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Um edifício de onze andares no lugar do prédio da Estação Cantareira pode desfigurar o bairro de São Domingos, um dos últimos locais da cidade que contam a história de Niterói – é o que teme a arquiteta e urbanista Lucia Borges, representante do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) no Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Cultural de Niterói.
– Quando você planta um edifício no meio de um bem daquele, acham que tudo bem, desde que se preserve a fachada. Mas isso já cria urbanidades diferentes, outras configurações e outras relações sociais, descaracteriza – sustenta a arquiteta.
O projeto apresentado pela Prefeitura de Niterói autoriza a construção de um prédio habitacional, diante da praça Leoni Ramos, também conhecida como praça da Cantareira, um dos raros locais da cidade que mantém o ruas de paralelepípedo e fachadas de casarões de dois séculos atrás, reduto de estudantes da UFF, artistas e da música, às vezes comparado à Lapa ou Santa Tereza.
Pouca informação
Na barraca de pastel da dona Dilma, na praça da Cantareira, Arthur Ribeiro, vendedor de máquinas de cartão para estabelecimentos, finaliza o atendimento. Ele era o único do grupo que ali estava que ouviu falar da possível construção de um prédio na região, mas não sabia que era especificamente no terreno da “Estação Cantareira”, antiga oficina das barcas e alvo do novo Plano Urbanístico da Prefeitura. Depois de dois anos fechado, o espaço vai receber o cantor Fábio Júnior, em maio, para um show.
O espaço, que tem história e já foi palco de muitos artistas de dentro de fora da cidade.
– A praça é um ponto de encontro, é onde muitos niteroienses se conheceram, desenvolveram amizades. Todo mundo tem algum momento ou alguma história para contar dela. É um lugar em que todo tipo de pessoa está. Você encontra morador de rua, estudante, trabalhador, é bem democrático. Não tem limitação, é para todos os públicos. E quem trabalha ali está há muitos anos, há gerações – relata o vendedor.
Valor social
É neste ambiente que está situado, desde 1906, o imóvel da Cantareira. Patrimônio tombado da cidade, ele inspirou o nome da Praça e já foi uma oficina de embarcações da Companhia Cantareira e Viação Fluminense. A proposta do Executivo municipal prevê autorização para construir o prédio no local, tendo como contrapartida manter a fachada e doar 50% do espaço térreo da antiga oficina para a cidade.
Arthur, que mora no Palácio, acredita que a obra pode acabar mudando a relação das pessoas com a praça.
– Esse tipo de obra ‘vira uma chave’ para o lugar. Tem que fazer uma balança do que é progresso e evolução da cidade, e o que pode acabar atropelando um local de muita história.
O projeto mereceu debates e muitas críticas na Câmara dos Vereadores de Niterói, e foi tema de agitada audiência pública. A Prefeitura informou que vai proteger a fachada da Cantareira e defende a ocupação do lugar para a construção do prédio residencial, diante da deterioração do bairro. Vereadores sustentam que a Prefeitura tem sido negligente com a preservação de São Domingos, permitindo a ocupação irregular e deterioração de construções históricas. E denunciam o risco de descaracterização do bairro.
Proteção da cultura
A arquiteta e representante do IAB no Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Cultural de Niterói Lucia Borges explica que não é só uma questão de manter a fachada – que tem referência de valor cultural do imóvel tombado –, mas tem toda uma relação de escala, proporção, de relação de um imóvel com outro. Para ela, a configuração física do ambiente estabelece as dinâmicas sociais que dão vida ao bairro.
– Nesse sentido, a praça de São Domingos, aquela ambiência como um todo, é de grande relevância. Quando você desconfigura um espaço, quando você planta um edifício no meio de um bem daquele, acham que tudo bem, desde que se preserve a fachada. Mas isso já cria urbanidades diferentes, outras configurações e outras relações sociais, descaracteriza.
E por falar em descaracterizar, há um exemplo no próprio estado do Rio de Janeiro de imóvel histórico atropelado por um arranha-céu. O edifício da Cândido Mendes, na Praça XV, foi construído em 1978 no pátio do Antigo Convento do Carmo, um dos maiores e mais importantes edifícios coloniais do Rio de Janeiro.
Outro exemplo é a sede da editora Hearst, em Nova Iorque. A Torre de Hearst foi construída em 2004, um projeto do arquiteto inglês Norman Foster, no interior do prédio original, datado de 1928.
Breve histórico de São Domingos
Em contato com o A Seguir: Niterói, o professor de história da UERJ, Rui Aniceto, conta que tudo começou no início do século XIX, quando Dom João VI veio tirar alguns dias de descanso na Praia Grande – como era nomeada a cidade, não era “Niterói” ainda – após a morte da mãe, dona Maria I. O recém aclamado rei se fixou num palacete que havia em São Domingos.
Segundo o professor, a vinda de Dom João VI causou burburinho entre os proprietários e a elite da Praia Grande, que se organizaram e começaram a pleitear a criação de uma vila, a Vila Real da Praia Grande, anos depois, rebatizada de Niterói.
O desenvolvimento se processa a partir daí. Ali funcionava a estação das barcas antigamente, onde atracavam embarcações. A Estação da Cantareira foi oficina e estaleiro da Companhia Cantareira e Viação Fluminense.
– Hoje em dia, toda a região da UFF é aterrada, mas o mar ia até a beira da praça, onde está localizado o imóvel da antiga estação – conta – Depois só é transferida para a região que hoje é o centro de Niterói no projeto de remodelação durante o período do Feliciano Sodré como prefeito de Niterói, na segunda década do século XX, início da década de 1910, acompanhando as reformas de Pereira Passos, no Rio.
Com a mudança geográfica da estação, a Cantareira acabou perdendo o seu lugar de prestígio. O espaço foi desativado e acabou ficando abandonado. O historiador relembra que com a construção dos campi da UFF, na década de 1980, viu-se um movimento de recuperação daquele espaço e de criação de um ponto cultural, a Estação da Cantareira.
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