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‘Não há estoque de polícia”, diz especialista em Segurança Pública sobre o Niterói Presente

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Em entrevista ao A Seguir: Niterói, Jacqueline Muniz diz que modelo de “aluguel” de policiais para patrulha ostensiva em Niterói não é sustentável
Programa Niterói Presente pode ser encerrado. Foto- Prefeitura de Niterói
Operação do Niterói Presente, bancada pela Prefeitura de Niterói, com custeio de policiais do estado. Foto: Divulgação Prefeitura

O programa Niterói Presente interrompido de forma abrupta no dia 31 de agosto tem gerado controvérsia e preocupação. Sem detalhar o que deve ser implementado e sob gestão do Governo no Estado, o programa Segurança Presente teve sua estreia em Niterói com estrutura inferior ao antecessor. A operação começou no início do mês com menos veículos e sem apoio do Centro Integrado de Segurança Pública (Cisp), que já tem estrutura montada para a vigilância da cidade. O Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) já instaurou um inquérito para apurar a viabilidade e eficiência do novo programa. A Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa da Cidadania solicitou explicações sobre o lançamento do novo modelo de operação, que foi assumido pelo Governo do Estado em evidentes dificuldades financeiras, o que pode colocar em risco a segurança na cidade.

A princípio, a operação contará com 30 motos e 17 automóveis, enquanto a estrutura da Prefeitura costumava dispor de 65 motos e 24 carros. A Secretaria de Estado de Governo promete superar os veículos da Prefeitura, chegando a 70 motocicletas e 25 automóveis, cuja compra estaria em fase de licitação. Contudo, o aumento do efetivo policial não é o suficiente, conforme explica a especialista em Segurança Pública, Jacqueline Muniz, ao A Seguir: Niterói. Ela afirma que o programa Niterói Presente foi uma iniciativa provisória, já que tem prazo de validade, porque a saturação de policiamento em determinadas regiões acaba gerando escassez de policiamento em outras. “Não há estoque de polícia. Então, esse modelo de empréstimo não se sustenta a longo prazo”, pontuou.

A especialista em Segurança Pública e professora da UFF, Jacqueline Muniz / Foto: Arquivo Pessoal

Jacqueline participou da formulação e implantação de diversos projetos no âmbito das políticas públicas de Segurança, dentre eles: Instituto de Segurança pública (ISP/RJ), Corregedoria Geral Unificada das Polícias/RJ, Matrizes curriculares das polícias e das guardas municipais, Fundo Nacional de Segurança Pública, Áreas integradas de Segurança Pública (AISP/RJ). É atualmente professora do Departamento de Segurança Pública e do Mestrado de Justiça e Segurança Pública (DSP), do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (IAC) da UFF.

A Seguir: Niterói: Como você avalia o legado do Niterói Presente? Acredita que o programa tenha sido eficaz?

JAQUELINE MUNIZ: A primeira coisa que nós temos que ver é que o programa Bairros Seguros assim como outros do Rio tinha como ambição suplementar e complementar efetivos, ou seja, recontratar os policiais em horas de folga, de maneira a ampliar a capacidade ostensiva do policiamento da polícia militar. Era uma forma de realocação de recursos, de sobrepor e de produzir saturamento de policiamento ostensivo.

O Niterói Presente nada mais era do que uma suplementação de efetivo de policiais para maximizar a cobertura ostensiva em toda a cidade e ampliar a capacidade da Polícia Militar (PM), recontratando policiais em horas de folga. Eram quase 500 policiais a mais do que o 12º BPM. Era uma sobreposição, o que gera um saturamento, que reduz as possibilidades de ocorrências de crimes de rua no espaço público, os chamados crimes de oportunidade. Aqueles que os cidadãos estão expostos quando pegam um ônibus, quando estão na calçada, caminhando, indo para o trabalho, etc. É um policiamento que dá conta da mobilidade e do fluxo da população. Produz efeito, porque esse policiamento monótono é rotineiro e tem um impacto mais significativo nas dinâmicas criminais cotidianas a qual a maioria das pessoas está exposta.

