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Mercado de Trabalho: ‘As relações entre funcionário e empregador estão muito piores’, diz professora da UFF

Por Livia Figueiredo
| aseguirniteroi@gmail.com

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Especialista em sociologia do trabalho, Marcela Soares, fala sobre as novas exigências do mercado e as condições precárias do trabalho informal
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Média de trabalho de motoristas de delivery de aplicativo é de 10 horas e 24 minutos por dia. Foto: Reprodução da Internet

Ao definir as três características que resumem o cenário atual do mercado de trabalho, neste Dia do Trabalhador. a professora da UFF e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa Trabalho e Direitos Humanos, Marcela Soares, foi enfática: endividamento, insegurança alimentar e adoecimento geral. Essas condições perseguem a maioria dos brasileiros e pesquisas apontam que a tendência é de aumento do desemprego.

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O atual cenário de desaceleração econômica, acentuado pela pandemia da Covid, leva trabalhadores e trabalhadoras, em todo o mundo, a aceitarem empregos de menor qualidade, conforme aponta o relatório da Organização Internacional do Trabalho, divulgado em janeiro deste ano. Ainda de acordo com o relatório, o crescimento global do emprego será de apenas 1% em 2023, menos da metade que no ano passado. Mas, com o aumento populacional, o desemprego vai aumentar: cerca de 3 milhões de desempregados a mais, chegando a quase 6% da população mundial.

Além do desemprego, remuneração mais baixa, trabalhos precários, sem proteção social são as apostas da especialista para este ano. Segundo Marcela, as condições de trabalho dos entregadores são como um retrato dos retrocessos dos direitos trabalhistas no Brasil. A situação desses trabalhadores é tão alarmante e preocupante que chega a um patamar de generalização de condições degradantes e de jornadas exaustivas.

Com experiência ampla nos estudos de trabalho, opressões-exploração, formas contemporâneas de escravização e migração e políticas de geração de emprego e renda, a professora, formada em Serviço Social pela UFRJ, conversou com o A Seguir: Niterói a poucos dias do feriado nacional do Dia do Trabalhador. Ela fala dos novos formatos de trabalho, as novas exigências do mercado, dos perigos do home office em relação à disponibilidade imediata e a sobrecarga de trabalho, caso não seja imposto um limite, e dá seu palpite sobre o que ainda pode mudar no mercado de trabalho:

– A situação, que já não é boa, pode mudar para pior se não exigirmos a revogação da reforma trabalhista, se não exigirmos que as pessoas inseridas em trabalhos via plataformas digitais tenham direitos trabalhistas assegurados – destacou.

Ao longo da entrevista, Marcela também comenta sobre a plataformização do trabalho, termo utilizado para definir as novas desigualdades sociais do mercado, muito evidente no cenário atual. Neste contexto, as empresas e os trabalhadores estão se adaptando com as mudanças que ampliaram nesse novo contexto, como o trabalho remoto.

Confira a entrevista na íntegra abaixo:

A Seguir: Niterói: Quais são as dinâmicas de trabalho que mudaram com a pandemia?

Marcela Soares: Diante da crise exacerbada pela pandemia do novo coronavírus, com mais de meio milhão de mortes pela Covid-19, aumento do desemprego e da insegurança alimentar, o avanço da face fascista do nosso Estado autocrático agudizando a precarização do trabalho.

Vimos como resultado do período pandêmico, de abril a dezembro de 2020, segundo a Secretaria Especial de Previdência e Trabalho (2020), que 8,7 milhões de trabalhadores/as tiveram seus contratos suspensos. E, de janeiro a novembro de 2020, houve 13,6 milhões de desligamentos de contratos celetistas. Um cenário devastador, onde tínhamos, antes da pandemia, 41% da População Economicamente Ativa ocupada na informalidade, e, de acordo com dados do IBGE do trimestre encerrado em maio de 2020, passamos para 36,9%, devido à perda de 5 milhões de ocupações informais, impossibilitadas de existir neste período.

Acrescento que dentre as 8 milhões de pessoas que perderam o emprego, entre o 1º e o 2º trimestre de 2020, 71% eram negros/as, ou seja, 6,3 milhões. Para os homens negros, a taxa de desocupação passou de 11,8% para 14,0%, do primeiro para o segundo trimestre de 2020; para os não negros, de 8,5% para 9,5%; e para as mulheres negras, de 17,3% para 18,2%, no mesmo período.

Como alternativa à sobrevivência para aqueles/as que não conseguiram acessar o auxílio emergencial do governo, identificou-se, por exemplo, o expressivo aumento de 300% do cadastro de novos/as entregadores/as na empresa Rappi, nos primeiros meses de pandemia.

