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Niterói, 450 anos: “Falar que Arariboia fundou a cidade é reduzir demais a sua história”, diz escritor

Por Livia Figueiredo
| aseguirniteroi@gmail.com

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O jornalista Rafael Freitas fala sobre os principais mitos e comenta as origens dos nomes dos bairros de Niterói
Arariboia
‘Martim Afonso de Souza – o Arariboia’, autor desconhecido. Retrato publicado na edição 06465 do Jornal ‘O Fluminense’ no ano de 1906, na matéria “Nicteroy: 1503-1906”

Como toda grande história, o herói Arariboia, fundador de Niterói, é permeada por mitos. Pensando nisso, o A Seguir convidou o historiador e jornalista Rafael Freitas, autor do livro “Arariboia: o indígena que mudou a história do Brasil”, para desvendar alguns dessas falsas teorias. Na entrevista, ele reconstitui a vida de Arariboia em ao falar dos pontos mais relevantes de sua biografia, que apresenta a trajetória do principal líder indígena do século XVI.

Leia mais: Niterói, 450 anos: uma cidade que sonha ser moderna e não respeita sua história, diz urbanista

Ao longo da conversa de quase uma hora por telefone, Rafael se debruça nas principais batalhas de Arariboia, fala do marco zero de Niterói na Alameda São Boaventura e o rio que cortava ali. Explica as origens de alguns bairros da cidade, como Itacoatiara, Icaraí, Gragoatá e Pendotiba e fala que Arariboia foi, sobretudo, um exímio guerreiro e estrategista, uma figura central para a vitória dos portugueses na região.

– Por isso, falar que Arariboia fundou Niterói é reduzir demais a sua história. O Arariboia é o herói da fundação do Rio de Janeiro. Ele ganha as terras de Niterói por uma questão estratégica – afirma.

Confira a entrevista na íntegra abaixo:

A SEGUIR: NITERÓI: Quais são alguns dos mitos relacionados ao Arariboia?

RAFAEL FREITAS: O Arariboia é na minha opinião pouco estudado e desenvolvido como personagem histórico. São poucos trabalhos que existem sobre ele. A maioria das vezes ele está num livro de história como coadjuvante, como alguém que estava ali perto dos portugueses, mas ele mesmo não é foco do estudo.

Ao longo do tempo, pela falta de fonte e de conhecimento foram criados alguns mitos em torno do Arariboia. O primeiro é em relação ao nome dele, em sua etimologia. Alguns historiadores imaginavam o significado de Arariboia como cobra feroz, cobra que anunciava a chuva e não buscava na natureza a cobra que representasse de fato o nome dele que era a cobra que os indígenas chamavam de cobra arara. É uma cobra bastante específica da Mata Atlântica porque ela não vive no chão, vive enrolada nas árvores. E ela é verde, se camufla na árvore e se alimenta desses bichos que vivem na árvore, como micos, etc.

A origem do Arariboia vem dessa cobra que existe até hoje, que é chamada hoje de vários nomes, como cobra do periquito, cobra do papagaio. Mas não é uma cobra feroz. Mas o maior mito é associar o Arariboia apenas a fundação de Niterói. Mas o Arariboia antes de fundar Niterói, defende o Rio de Janeiro. Ele era o maior guardião dos primeiros anos do Rio de Janeiro. Tanto é que ele ganha as terras de Niterói para permanecer na Baía de Guanabara. O Arariboia era a principal força de defesa do Rio de Janeiro.

Outra coisa que sempre se escreveu muito nos livros de história é que o Arariboia teria morrido afogado na Baía de Guanabara. Isso foi um mito criado na época do império, por um religioso, ligado ao Pedro II, que escreveu uma página que seria uma biografia de Arariboia, mas no final ele fala: “como se sabe, o Arariboia morreu afogado na Baía de Guanabara”. Depois disso, vários historiadores começaram a repetir essa informação.

Como reverter isso?

No início do século XX, foi publicada uma obra de um jesuíta contemporâneo do Anchieta que escreve os milagres do Anchieta. Era uma obra que vangloriava o Anchieta. E nessa obra ele conta que o Arariboia teria morrido em torno dos seus familiares, inclusive ele escreve que viu o testamento do Arariboia.

