelada de obrigações. E você tem que reproduzir isso, porque tem todo o peso da autoridade do seu pai, do seu avô, da família.

(Agora, sim, a entrevista) A Seguir: Niterói: O senhor sempre teve um atividade intensa e agora com a pandemia está preso em casa. Como está sendo este período?

ROBERTO DAMATTA: Vou dizer uma coisa, com sinceridade, eu fui me tornando muito sedentário. Para mim a diferença foi pequena. É claro que você deixa de ir aos lugares que gosta, perde o contato com os amigos.

Eu viajei muito. Fui conhecer os índios Gaviões, na Amazônia, que quase não tinham contato com a civilização. Fui estudar em Harvard, morei fora. Trabalhei a vida toda no Museu Nacional, no Rio… Mas sempre vivi muito a cidade. A praia, os cinemas, o Petit Paris (casa noturna de Icaraí, que fez sucesso nos anos dos anos 50 aos 70 e foi palco da MPD). Depois, a minha movimentação foi se restringindo. Eu ia todo dia para o Museu Nacional, que pegou fogo… Ainda dou aula na PUC, toda quinta-feira, mas hoje é pela internet. Fico mais em casa, prestando atenção nos netos. E com muito cuidado com a pandemia.

Minha secretária e o marido tiveram Covid, ficaram muito mal, mas sobreviveram. Aqui no condomínio se estabeleceu uma discussão num grupo de vizinhos sobre a vacina, se deveriam tomar ou não, porque uma vizinha era comunista, a outra teve medo de virar jacaré. É inacreditável como uma pessoa com algum estudo pode pensar assim… Parece que ninguém lê mais. Nem precisa ler muito…

Já tomou a vacina?

– Já tomei a vacina. As pessoas precisam se dar conta que a população envelheceu, tem muita gente que tem este perfil. Papai morreu aos 82. Mamãe morreu aos 85. Mas ela tocava piano, isso faz a pessoa mais longeva. Niterói é um exemplo, as pessoas vão viver mais. Há recursos para isto, é preciso ter cuidado.

As aulas continuam pela internet?

– Gosto muito de dar aula. Agora estou dando um curso de pós graduação na PUC, “Rotinas e rituais”. Pela internet. Faço muita coisa pela internet. Vou a lugares incríveis, vou a festas maravilhosas, mulheres lindas. Tudo pela internet. Para um cara que nasceu em 1936 e teve que subir no alto de um prédio para ver uma mulher pelada… É incrível. E nem preciso sair correndo do prédio, porque o pai dela me apontou uma arma… Então está tudo bem mais seguro pela internet

Voltamos ao começo, a juventude em Niterói. Como surgiu a antropologia na sua vida?

– Eu estudei na Faculdade de Filosofia, ali em São Domingos. Foi ali que conheci minha mulher. Diziam que era curso para mulher. O primeiro impulso intelectual que eu tive era para ser escritor. Eu escrevia uns contos e levava para o Roberto Gonzaga, que era filho do dramaturgo Armando Gonzaga. Ele me orientou muito. Se você quer escrever, ele dizia, você tem que ler. E eu lia muito. Pensava: posso ser professor de história e continuar escrevendo. Entrei no Museu Nacional como estagiário. E ali conheci o professor Roberto Cardoso de Oliveira, que tinha trabalhado com o Darcy Ribeiro e dava um curso de antropologia. O que me ajudou muito foi falar inglês. Tinha aprendido nos filmes americanos com Nat King Cole e Frank Sinatra. O cinema auxiliava. E Niterói tinha todos aqueles cinemas. O cinema Icaraí, o Central, tinha o São Bento…

(vamos ter que voltar a este ponto da trajetória depois, porque os cinemas devolvem a conversa para a cidade)

… E tinha o Petit Paris. Foi ali que começou o Sérgio Mendes. A gente tinha a cidade inteira. Andava muito de bicicleta. Lembro da cidade cheia de bicicletas, e a gente ia à praia de bicicleta. Niterói é uma cidade plana, é uma aldeia, como estávamos falando…

(agora, sim, voltamos ao Museu Nacional)

… Eu estava estudando uma tribo indígena e as relações sociais na tribo e ele me convidou e, em 63, fui estudar em Harvard. Eu me saí bem. E os professores me chamaram para fazer o doutorado lá. Só voltei para o Brasil nos anos 70. E minha vida desde então foi o Museu Nacional.