Não é a polícia do espetáculo, nem a de operações que gera o resultado dos efetivos continuados e, sim, o arroz com feijão do policiamento. O Niterói Presente era o arroz com feijão, sem precisar inventar moda, razoavelmente a baixo custo. Mas com um detalhe: era a Prefeitura que pagava integralmente. A Prefeitura alugava quase 500 policiais, que era o tamanho de um batalhão de médio a grande porte, para suplementar recursos. E com isso você desloca a dinâmica criminal para outro lugar, porque ali você tem uma sobrepresença ostensiva de polícia. Então, a população estava pagando duas vezes pela segurança pública: uma pelo 12º BPM e outra pelo Niterói Presente, como se fosse um artigo de luxo a mais.

A alocação de recursos da segurança pública compete ao Estado. Isso porque nem todos os municípios conseguem pagar duas vezes e alugar/terceirizar a polícia para o seu município. Mas pagar a longo prazo fica insustentável. Isso revela uma iniciativa provisória. Não basta aumentar o efetivo artificialmente como foi aumentado em Niterói por um período. Isso dura até certo momento porque gera escassez de policiamento em outro lugar. Essa sobreposição é uma estratégia eficiente. O arroz com feijão funciona, mas não há estoque de polícia. Então, esse modelo de empréstimo não se sustenta.

E qual seria a melhor estratégia, nesse caso?

– A Prefeitura não pode ter uma postura reativa. É preciso que ela tenha uma política de segurança urbana que envolva guarda municipal e outros atores reguladores que permita mobilidade no território e distribuição de fluxos: pessoas, bens, serviços e tudo mais. Não é só policiamento que interrompe crime. A Prefeitura não inovou. Ela fez o que se faz na cidade há mais de trinta anos. É uma prática antiga.

Agora, é preciso dar um salto de qualidade. Essa saturação de policiamento circulava em certas regiões da cidade, como Charitas, Icaraí, mas pegava Engenhoca inteira? Pegava o Morro do Preventório? Tem que ter uma distribuição e não ficar restrito aos locais de maior adensamento populacional, de riqueza. Crimes não reconhecem fronteiras. Não houve um plano estruturado de segurança e, sim, um saturamento do efetivo policial. Durou como uma medida provisória, foi legitimo. Mas o efeito de saturação não resiste ao longo do tempo.

É necessário articular os serviços essenciais em Niterói com Guarda Municipal e outros dispositivos de controle e de regulação. O monitoramento por vídeo é um recurso interessante, mas reativo, porque ele precisa ter capacidade de pronta resposta. Atrás da câmera tem que ter um olho que vê. E uma capacidade de resposta de um acionamento de viatura imediato. Precisamos lembrar que a câmera é uma ferramenta, mas sem planejamento e integração não irá produzir resultado.

Outra coisa é que a Prefeitura preferiu alugar PM a ampliar o efetivo de sua Guarda Municipal. Isso porque, para ampliar o efeito da Guarda, ele tem que contratar, fazer concurso, treinar, pagar décimo terceiro. Isso gera um custo. É uma despesa permanente.

A segunda coisa é a visão equivocada do Governo do Estado. Não pode de uma hora para outra avisar que não vai ter mais o programa. Tem que ter uma transição. É uma população que estava sendo policiada, assistida. Existia um policiamento pago, um convênio e uma parceria. Isso demonstra uma leitura reativa por parte do Governo do Estado, que não sabe para onde vai. O Governo aposta na polícia de operações, que não gera controle acumulado nem de população, nem de território, nem de fluxo, mas tem alta visibilidade. O que dá certo em segurança pública é barato e rotineiro, o arroz com feijão do policiamento.

É preciso reconstruir o projeto de Segurança Pública para Niterói de forma a atender às necessidades concretas do município. A Prefeitura tinha que ter se preparado para isso, porque esse programa ia acabar e deveria ter sinais já dados pelos governantes de que não daria continuidade.

Quando você fica refém de operações e não produz controle de território de população, você não consegue sustentar o efeito repressivo no tempo e no espaço. Se gasta muita polícia e pouco resultado.

E tem uma questão política envolvida nessa interrupção do programa, né?

– Eles não estão renovando o contrato com Niterói também porque essa saturação de policiamento em alguns locais gera escassez em outros. Falta entendimento do que é segurança pública. É um entendimento limitado. Quanto mais se gasta recurso repressivo, maior é a escassez de repressão. Se você sobremprega recursos repressivos em operação, há uma escassez de policiamento. A partir do momento que você sobrepõe, você sabota a cobertura ostensiva da polícia. Há sim diferenças políticas partidárias, mas sobretudo estupidez. Ficar sempre alugando policiais é um efeito reativo e limitado. É uma solução provisória para você ganhar fôlego e implementar uma política de segurança urbana. Pensar que a segurança pública se resume ao aumento do efetivo policial é um raciocínio preguiçoso.