As condições de trabalho dos/as entregadores/as são emblemáticas dos retrocessos dos direitos trabalhistas, que chegam a um patamar de generalização de condições degradantes e das jornadas exaustivas. Como em outros estudos, afirmamos que as condições laborais pós contrarreforma trabalhista tendem a se assemelhar às tipificações da escravidão contemporânea, conforme o artigo 149 do Código Penal Brasileiro.

Quais são as novas exigências do mercado de trabalho?

Além da hiperqualificação, da polivalência e multifuncionalidade, que corrobora para a intensificação do trabalho e com remunerações cada vez mais baixas, incompatíveis para assegurar direitos fundamentais constitucionais. É só comparamos o valor do salário-mínimo necessário calculado pelo Dieese que está em R$6.571 e o valor da remuneração média das classes trabalhadoras brasileira que está em torno de R$2.500.

Com a preocupação do desemprego, pode-se verificar a disponibilidade quase total da vida de trabalhadores e trabalhadoras devido ao controle absoluto por meio dos algoritmos, mídias sociais utilizadas como ferramentas de trabalho (WhatsApp, Telegram ou hangouts, dentre outros) e/ou plataformas utilizadas pelas empresas. Isso acarreta na invisibilidade da barreira entre tempo de trabalho e tempo de repouso, que é imprescindível para a manutenção da vida.

De que forma o home office pode ajudar e prejudicar uma pessoa? Tendo em vista que o trabalho remoto pode abrir espaço para atender demandas a qualquer tempo?

O home office aumenta a incapacidade da pessoa identificar os limites entre tempo de descanso e tempo de trabalho. Está comprovado que a produtividade aumenta e, consequentemente, a jornada de trabalho é prolongada à disposição da empresa. Sem contar os custos do trabalho que são repassados para o/a trabalhador/a, ainda que existam algumas empresas que façam cálculos de ressarcimento, não são compatíveis com os gastos reais.

A grande questão é que nas grandes cidades, o deslocamento para o trabalho é geralmente um grande transtorno devido à falta de transporte público de qualidade, dentre outros problemas, que na análise imediata do trabalhador e da trabalhadora, acabam preferindo a opção do home office ou híbrido. No caso das mulheres a situação é ainda pior, tendo em vista o tempo dedicado também ao trabalho doméstico (de cuidados com a casa e a família). Verifica-se grandes desigualdades relacionadas ao gênero e a etnia-raça do/a trabalhador/a.

Pesquisa do Dieese de 2020, com dados do IBGE, apresenta dados que, aproximadamente, 10% da PEA estava trabalhando em home office, em julho de 2020. E as mulheres são maioria com 56%, com predominância de mulheres brancas. Sendo que 74% possuíam ensino superior e 72% possuíam casa própria.

Acredita que o modelo híbrido/home office veio para ficar? Quais são os pontos positivos de cada um deles?

Sim, é um modelo inclusive incentivado pela reforma trabalhista de 2017 e as empresas verificam que seus custos são diminuídos com este regime de trabalho, além do aumento da produtividade dos trabalhadores e trabalhadoras.

Os pontos positivos, no imediato, o trabalhador e a trabalhadora pensam na “flexibilidade” para enfrentar os problemas com o deslocamento, com os cuidados com filhos, por causa da ausência de políticas de reprodução social, como creches públicas disponível para toda população.

Como você analisa o perfil de um funcionário atualmente? E de um empregador?

Depende da área… Temos grandes diferenças, possuímos um mercado de trabalho extremamente heterogêneo. Essa diversidade foi aprofundada com os retrocessos da reforma trabalhista de 2017, com as leis 13.429 da terceirização irrestrita e com a lei 13.467. A maioria precarizada é composta por pessoas negras.

Em casos extremos, como das pessoas resgatadas da escravidão contemporânea, temos somente no ano passado (2022), das 2.575 pessoas resgatadas, 92% eram homens, 29% tinham entre 30 e 39 anos, 51% residiam no Nordeste, 58% eram nordestinas, 83% se autodeclararam como negras (pretas e pardas), 15% como brancas e 2% como indígenas. As atividades rurais lideraram o número de pessoas resgatadas com 87% do total, a exceção nestes 28 anos de inspeção do trabalho foi o ano de 2013, em que a construção civil foi majoritária.

Com a plataformização do trabalho, temos nas “fazendas de clique” um perfil predominante de mulheres com baixa escolaridade que passam o dia clicando, seguindo e comentando nas mídias sociais para receber R$ 0,006 por tarefa. Essas mulheres buscam independência financeira por meio do trabalho em plataformas, mas possuem duas a três atividades para conseguirem sobreviver.

