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O Dia em que a Ponte parou

Por Orivaldo Perin
| aseguirniteroi@gmail.com

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Em uma crônica exclusiva para o A Seguir, jornalista relaciona o acidente que fechou a Ponte Rio-Niterói com um “sonho” do cantor Raul Seixas
Ponte Rio-Niterói é interdidata. Foto: Reprodução
Acesso da Ponte Rio-Niterói fechado, no lado carioca da via. Foto: reprodução de TV.

Os ocupantes dos 150 mil veículos que diariamente cruzam a ponte Rio-Niterói temeram, por mais de três horas, na noite de 14 de novembro, a concretização do sonho de Raul Seixas, sonhado lá em 1977, num de seus clássicos. “O Dia em que a Terra parou” entrou nos ouvidos do país como uma canção subliminar de protesto. Sugeria uma estratégia de reação à ditadura que o país vivia. Receita bem simples: se estamos proibidos de ir para a rua protestar, vamos ficar em casa, todo mundo de braços cruzados. O país certamente pararia, imaginava Raul.  A letra é assertiva, linguagem direta, quase ingênua. Talvez por isso não tenha chamado a atenção da censura na época, que via comunismo em tudo que não combinasse com o “Pra frente, Brasil”, um dos hinos da ditadura.

Por três horas, ficou claro que, sem a ponte, o Rio de Janeiro respiraria por aparelho, mostrando um modelo estadual do sonho nacional do Maluco Beleza. Como na letra dele e do parceiro Claudio Roberto, falecido este mês, sem a ponte, o empregado não conseguiria sair para o trabalho. O patrão dele também não. O guarda ficaria em casa porque não teria ninguém pra prender. O aluno ficaria em casa e o professor também: bem, já foi assim na pandemia. Ou seja, a profecia da dupla tá on.

O impacto do navio sucata na vida das 400 mil pessoas que diariamente precisam da ponte para tocar a vida pesaria mais que a tonelagem dos cerca de 80 navios abandonados na baía de Guanabara, que além de latrina de metade da população do Grande Rio, funciona há décadas como cemitério de embarcações. O pesadelo começou com uma delas, abandonada há seis anos, o São Luiz, cuja bandeira de popa, ironicamente, lembra as pessoas que continuam nas ruas reclamando contra a democracia. A ventania o arrancou das amarras, certamente degradadas, e o empurrou contra a ponte.

O primeiro impacto da notícia foi terrível, mesmo para quem não precise atravessar a baía diariamente. Talvez o susto mais forte desde a inauguração da obra, em 1974. Difícil pensar no Rio de Janeiro sem os 13 quilômetros da ponte. Na primeira hora pós acidente, nenhuma rede social conseguia dizer por quanto tempo Niterói, São Gonçalo e toda a área metropolitana do Rio de Janeiro (cerca de 13 milhões de pessoas) ficariam sem a maior ponte do hemisfério sul. E, imaginando o pior, todas as primeiras notícias já adiantavam as alternativas dos velhos tempos: as barcas ou o contorno da baía. Ambas perto da precariedade. As barcas, centenárias, estão na iminência de paralisação e a rodovia do contorno, no trecho entre Manilha e Magé, há anos rende xingamentos pesados contra governantes. Originalmente, sua duplicação fazia parte do Arco Metropolitano, mas a verba sumiu.

O mundo piora muito quando quem precisa ir/voltar do Rio diariamente se põe a listar o que precisa mudar na vida sem a ponte. O filme que roda mostra filas intermináveis nas praças Araribóia e Quinze. Praça Quinze sem pontos de ônibus. A travessia da baía voltaria a durar de uma a duas horas, mesmo tempo que a viagem de carro consome hoje. Ir de carro por Magé, diariamente, custaria uma despesa absurda com combustível. O pesadelo chegou a botar as mangas de fora. Surgiram fotos de longas filas e embarque nervoso nas barcas e de congestionamentos resultantes da interrupção inesperada.  A contrário do sonho de Raul, quem saiu pra ir ao médico, ao aeroporto, ao trabalho, à escola, à igreja, não chegou. Se o choque do São Luiz com a ponte não passasse, enfim, de um grande susto, estaríamos todos agora recalculando e lamentando o tempo a perder com locomoção. Que, aliás, já não é baixo. E todos acompanharíamos na noite da Proclamação da República o caótico trânsito da volta do feriadão pela velha Estrada do Contorno. Ou seja: que bom que o sonho de Raul continua um sonho, que a ponte interditada foi só um princípio de pesadelo. Do contrário, teríamos que começar a levar a sério outro hit do genial baiano, aquele do “para o mundo que eu quero descer”.