Nos anos 60, um padre encontra uma carta de 1589 em que relata que o Arariboia teria morrido numa epidemia de varíola que teria afetado o Rio de Janeiro na época.

Mas é muito suspeito. Quem morriam afogados eram os portugueses que não sabiam nadar. Os indígenas eram exímios nadadores, inclusive resgatavam os portugueses em naufrágios. Além do mais, a Baía de Guanabara tem águas calmas, não é um mar aberto. Teria que ter havido uma tempestade apocalíptica para o Arariboia ter morrido afogado.

Quando aconteceram as principais batalhas?

Entre os anos de 1565 e 1568. Inclusive tem uma batalha em 1578 que os tupinambás se organizam no Cabo Frio e aproveitam a chegada dos franceses para invadir de novo a Baía de Guanabara e falaram para os portugueses: “fiquem aí na de vocês, porque o nosso objetivo é pegar o Arariboia”. Acaba que o Arariboia vence essa batalha e os tupinambás saem fugindo da Baía de Guanabara. Isso depois da fundação da cidade, em 1578.

Foi por isso então que ele foi personagem central para a fundação do Rio de Janeiro?

O Arariboia é louvado pelos moradores do Rio de Janeiro até praticamente a sua morte. O padre Jesuíta Fernão Cardim visita o Rio em 1583 e presencia uma procissão de canoas em comemoração à fundação da cidade e, inclusive, a Igreja Católica faz a cerimônia da procissão das canoas até hoje, no dia 20 de janeiro, dia de São Sebastião. O Arariboia aparece nessa procissão em frente as canoas muito elogiado pelos moradores, cercado pelos indígenas, com muitas canoas adornadas em folhas e flores. Ele foi ovacionado.

Por isso, falar que Arariboia fundou Niterói é reduzir demais a sua história. O Arariboia é o herói da fundação do Rio de Janeiro. Ele ganha as terras de Niterói por uma questão estratégica.

Quadro “A morte de Estácio de Sá” Antônio Parreiras, de 1911. Arariboia representado ao centro em trajes indígenas

E a Praça Arariboia?

Na placa da Praça Arariboia, em Niterói, tem uma data: novembro de 1573. Mas o documento que ele ganha as terras de São Lourenço que vai dar origem depois a Niterói é de 1568. O que ocorre é que até 1973 ele ocupava com alguns indígenas a aldeia Jabebiracica, na Tijuca. Ele fez isso pois os portugueses que fossem atacados do Morro do Castelo por outros indígenas tupinambás, teriam que passar obrigatoriamente pela aldeia Jabebiracica. Não teria outro caminho. Basta olhar o relevo. Ele ficava ali como anteparo de segurança na cidade.

Até que os portugueses se dão conta de que não havia mais perigo, já que a terra era dos jesuítas. Eles também tinham medo que os indígenas do Arariboia se revoltassem contra os portugueses por uma série de questões. Então, os portugueses falavam: “ele já não ganhou as terras de Niterói?

Então é melhor ele ir para lá porque ele defende a Baía de Guanabara, porque os franceses para nos atacar sem entrar pela Baía de Guanabara, eles vão ter que entrar por Niterói e ir para o Rio de Janeiro”. E por que a data de 1573 está na placa da estátua? Porque foi nessa data que ele definitivamente vai para a aldeia jesuítica de São Lourenço.

Qual o simbolismo dessa aldeia?

Essa aldeia é onde começa Niterói, que servia do rio onde hoje fica localizada a Alameda São Boaventura. A antiga aldeia do Arariboia está aos pés da montanha onde fica hoje a igreja de São Lourenço. É ali que Niterói começa.

O Arariboia tinha as posses da terra, mas ele não era um colono normal. As terras de São Lourenço eram abertas a todos os indígenas. Muitos dos quais os próprios indígenas do Arariboia iam buscar nas terras, convencendo eles a morar em São Lourenço. Apenas alguns anos após a ocupação das terras de São Lourenço, o próprio Arariboia vai fazer petições aos governadores do Rio de Janeiro pedindo mais terras, porque já não era possível abrigar tantos indígenas. E isso acontece. Em 1575 são dadas mais terras em Itaborai, outras em São Gonçalo, para que os indígenas pudessem ajudar a colônia do Rio de Janeiro.

