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Niterói fora do mapa: preconceito com a periferia causa transtornos a moradores

Por Amanda Ares
| aseguirniteroi@gmail.com

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Comunidades relatam dificuldade para receber encomendas e denunciam descaso do poder público
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Correio comunitário no bairro Morro do Estado, onde moradores não conseguem receber encomendas em casa. Foto de leitor

Imagine que você, morador do Ingá, de Charitas ou do Centro de Niterói tenha pedido um novo cartão de crédito no aplicativo do seu banco, pelo celular. O banco promete entregar em alguns dias úteis no seu endereço, e você fica feliz com a comodidade de não mais precisar ir à agência para buscar seu novo cartão. Porém, passam os dias e o cartão não chega. Você reclama pelo mesmo aplicativo, liga para o banco, questiona os Correios e ninguém sabe te dizer para onde foi seu cartão, ou então ele retornou, pois a empresa que faria a entrega não quis entregar no seu endereço. Frustrado, você pensa em processar todo mundo (o banco, os Correios, a empresa de envios), e sabe que a causa é praticamente ganha.

Mas, para muitos moradores de Niterói, reclamar não adianta, mesmo que a encomenda seja de valor ou alguma conta importante. São os moradores de uma cidade invisível, onde os mesmos serviços e direitos não valem, e ter correspondência entregue na  caixa de correios é uma raridade. Reclamar não adianta.

O fotógrafo Vitor Freitas (25) mora na comunidade do Preventório e sabe bem, pois perdeu a conta das vezes em que teve encomendas perdidas. Ele conta que, para tentar amenizar o problema, os próprios moradores organizaram um correio comunitário, mas mesmo assim não há garantia de que a correspondência vá chegar:

– Compra de Mercado Livre, e essas coisas, eu mando pra lá. Mas corre o risco de sumir coisa. Meu irmão comprou um livro uma vez, sumiu. Meu cartão [de crédito], chegou, foi embora… Evito mandar coisa pra lá. Talvez, nem por culpa deles [que gerem], às vezes quem entrega não quer entregar, mesmo. Não quer subir, achando que é comunidade. Carteiro sobe de boa, mas empresa terceirizada, às vezes dá como se não tivesse ninguém em casa.

Outro problema desse sistema é o inconveniente do horário. Quem sai cedo e chega depois do horário comercial, acaba dependendo do favor de alguém para buscar sua encomenda.

Prefeitura culpa problema de segurança

Por telefone, a Prefeitura de Niterói comentou que o problema na entrega de encomendas e outros serviços similares se trata de uma questão de Segurança Pública. Porém, quem mora há muito tempo no morro afirma que não é bem assim, e que problemas como este e muito outros, como falta d’água, luz deficiente e serviços como saúde e educação são antigos e se repetem desde muito antes do tráfico de drogas se instalar nas comunidades.

É o que comenta a Coordenadora Executiva da BemTV, Daniela Araújo (37), que nasceu e cresceu no Preventório. Ela conta que desde criança a comunidade tinha problemas que eram negligenciados, em um tempo em que não havia o problema de segurança usado como álibi para a falta de atendimento das demandas locais:

– A encomenda que não chega por causa do CEP é a ponta do iceberg de um problema muito mais histórico, de como a sociedade é constituída. A gente tem, recentemente, de uns 20 anos pra cá, um movimento global de direto a cidade. Em 2001, o Estatuto da Cidade virou uma lei federal, que fala da cidade como um espaço para todos, de democracia, que precisa oferecer mobilidade urbana, qualidade de vida para os cidadãos. Mas, pensando em como a nossa sociedade se organizou, desde a colonização, temos cidades que são construídas para as elites. O Rio de Janeiro, por exemplo, foi um pouco mais urbanizado porque a realeza Portuguesa ia desembarcar aqui. Por exemplo, criaram o Cais do Valango, para tirar de vista os corpos dos escravizados que chegavam no porto da cidade. Isso para tirar das vistas da alta sociedade. Isso é uma questão estruturante da nossa sociedade. As cidades foram construídas, Rio de Janeiro e Niterói pela sua proximidade também, de forma que as pessoas mais pobres sejam empurradas para a periferia. O fato de as pessoas morarem perto, muitas vezes, das classes altas, como acontece no Preventório, é um acidente geográfico, por causa dos morros.

Onde está o Preventório? Nem no Google Maps ele aparece. Google Maps

Cidade fora do mapa

O problema na entrega na correspondência é apenas um dos transtornos causados a pelo menos 80 mil pessoas (IBGE,2010) que moram em favelas e bairros de periferia de Niterói. No mapa oficial dos bairros da cidade disponível na plataforma Sigeo, por exemplo, não é possível encontrar a comunidade em que Vitor mora. Também não constam áreas densamente povoadas, como Jacaré, Morro do Cavalão, Morro do Céu, Vila Ipiranga, ou o Morro do Bumba.

Bairros inteiros enfrentam problemas que, segundo Daniela, são explicados pelas origens de suas ocupações. Imagem: prefeitura de Niterói

E nem é apenas uma questão de segurança pública, segundo os moradores ouvidos pelo A Seguir: Niterói, que afirmam que correspondência na porta, entre outros serviços básicos como água e luz, eram deficientes, e até inexistentes, desde muito antes do crime organizado se tornar o motivo.

