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Desocupar lugares tomados pelo superficial, pelo que é vago e imediato e se adentrar no que é passível de reflexão, no mundo da subjetividade, em que o texto não verbal é tão importante quanto o escrito, permeado por palavras. Na contramão de uma dinâmica de comunicação cada vez mais impulsionada pelo instantâneo, que não estimula conexões profundas, resiste há 33 anos, em Niterói, um espaço que cultiva a literatura, a reflexão e a troca de afetos no meio de um centro urbano. O A Seguir dá as coordenadas: fica na Rua Marechal Raul de Albuquerque, em Charitas, o curso de Oficina de Textos Bebel Pantaleão. Um espaço lúdico que se traduz na tentativa do escape cotidiano de mídias fragmentadas e textos de poucos caracteres.
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A explosão de computadores e smartphones, a vida aprisionada em múltiplas telas, na profusão de cliques e likes podem sugerir que não há mais espaço para a literatura poética, as análises de texto, a escrita criativa e o desenvolvimento do pensamento crítico. Para Bebel Pantaleão, no entanto, a tecnologia não pode afastar o ser humano do texto. E ela sabe o que diz, ao longo de uma trajetória reconhecida que fez muita gente se expressar melhor, viver melhor.
Bebel leva sua experiência de 40 anos de sala de aula focada em uma metodologia que aprendeu em seu estágio no Rio, com o método audacioso de Rosa Riche: colocar crianças em volta de uma mesa, ler um texto e debatê-lo. Por que não?
– Eu comecei a fazer oficinas no quintal da minha casa e a atender grupos. E percebi que dá samba isso da linguagem poética, de literatura. A linguagem lírica é muito afetuosa, mexe com nossa sensibilidade. E comecei a dar uma guinada para esse lado. Desde menina eu gosto de ler, sou apaixonada. Eu acredito realmente que a literatura transforma – resume.
Parte do resultado do projeto poderá ser visto pelo público neste sábado, no lançamento do livro “Olhos do poeta”, que reúne 174 poemas e prosas poéticas de alunos e ex-alunos, a partir das 11h, no Centro Cultural Paschoal Carlos Magno, no Campo de São Bento. O lançamento contará com leituras e um espaço todo voltado para frases destacadas dos textos dos alunos.
– São tentativas de aprofundar o olhar, ampliar. É uma aposta de que esse caminho é possível. E sinto isso quando recebo as produções textuais de volta. Nesses 40 anos de sala de aula, ver esses textos é muito gratificante. É uma troca muito profícua – diz Bebel.
Confira a entrevista:
A SEGUIR: NITERÓI: Como está a configuração da Oficina atualmente? Quais são as faixas etárias das turmas?
BEBEL PANTALEÃO: Os grupos são bem heterogêneos. A novidade é que desde a pandemia estamos também com turmas de adultos na Oficina. É uma troca muito grande entre todos nós. Bem rica. Não fazemos distinções entre aqueles que têm mais dificuldade e os que não têm. A ideia é que um estimule o outro. Temos grupos de crianças, adolescentes, jovens e adultos. É muito variado. Uns são advogados, engenheiros, psicólogos… Os psicólogos gostam muito desse tipo de trabalho porque tem tudo a ver com a Psicologia mesmo. Temos grupos online e presencial. E trabalhamos a diferença da crônica descritiva, narrativa, a argumentativa, o texto argumentativo, o conto, o poema, a prosa poética. É um trabalho que não é urgente. É feito com calma. Adoro trabalhar com matéria de jornal, analisar o que aconteceu, os elementos de uma notícia.
A gente trabalha com projetos. Selecionamos textos da Clarice Lispector, por exemplo, e propomos uma leitura intertextual. O olhar poético é muito trabalhado nas aulas, em qualquer circunstância, porque é a leitura do mundo. A gente cultiva esse olhar. Buscamos mostrar como é importante essa leitura mais profunda, do sentir, do tocar. É uma leitura de si e do outro.
As pessoas olham superficialmente, até porque a vida é atravessada por uma correria louca. Nos exercícios que propomos em sala de aula buscamos esse olhar do espanto, que atravessa. E não um olhar vazio e vago.
Ler não é apenas a palavra escrita, mas lê- se um personagem, uma pessoa. Eu costumo dizer que a poesia está no mundo. Tudo é poesia. E o poema é o texto feito em versos.
