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É comum para um niteroiense raiz, principalmente, mais idoso, dizer “vou a Niterói” quando seu destino é o Centro da cidade. Afinal, aquela região foi, um dia, de fato, A cidade. Que cresceu a partir dali.
Quando Niterói chega aos 450 anos, coincidentemente, uma das metas principais da administração municipal é justamente “requalificar” o Centro, como seus representantes costumam dizer.
– As intervenções no Centro não podem ser feitas porque tem pessoas feias ou estranhas. Isso é mentalidade de limpeza de população – afirmou o arquiteto e urbanista Luiz Eduardo Alves, ex-presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) Leste Fluminense.
Carioca, ele mora em Niterói há dez anos. E foi justamente no Centro que optou por morar quando passou a viver do outro lado da Baía de Guanabara. Em entrevista ao A Seguir, ele avalia os caminhos que a cidade tomou para chegar ao perfil atual. Na sua opinião, a cidade, no afã de se tornar “moderna”, está deixando de lado um patrimônio precioso: sua história.
– Ser moderno é só construir coisas novas ou vale o olhar para o que já existe? – questiona Luiz Eduardo, que é especialista em Administração Pública e integrou a equipe técnica do Plano de Regularização Fundiária Sustentável do Município de Niterói (2022).
Confira a entrevista
Como avalia o fato do Plano Niterói 450 ter foco em tantas obras no Centro?
– O que norteia todas as obras é o Planejamento Estratégico que criaram para a cidade e não o Plano Diretor que, de certa forma, está só no papel. O que perpassa o Planejamento Estratégico é uma ideologia liberal, uma ideologia da eficiência, que resulta em uma cidade chamada de resultados.
Que eficiência? Que resultados são estes?
– A gestão busca estar nos rankings de cidade competitiva, o que, para atrair alguns negócios, é interessante, principalmente, as grandes construtoras. O discurso é de entregar resultados, que deixa para trás uma cidade mais justa, que garanta direitos. No discurso é eficiência de gestão. Na verdade, é de competitividade do investimento do capital.
Mas nem só de construtoras vive o investimento do capital. Por que elas se interessam tanto?
– Construção de cidade, como diria David Harvey (teórico britânico que trabalha com diversas questões ligadas à geografia urbana), serve pra assentar capital excedente, faz a roda do capital girar.
O Censo 2022 detectou 35 mil imóveis vazios em Niterói, mesmo assim as construtoras estão interessadas em levantar prédios na cidade. É contraditório isso?
– Não. Com mais construções, uma parte dos imóveis serão comprados como investimentos. Não é construção necessariamente para garantir habitação. É para garantir a roda do capital. O que dá certo para o investimento não significa, necessariamente, que vai gerar uma boa cidade.
Como avalia esteticamente a cidade?
– É uma cidade com o centro histórico esquecido e que merece atenção. Poderia haver uma valorização e cuidado com o patrimônio arquitetônico histórico. O Centro tem diversidade. Tem empreendimentos grandes; eu, por exemplo, moro em um prédio de quatro andares, ao lado de uma vila que fica em uma rua de casas. Não precisa colocar tudo isso abaixo para “modernizar” a cidade.
Gosta da ideia dessa “requalificação” do Centro?
– Eu gosto do Centro como ele é. Eu nasci no Rio e moro há dez anos em Niterói, sempre no Centro, que, de fato, tem valor de centralidade, mas atualmente, está com aspectos de falta de manutenção nas infraestruturas e serviços urbanos. As intervenções no Centro não podem ser feitas por causa de uma mentalidade de que tem pessoas feias ou estranhas. Isso é mentalidade de limpeza de população. O que tem que ser feito é dar a garantia do direito à moradia e não apenas um embelezamento. No Centro já tem vida, já tem gente morando. Pelo discurso oficial, parece que o Centro é vazio.
Atualmente, imóveis de 30 metros quadrados são chamados de estúdio. É a gourmetização da quitinete?
– É eficiente mudar os termos e isso é ideológico. Por exemplo, a Transoceânica chama os pontos de ônibus de estação. Isso é para associar com o metrô, para associar a algo moderno e eficiente. O mercado foi eficiente em se apropriar da legislação de habitação de interesse social que prevê metragens pequenas. É importante a legislação dar limites para o mercado, se posicionando ao lado dos direitos da população. Até porque, o mercado tem capacidade política para mudar as regras.
O governo municipal tem batido na tecla de que busca, com a nova lei urbanística, criar uma “cidade compacta”. O que acha disso?