Um detalhe importante: os indígenas que combatiam os portugueses quando eram derrotados, eles eram escravizados, da mesma forma que os negros.

Já aqueles que seguiam o exemplo de Arariboia e iam para as aldeias que o Arariboia intermedeia com as autoridades portuguesas, eles já tinham outra relação com a autoridade colonial. E inclusive esses indígenas vão participar da batalha da reconquista do Nordeste.

Os indígenas de São Lourenço eram a última força do governador. Sempre que eles eram chamados a batalha acabava, porque ninguém conseguia enfrentar os indígenas de São Lourenço.

A presença desses descendentes e indígenas oriundos da figura do Arariboia presentes por muito tempo. Eles se integram ao período colonial de uma forma muito mais de acordo com seus próprios interesses do que como escravos. A gente precisa olhar isso a partir do ponto de vista dos próprios indígenas que estavam vendo as mudanças acontecerem.

O Arariboia, além de fundador do Rio de Janeiro e de Niterói, é um artífice da miscigenação e da construção da identidade do povo da Guanabara. Porque são esses indígenas que conviveram com Arariboia que vão dar origem a miscigenação do povo carioca e por isso nós temos tantos nomes indígenas tanto em Niterói, quanto no Rio. Porque Niterói era uma cidade 90% habitada por indígenas. Ao longo de 300 anos, eles vão se miscigenando.

Essa miscigenação tremenda entre portugueses, indígenas e negros e a influência do povo português cria um povo completamente único do ponto de vista da sua gênese, diferente das outras colônias sul-americanas e espanholas que não ocorria tanta miscigenação.

 Fale um pouco dos lugares de Niterói que tem nomes indígenas.

Gragoatá que quer dizer planta de pedra, ou planta Gravatá. Essa planta dá um fruto que era consumido pelos indígenas. Pendotiba que quer dizer o lugar que tem palmeira. Itacoatiara quer dizer Ita-pedra) – coatiara (desenhado a mão, pela ação humana). Seria uma pedra desenhada pelo homem. Jurujuba. Juru é tábua e juba é amarelo. Juru é sapo – sapo amarelo. Seria um lugar com essas características. Icaraí, que é o peixe do rio cara. Ou seja, a aldeia do peixe do rio cara.

Você tem dois livros sobre Niterói. Tem planos de fazer mais um?

Sim. Eu tenho dois livros que falam bastante sobre Niterói. O primeiro que dá conta dessas aldeias ancestrais e o outro sobre o Arariboia. Esse inclusive tem algo de curioso. Os descendentes do Arariboia entraram em contato comigo para montar árvore genealógica do Arariboia. Mas minha pesquisa não foi centrada nisso. O que se sabe é que tem alguns descendentes do Arariboia com o sobrenome “de Souza”. Mas nunca se sabe, caso surja algo a mais de interessante vou fazer.

Qual sua relação com Niterói?

Eu nasci no Rio, mas tenho alguns parentes em Niterói. Eu me acostumei a sempre ir para Niterói para ver meus primos. Ia muito para a praça da UFF na época de faculdade para comer pastel. Sei circular muito pela cidade. Também ia muito com meu pai para a Praia de São Francisco. Lá tinha uma aldeia tupinambá.

Como você define a cidade?

Niterói é o Rio que o Rio queria ser.

Rafael Freitas é autor do livro ” Arariboia: o indígena que mudou a história do Brasil”. Foto: Arquivo

*RAFAEL FREITAS DA SILVA é jornalista e mestre em Comunicação e Cultura pela ECO|UFRJ, onde também estudou Rádio e TV. Trabalha na TV Globo desde 1998 e, a partir de 2004, realiza produção de reportagens no programa Esporte espetacular. Viajou por todo o Brasil e já cobriu várias Copas do Mundo e Jogos Olímpicos.

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