O livro “Olhos do poeta” reúne poesias de 174 alunos. Como foi fazer essa seleção? Como foi a recepção dos alunos?
Nós já tínhamos lançado outro livro pautado mais na linguagem, no “porque escrevo”. Esse livro reúne poemas e prosas poéticas. Fizemos inicialmente três aulas para estimular o olhar poético e depois os próprios alunos escolheram qual dos textos eles gostariam que fossem publicados no livro. Minha filha, Márcia, que também é professora da Oficina de Textos, teve a ideia de convidar alunos e ex-alunos que continuam escrevendo para enviarem seus poemas. Em “Olhos do poeta” trabalhamos o olhar mais sensível e abrangente sobre o mundo.
O que estão planejando para o lançamento?
Estamos organizando um lanchinho com pipoca para crianças, um bolinho, enfim. O lançamento vai ser no sábado, pela manhã, no Centro Cultural Paschoal Carlos Magno e vai funcionar assim: se alguém quiser ler o próprio texto pode ficar à vontade. E aqueles que não quiserem, tudo bem também. Vamos distribuir papéis para as pessoas que estiverem lá e quiserem escrever sobre o papel poético. Além disso, as crianças vão escolher uma frase dos seus textos e colocar como destaque num cantinho que vai ter dedicado a isso.
O título do livro sugere um pouco isso. “Olhos do poeta”, como uma alusão à multiplicidade dos olhares. A importância de compreender essa diversidade de pontos de vistas. Quais recursos que vocês utilizam para instigar essa percepção dos alunos? Porque temos um olhar muito pragmático, né?
Muito! E tudo muito programado, né? A gente gosta de propor aos alunos pelo menos dois encontros fora da sala de aula. Por exemplo, a igrejinha barroca de São Francisco é ótima para isso. A gente leva os alunos, cada um senta com sua prancheta. É um momento de fazer uma leitura voltada para a paisagem que está ao redor, saindo um pouco da leitura verbal. O que os olhos podem capturar, o que chama mais atenção, quais cores predominam.
Outro local que vamos muito é a pracinha de São Francisco. Eles sentam no banco e começam a observar o chão, se as árvores têm frutos. Os detalhes que passam despercebidos. É uma leitura do mundo e esse imenso texto que está aí para ser lido e admirado. Ensinar a criança a fazer uma leitura crítica, para aquilo que não agrada, mas que faz parte do mundo é fundamental. O Manuel Bandeira tem um poema que fala sobre isso, o “Bicho”. Ao se deparar com um movimento de um ser caçando restos numa lixeira. “Não era um cão, um gato, um rato. O bicho era um homem, meu Deus”.
Esse olhar para as incertezas e durezas também é importante. Estamos banalizando muito essas cenas. É o corpo imerso. Uma imersão no mundo, na paisagem. O mundo está carente disso. Do olhar que acaricia, que acolhe.
No texto de apresentação da coletânea você afirma que os poetas, como os pintores, se debruçam na qualidade do olhar. Qual a importância de incentivar esse olhar mais sensível em tempos de supervalorização do que é raso e superficial? Como trabalhar na contramão dos textos com poucos caracteres?
É um desafio. Além de olhar superficialmente, nós vivemos uma invasão de telas e de imagens. E às vezes são tantas imagens que ninguém mergulha. Nem fica pensando sobre aquilo. Uma das estratégias que a gente usa é trabalhar a literatura com a arte plástica. Às vezes levamos fotografias de jornal para incentivar esse tipo de pensamento mais crítico, mais reflexivo. A imagem é colocada no quadro como um texto verbal a ser lido. Também utilizamos pinturas e canções. A gente faz esse diálogo: esse texto que é imagem com as imagens que as palavras produzem em nós. É um jogo. O texto poético e lírico está povoado de imagens. E esse exercício é um processo contrário a isso. A imagem é transformada em palavras. São tentativas de aprofundar o olhar, ampliar. É uma aposta de que esse caminho é possível. E eu sinto isso quando recebo as produções textuais de volta. Nesses 40 anos de sala de aula, ver esses textos é muito gratificante. É uma troca muito profícua.
Em tempos de mídia fragmentada e discursos soltos e redes sociais que potencializam isso, que espaço o lúdico ocupa? Como capturar a atenção?