– Compactar é fazer menor. O discurso da cidade compacta justifica colocar mais coisas em uma mesma área, ou seja, justifica o adensamento. É interessante uma cidade com diversidade de uso. Mas centralidade de bairros é algo difícil de se construir de fora para dentro. Não existe uma cidade ideal, mas ela será tanto melhor quanto mais diversa for. É bom que Niterói tenha uma área como a Ponta d’Areia; é bom que na Região Oceânica ainda tenha gente morando em casas. É bom que no Centro tenha vilas. É o discurso tecnicista que diz que adensar é o melhor. A questão é: melhor para quem? É preciso oferecer soluções para o que for melhor para a população de cada área. São modos de vida diferentes e todos devem caber na cidade e não ter uma resposta pronta de como uma cidade tem que ser construída.
Onde os engarrafamentos de Niterói entram nessa história?
– Como não entender o engarrafamento como consequência do adensamento? Icaraí, por exemplo. Icaraí é fruto de uma verticalização extrema, permitida por lei, na década de 70. É estranho que um rua como a Gavião Peixoto, de apenas duas pistas, seja toda cercada de prédios de 20 andares. O tamanho da via é compatível com um bairro pacato, não com o que é Icaraí. O bairro está saturado e só se vai solucionar isso com uma decisão difícil que é restringir o uso do carro. É uma solução difícil porque é um bairro de classe média e usar o próprio carro é algo que representa essa classe. Aliás, todo o raciocínio urbanístico atual parte do princípio que todos querem ter carro, que só quem usa transporte público é quem ainda não tem carro. E agora que Icaraí está cheia, estão valorizando a Região Oceânica. São ciclos porque o capital precisa encontrar locais para se vender. Se houver interesse, o retorno para o Centro pode ser até um novo ciclo.
Você é otimista ou pessimista em relação à cidade?
– Eu adoro Niterói. É uma cidade muito boa, apesar dos problemas. Pela escala de Niterói, que não é grande demais, tem potencial, por exemplo, para o uso de bicicleta, pelo menos, nas áreas centrais. A cidade tem uma escala ainda trabalhável. Dá tempo de fazer algo, uma intervenção urbana séria sem, porém, precisar fazer grandes mudanças. Não precisa mudar tudo completamente. Vamos resolver o que temos que ficou sem cuidados. Mas tem uma coisa que me preocupa.
O que?
– Grande parte do que hoje conhecemos como Centro é área aterrada. O que me preocupa em relação ao aterro é que essa cultura se enraíze e justifique quererem aterrar mais a cidade, como por exemplo, as lagoas da Região Oceânica. Será que ficou na cabeça que é razoável continuar aterrando? O Aterro da Praia Grande, como ficou conhecido, é uma área que vai do Morro da Armação até o Morro de Gragoatá, marcos geográficos do Centro da cidade. É uma obra concebida em 1940. Até 1972, só havia sido aterrado uma pequena parte, onde está atualmente o shopping center Bay Market. O morro contíguo ao Forte do Gragoatá foi cortado e a praia do Fumo (ao lado da praia Vermelha, hoje Praia do Gragoatá) foi quase totalmente aterrada. Foi assim que surgiu a atual Avenida Litorânea e, no aterro, foram construídos, mais tarde, os prédios da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Como gostaria que Niterói fosse no futuro?
– Sonho em ver na cidade uma política de habitação, mas isso é algo muito distante do horizonte político atual. Uma parte das construções tinha que ser tratada como garantia do direito à habitação. Para isso acontecer, tem que ter política pública.
Niterói tem conserto, urbanisticamente falando?
– A cidade está estranha, mas ainda dá tempo. Porém, lembrando que não é tanto tempo assim. As mudanças climáticas estão aí, não é mais algo para um futuro tão distante. Não sei se a cidade já entendeu que, daqui para frente, tem que fazer diferente por conta das mudanças climáticas. Para os investimentos do capital, é bom acharem que as questões relacionadas com as mudanças climáticas podem ficar para depois. Mas não podem.
Niterói, afinal, é moderna ou provinciana?
– Niterói quer se vender como cidade moderna. Porém, uma cidade verdadeiramente contemporânea e moderna tem espaço para tudo. Por que o símbolo da cidade é o MAC? Porque é visto como moderno. E o moderno da cidade está apagando a história da cidade. Ser moderno é só construir coisas novas ou vale o olhar para o que já existe?
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