E Niterói?

– Eu vivi Niterói num tempo em que a gente tomava banho na Praia de Icaraí, com a água transparente. Hoje a água não é tão limpa. Mas, quando eu vejo a praia de Icaraí, de longe ainda é deslumbrante. Já teve a chance de ir naquele hotel H? É uma das paisagens mais belas do Rio, a vista do Rio, de Niterói. Não tem mais a cidade Maravilhosa. Você anda no Centro do Rio e vê tudo abandonado… Não tem mais cidade Maravilhosa, só a vista que ainda temos daqui.

A praia era muito viva. E todo mundo era bonito e não tinha barriga… Eu vivi a Niterói do Liceu Nilo Peçanha, do Petit Paris, da Gruta de Capri… Acabou a Gruta de Capri…? A Praia de Itaipu… Eu não vou mais à praia. Mas gosto ir no Noi e no Seu Antônio (do Bacalhau), porque chego lá, ou chegava, antes da pandemia, e já me conhecem, sabem o que quero comer.

Agora vou ter que sair, porque a máquina de lavar quebrou e preciso comprar outra. Vou ao Plaza, na Fast. Mas toda vez que vou lá acabo comprando outra televisão. Porque elas são cada vez maiores e melhores. Sem cinema, eu tenho todos os filmes que gosto. Muitos filmes eu usei nas minhas aulas, comecei a fazer isso na Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos.

O senhor estudou manifestações culturais na tentativa de desvendar a alma brasileira. Com a pandemia, a atividade cultural está parada. O Brasil fica mais triste?

– A pergunta contém a resposta. As artes e as ciências não matam a fome de arroz e feijão, elas não são feitas para isso. O belo é o belo, dizia Emanuel Kant. O problema é maior do que a pandemia. Você tem uma elite que está governando o Brasil que é o pior populismo que existe. Porque é destrutivo, não leva a nada. Nesta área de cultura, se você não tem recursos nada funciona. Você tem que investir no palco, na orquestra, no teatro. E a pandemia ainda agrava mais isto, porque com tudo fechado não tem outra forma de financiar, não tem o ingresso que mantém para manter o espetáculo, não tem mais isto. E nós ficamos sem saída. Imagine se o Brasil entrasse em guerra? Ia ter discussão, superfaturamento, embargos, provocações e ainda iam comprar a munição errada…não ia ter bala. O problema é que não há nenhum projeto, o projeto é destruir tudo.

A gente tem que pensar o voto, porque também não faz sentido achar que quem era culpado de todos os problemas agora seja a salvação. O problema é que o Brasil inverte tudo. É o país do compadrio, da malandragem. São séculos de domínio da aristocracia. O Brasil foi sede do Reino de Portugal e Algarves. A burocracia veio para cá. E a escravidão foi o primeiro negócio a prosperar no Brasil e a chance do comerciante mudar de classe. E o Geddel está solto. Foi a imagem mais imoral que eu já vi na vida, aquele apartamento com malas cheias de dinheiro, 50 milhões. E o Geddel está solto (Geddel Vieira Lima, ex-Deputado Federal do PMDB da Bahia, e ex-ministro, preso e condenado por corrupção, em 2017, e hoje em liberdade). O Brasil criou esta cultura de que é possível ser privado e público. Falei disso no livro “A casa e a rua”. Temos que pensar as instituições. E pensar a educação, que é o que pode transformar uma sociedade.

Como vai ser a vida depois da pandemia?

A vida mudou muito. Posso dar aula pela internet, fazer muita coisa sem sair de casa. Não preciso ir a banco. As cidades precisam ser repensadas. Os fluxos, a casa, o trabalho. Não é só aqui. Você vê o Centro do Rio. Toda aquela infraestrutura, o comércio, negócios, tudo abandonado. Como vão fazer para recuperar isso depois da pandemia?

Niterói e o Brasil, com certeza, ainda renderiam algumas horas de conversa com o professor Roberto da Matta. Combinamos, então, que a conversa continua, depois da vacina, depois da pandemia, com um chopp no Antônio. Nada mais niteroiense. Combinado.

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