O efeito do Niterói Presente é conjuntural, pontual, situacional e tinha prazo de validade. O Niterói Presente é uma prática que tem sido feita no Rio de Janeiro há muito tempo, de aluguel e terceirização de recursos policiais. É um programa que teve seu mérito, mas com prazo de validade.

O principal ator de Segurança Pública é o município, porque é ele que detém toda a infraestrutura social e urbana de provimento de segurança. Só não possuímos a PM e a polícia civil, o resto todo está na mão do município. A responsabilidade de prover a ordem pública urbana é do município. Segurança pública é circulação de ideias, de valores, pessoas, bens, serviços em larga escala e transfronteira. O nosso maior desafio não é dinheiro, não é falta de competência, de qualidade decisória política. Nosso maior desafio é a mudança de mentalidade. Ainda contamos com o suporte da UFF, que é a principal universidade do país na produção de trabalhos científicos e de diagnósticos da segurança pública. Olha como a ciência sai barato!

Esse modelo de emprego policial reativo, centrado na viatura, fazendo ronda, já foi desgastado e questionado em 1970. Estamos vivendo um problema de mentalidade e de gestão, pautado na reatividade. A polícia não atua antes, durante e depois. Ela atua no agora e no depois. Está faltando entender de polícia e policiamento.

Quais são suas expectativas para o Segurança Presente? Ainda não é possível ter uma análise do novo programa, mas você poderia comentar em linhas gerais sobre o que espera dele?

Para eu poder avaliar, eu preciso dos indicadores de insumo do projeto, do processo e do resultado. Preciso que a Prefeitura apresente os indicadores de insumo, ou seja, o que foi aportado no programa Segurança Presente. O processo, para entender em que pé está cada ação prevista. E os indicadores de resultado de cada ação prevista. Para fazer uma análise consistente, que seja útil aos dirigentes e à comunidade de Niterói, é necessária uma apresentação desses indicadores. Não existe plano de segurança pública sem diagnóstico e monitoramento. Precisamos entender o caminho e ir corrigindo rota.

Não dá para ficar avaliando a partir de números. Isso é uma leitura parcial e limitada. Analisar apenas as estatísticas criminais, o aumento ou a redução dos crimes notificados como índice de sucesso é limitador. Não podemos ficar refém dos números. Eles servem para planejar, para saber como melhor agir, mas para monitorar é necessário os indicadores do projeto, do processo e do resultado. Quem fica olhando só para indicador de resultado perde a capacidade de gestão, de formulação de mudança e de intervenção.

Jacqueline Muniz é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense – UFF em 1986. Mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 1992. Doutora em Ciência Política pelo IUPERJ, Universidade Candido Mendes (1999) com a tese Ser policial é, sobretudo, uma razão de ser: cultura e cotidiano da PMERJ. Professora adjunta do Departamento de Segurança Pública e do Mestrado de Justiça e Segurança Pública (DSP), Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (IAC) da UFF. Professora do curso Tecnólogo em Segurança Pública e Social CECIERJ/UFF. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Conflitos e Sociedade – NECSo/DSP/IAC-UFF.

Sócia fundadora da Rede de Policiais e Sociedade Civil da América Latina e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Integrante da Rede Fluminense de Pesquisadores sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos. Exerceu as funções públicas de diretora do Departamento de Pesquisa, Análise da Informação e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública – SENASP/Ministério da Justiça (2003); Coordenadora Setorial de Segurança Pública, Justiça e Direitos Humanos (2002) e Diretora da Secretaria de Segurança Pública (1999) Governo do Estado do Rio de Janeiro. Participou da formulação e implantação de diversos projetos no âmbito das políticas públicas de Segurança, dentre eles: Instituto de Segurança pública (ISP/RJ), Corregedoria Geral Unificada das Polícias/RJ, Matrizes curriculares das polícias e das guardas municipais, Fundo Nacional de Segurança Pública, Áreas integradas de Segurança Pública (AISP/RJ), Indicadores de desempenho policial, Novos Regulamentos disciplinares da PMERJ e CBERJ, Revisão dos procedimentos operacionais, SUSP e SINESPJC/MJ.

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