Álbum

“Terra Parou” é o sétimo álbum de estúdio da carreira solo do cantor e compositor brasileiro Raul Seixas, tendo sido lançado pela gravadora Warner Music Brasil, em dezembro de 1977. As gravações ocorreram durante aquele ano em três estúdios: o Level e o Haway, no Rio de Janeiro; e o Vice-versa, em São Paulo. Este álbum foi o primeiro a ser lançado após a mudança do cantor de gravadora. Também, foi o primeiro álbum inteiramente realizado com um único parceiro na composição das músicas, Cláudio Roberto, velho amigo do cantor. Ao mesmo tempo, representou uma mudança estética do cantor e de temática no disco, com Raul de cabelo curto e trajando terno e gravata enquanto canta letras que falam sobre uma busca e um desejo de emancipação pessoal.

O álbum teve uma reação fria da crítica especializada, com casos de revanchismo pela mudança de gravadora. O consenso crítico foi de que o disco representou uma simplificação – uma popularização – nas letras e nas mensagens, creditada à parceria com Cláudio Roberto. O álbum foi bem divulgado, com o lançamento de dois compactos que se tornariam sucessos – a canção título e “Maluco Beleza”; um videoclipe musical; uma turnê em teatros pelo país; e participações do cantor em programas de rádio e televisão. As vendagens não foram boas para o padrão esperado pela gravadora, apesar do disco ser, hoje, considerado um dos pontos altos da carreira de Raul.

Essa noite, eu tive um sonho de sonhador
Maluco que sou, eu sonhei
Com o dia em que a Terra parou
Com o dia em que a Terra parou

Foi assim
No dia em que todas as pessoas
Do planeta inteiro
Resolveram que ninguém ia sair de casa
Como que se fosse combinado em todo
O planeta
Naquele dia, ninguém saiu de casa, ninguém

O empregado não saiu pro seu trabalho
Pois sabia que o patrão também não tava lá
Dona de casa não saiu pra comprar pão
Pois sabia que o padeiro também não tava lá
E o guarda não saiu para prender
Pois sabia que o ladrão também não tava lá
E o ladrão não saiu para roubar
Pois sabia que não ia ter onde gastar

No dia em que a Terra parou (êêê)
No dia em que a Terra parou (ôôô)
No dia em que a Terra parou (ôôô)
No dia em que a Terra parou

E nas Igrejas nem um sino a badalar
Pois sabiam que os fiéis também não tavam lá
E os fiéis não saíram pra rezar
Pois sabiam que o padre também não tava lá
E o aluno não saiu para estudar
Pois sabia o professor também não tava lá
E o professor não saiu pra lecionar
Pois sabia que não tinha mais nada pra ensinar

No dia em que a Terra parou (ôôô)
No dia em que a Terra parou (ôôô)
No dia em que a Terra parou (uuu)
No dia em que a Terra parou

O comandante não saiu para o quartel
Pois sabia que o soldado também não tava lá
E o soldado não saiu pra ir pra guerra
Pois sabia que o inimigo também não tava lá
E o paciente não saiu pra se tratar
Pois sabia que o doutor também não tava lá
E o doutor não saiu pra medicar
Pois sabia que não tinha mais doença pra curar

No dia em que a Terra parou (oh, yeah)
No dia em que a Terra parou (foi tudo)
No dia em que a Terra parou (ôôô)
No dia em que a Terra parou

Essa noite, eu tive um sonho de sonhador
Maluco que sou, acordei

No dia em que a Terra parou (oh, yeah)
No dia em que a Terra parou (ôôô)
No dia em que a Terra parou (eu acordei)
No dia em que a Terra parou (acordei)
No dia em que a Terra parou (justamente)
No dia em que a Terra parou (eu não sonhei acordado)
No dia em que a Terra parou (êêê)
No dia em que a Terra parou (no dia em que a terra parou)

 

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