De acordo com dados da pesquisa Projeto Caminhos do Trabalho de 2020, os entregadores e entregadoras, no setor de delivery, que têm no “aplicativo” a única ocupação, a média de trabalho é de 10 horas e 24 minutos por dia, 64,5 horas por semana, ou seja, o equivalente a mais de 20,5 horas extras todas as semanas em uma jornada normal.

Em média esses/as entregadores/as, trabalham 6,16 dias por semana, sendo que 40% deles/as trabalham todos os dias. Na média geral (trabalho exclusivo ou em tempo parcial), constatou-se que a jornada média semanal é de 55 horas, distribuídas em 5,8 dias, e 51,7% recebem, proporcionalmente por hora, menos do que 1 salário-mínimo.

A mesma pesquisa identificou que, na sua maioria, os/as entregadores são homens (95%), jovens de até 30 anos de idade (56,5%) e negros (59,2%). Nossa pesquisa realizada em Niterói e no Rio de Janeiro, em 2022, confirmam estes dados nacionais, de uma maioria negra e com jornadas exaustivas de trabalho, com condições degradantes de trabalho e sem qualquer proteção social.

Aquelas que pessoas que trabalham com a alimentação e treinamento de dados para algoritmos de reconhecimento facial e classificação de imagens/objetos abastecem banco de dados, transcrevem áudios.  Essas pessoas consideradas como “trabalhadores/as fantasmas”, quando contratadas pela Amazon para executar microtasks (pequenas tarefas), recebem como pagamento créditos da Amazon por códigos de vale-presente (gift card), quando residem fora do território estadunidense, e para receber sua remuneração precisam leiloar o vale-presente em sites.

E os setores mais qualificados e inseridos no mercado formal, como disse anteriormente, estão com jornadas mais prolongadas e com acúmulo de tarefas para manter seus empregos.

É um cenário de endividamento, insegurança alimentar e adoecimento geral para a maior parte das trabalhadoras e trabalhadores do nosso país.

Sobre a dinâmica de trabalho entre um funcionário e um empregador, o que você acha que merece atenção nos tempos atuais?

A legitimação de recorrentes práticas ilegais de contrato e condições de trabalho que se consolidaram com a contrarreforma trabalhista (Lei 13.467/17), modificando pelo menos 16 aspectos da regulamentação da jornada, na perspectiva de flexibilizar as condições de uso do tempo de trabalho em favor das empresas. Assim, as empresas passam a pagar somente as horas e minutos efetivamente trabalhados.

Mudanças estruturais foram aprovadas como o teletrabalho; o negociado sobre o legislado; o trabalho intermitente; a prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes e a legalização ou ampliação de práticas pregressas ilegais, devido à dificuldade atual, pós contrarreforma, dos/as trabalhadores/as acessarem à Justiça do Trabalho.

Portanto, as condições e relações entre funcionário e empregador estão muito piores, em desfavor dos/as trabalhadores/as.

O que você acha que pode mudar ainda no mercado de trabalho?

A expansão e incorporação de diversos profissionais na chamada plataformização do trabalho. Portanto, a situação, que já não é boa, pode mudar para pior se não exigirmos a revogação da reforma trabalhista, se não exigirmos que as pessoas inseridas em trabalhos via plataformas digitais tenham direitos trabalhistas assegurados. E, ainda, sem conformar uma figura intermediária como é o intuito de alguns projetos de lei que tentam legitimar o trabalho sob demanda.

**Marcela Soares é professora Associada II do Departamento de Serviço Social de Niterói da Universidade Federal Fluminense (UFF) e do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da mesma universidade.

Doutora, mestre e bacharel em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Realizou estágio pós-doutoral em Sociologia do Trabalho pela Unicamp (2017/2019). Coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa Trabalho e Direitos Humanos (GPTDH) do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Teoria Social, Trabalho e Serviço Social (NUTSS/ESS/UFF).

É integrante do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisa sobre Marx e o Marxismo (Niep-Marx/UFF) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Serviço Social (GEPESS/ESS/UFF). É pesquisadora vinculada ao Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses (IFCH/Unicamp) e ao Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC/CFCH/UFRJ).

É também membro do Comitê Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Erradicação do Trabalho Escravo (CETP-COETRAE/RJ). Possui interesse e estuda: teoria social, economia política e pensamento social brasileiro. Articulados aos seguintes temas de pesquisa: trabalho; opressões-exploração; formas contemporâneas de escravização; migração e políticas de geração de emprego e renda.

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