A jornalista Daniela Araújo é coordenadora executiva da ong BemTV, e doutoranda em Comunicação pela UFRJ. Arquivo Pessoal

A coordenadora da BemTV Daniela Araújo (37) também nasceu e cresceu no Preventório. Doutoranda em Comunicação Social pela UFRJ, ela diz que o problema das encomendas que não chegam é a ponta do iceberg de uma questão social histórica, de falta de direito relacionado à origem das favelas no Rio de Janeiro:

– As pessoas não têm posse da terra, logo as pessoas não têm direito ao básico, como saneamento. As gestões dos municípios tratam esses territórios como secundários. E isso se reflete em que? Na negação desses lugares. Então, na medida que esse lugar não existe, ele é atropelado na documentação, no transporte público, nos serviços como águas, luz, telefone…

Sem interesse público, ela diz que os serviços vão chegando pela vontade da economia privada, que vê na favela um potencial de consumo ignorado:

– Onde estão as brechas? No potencial de consumo que esses lugares são. A empresa de luz vai entrar, porque ela precisa cobrar a luz que essas pessoas vão usar, se não elas vão fazer gato. A água precisa entrar, pra cobrar pelo hidrante.

Ela conta como começou a ocupação do território, e relaciona às escolhas das gestões municipais pelos bairros e localidades que recebem obras de infraestrutura, e os motivos que fazem com que grandes mudanças sejam feitas no meio urbano:

– Aquela casa antiga que tem ali na frente, que hoje é o Colégio Brasil China, quando eu era criança, de “Casa da Princesa”. A gente achava que ali era a casa de veraneio da Princesa Izabel. Mas nunca foi, ali era um hospital marítimo no começo do século XIX, onde as pessoas que chegavam doentes nos navios eram levadas para lá pra ficarem de quarentena, pra não contaminarem a cidade do Rio de Janeiro. As pessoas doentes morriam, e aí os corpos eram enterrados ao redor desse hospital marítimo. Ali era um grande cemitério. Mas os trabalhadores desse hospital acabavam precisando ficar perto do trabalho. Não tinha ponte, não tinha transporte marítimo pra eles. 

Ela explica que os funcionários do local esperavam anoitecer para evitarem ser repreendidos pelo guarda, encontravam um lugar e construíam uma pequeno cômodo, e já se instalavam. E assim, a comunidade foi crescendo, mas sem ser reconhecida pela administração pública como um lugar de moradia e os serviços públicos demoraram muito a chegar. Apenas nos anos 1980, com esforço comunitário, alguns aspectos de urbanização começaram a chegar. Daniela lembra que, quando nasceu, em 1984, ainda não havia uma caixa d’água de distribuição de água para as cerca de oito mil pessoas que residiam ali:

–  Só a partir da década de 1980, no finalzinho dela, é que o Preventório começou a receber o básico de gestão pública. Por exemplo, a chegada das caixas d’água do Preventório, no final de 1980.. 

 Porém, ela afirma que a questão da dificuldade do morador de favela em conseguir acesso aos mesmos serviços que quem mora no resto do bairro vai para além da questão do registro, ou do mapeamento, já que bairros como Caramujo, Viradouro e Estado, enfrentam o mesmo problema.

O artista plástico Marlon Amaro (32), por exemplo, mora na parte alta do morro e usa o endereço da avó, que mora na Rua Araújo Pimenta (Estado), que é uma via principal, para receber encomendas e correspondência. Ela conta que uma solução adotada pelos próprios moradores que não têm a opção de um parente com endereço próximo, foi criar um correio comunitário, onde uma moradora recebe as correspondências dos vizinhos e as entrega.

– O problema é a pessoa querer vir. Alguns serviços [de entrega] não chegariam se colocasse Morro do Estado. Eu uso o endereço da minha avó, na Araújo Pimenta, porque o destino de tudo é parar no carteiro comunitário.

Correio comunitário do Morro do Estado. Foto de leitor

O relato do jovem morador confirma o argumento de Daniela de que não se trata de ter um endereço registrado, mas de preconceito com as populações mais pobres, que é quem acaba sofrendo com as consequências reais desse estigma:

– Esse território está negado desde a posse da terra, até o CEP, até as placas. Niterói, que já foi capital do Estado, quando o Rio de Janeiro era capital do Brasil, herda essa cultura e reproduz a mesma lógica. Por exemplo, o Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, que fica no Preventório, em Charitas. Porque se chama de “Hospital Psiquiátrico de Jurujuba”? Primeiro porque o Preventório não é bairro, então não pode  Porque quem é a pessoa de classe média alta que vai querer morar no bairro do Hospital Psiquiátrico? Não pode ser. E ele não é realmente, ele é no Preventório, só que Preventório não é bairro. Se não é bairro, não pode receber equipamento público. Então diz-se que é de Jurujuba, que é lugar de pescador, então não tem problema. A cidade tem uma relação de classes tão violenta e tão silenciosa que a cidade reproduz isso com naturalidade, e a gestão reproduz as lógicas desde os tempos da colonização.

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