A gente vive num mundo em que a atenção é muito fragmentada. Aliás, nós trabalhamos isso. O que é fragmentar o mundo, o que é fragmentário, mostrar essa linguagem filosoficamente é muito interessante. Mas acho que uma das coisas que temos ao nosso favor é que os alunos são provocados a começar a escrever logo após as leituras na sala de aula. Após a estimulação literária, eles já vão direto escrever. Se pedimos para começar em casa, não conseguimos colher frutos. Eu acredito que só consigo capturar essa atenção, embora que diluída, quando vejo que o aluno está capturando alguma coisa, mesmo que não esteja plenamente atento. Após os textos, debatemos como a leitura reverberou em cada um. Cada um faz a sua interpretação. A sua leitura. Mas é um desafio.
Não é uma aula de português, não damos nota. Eu coloco um bilhete na devolutiva. Estabeleço um diálogo com eles a partir disso e acho que os alunos ficam contaminados pelo entusiasmo que sinto ao ver os textos deles, as produções.
Receber uma carta faz toda a diferença. O manuscrito carrega tanta coisa, né?
Em alguns países vemos que a coisa está começando a mudar. Já vemos computadores sendo retirados da sala de aula. O manuscrito é muito importante. O movimento que se faz com a mão ao escrever, essa cognição. Quando eu começo a escrever as palavras começam a brotar, por quê? O corpo é uma coisa só. Vejo muitos pesquisadores falando sobre isso. Já há um questionamento sobre essa preocupação. O texto vira um afeto. Antigamente a gente trocava cartas e agora virou tudo tão mecânico e instantâneo.
E é algo que se perde, né? É facilmente deletado. Algo que evapora, não permanece. O que mudou no uso da língua com o avanço tecnológico?
As pessoas usam muito abreviações, figurinhas, emojis… Virou um dialeto. Uma linguagem específica para o aplicativo WhatsApp. E com a maior facilidade se deleta uma mensagem. Já uma carta com a letra do outro, com esse afeto. A gente guarda um cartãozinho que você receba, um bilhete, uma dedicatória. É impressionante a importância que os alunos dão para o bilhetinho dos retornos dos textos. É um diálogo de afeto, não só de palavras. Não é uma troca apenas de conhecimento. Tem lugar no mundo para esse olhar mais profundo. Eu não posso ler o texto de alguém e não deixar um recado para ele. Isso passou a fazer parte do método.
Como começou o projeto de criar a Oficina de Textos Bebel Pantaleão?
Eu estava cursando Letras na UFF e fui fazer um estágio no Rio. E as professoras de Didática me levaram para assistir a umas oficinas da professora Rosa Riche. Eu saí de lá encantada. Crianças em volta de uma mesa lendo um texto. A minha didática foi assistir a uma aula nessa oficina e dar uma aula na oficina. Depois assistir a uma aula numa escola pública e dar uma aula numa escola pública. E depois eu comecei a fazer oficinas com as crianças de escolas do Estado com a metodologia que a Rosa utilizava.
Até que eu comecei a fazer oficinas no quintal da minha casa e a atender grupos. E percebi que dá samba isso da linguagem poética. A literatura. A linguagem lírica é muito afetuosa, mexe com nossa sensibilidade. E comecei a dar uma guinada para esse lado. Desde menina eu gosto de ler, sou apaixonada. Eu acredito realmente que a literatura transforma.
E ao longo da minha trajetória eu fui descobrindo que o meu trabalho não é só trabalhar a linguagem, eu vi que eu estava trabalhando com a subjetividade. E foi quando eu decidi fazer meu doutorado em Psicologia na UFRJ. Defendi minha tese “Da paisagem literária à escrita inventiva” em 2021. Fui orientada pela Virgínia Kastrup, grande referência. Ela conheceu meu trabalho porque fui professora dos filhos dela. Mas antes disso eu fiz Mestrado na UFF em literatura e descrição portuguesa.
O que você recomenda de leitura atualmente?
Eu não deixo de ler e revisitar Clarice Lispector, Guimarães Rosa. Tenho lido Mia Couto. Gosto muito. Acho ele muito interessante. Às vezes leio textos mais teóricos. Leio muita poesia também.
Adoro Rubem Braga. Acho ele um mestre da crônica. Tenho lido muitas biografias. Li uma do Freud. Estou lendo outra agora dele. E livros de ensaio, como os de Simone de Beauvoir. Acho que a gente tem que ter uma vida para trabalhar e outra para ler.
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