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Moradores de São Gonçalo explicam o que tem motivado saída em massa da cidade

Por redação
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Queda de qualidade de vida e “desesperança” com o futuro da cidade são as principais queixas dos moradores da segunda maior cidade do estado
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“O que pesa é a falta”, obra do artista plástico gonçalense Jefferson Medeiros ilustra bem um dos motivos da saída de mais de cem mil pessoas da cidade

Sair de casa às 5:30 da manhã, pegar ônibus lotado, barca lotada, ir trabalhar em outras cidades, participar do seu desenvolvimento, e depois pegar o mesmo percurso cansativo e demorado só pra dormir em um lugar que está totalmente estagnado. Essa é a rotina descrita por gonçalenses que conversaram com o A Seguir: Niterói sobre os motivos que vêm motivando a saída em massa de moradores da segunda maior cidade do Estado, que perdeu 10,30% de sua população nos últimos 12 anos, segundo revelado no Censo 2022. Entre muitos desconfortos, a falta de perspectiva vem desmotivando o povo de São Gonçalo, especialmente os mais jovens, a verem um futuro na cidade onde cresceram.

É o caso da biomédica e esteticista Maíra Ingrid Vitorino (29), que cresceu no Jockey brincando com os irmãos no quintal da casa própria dos pais, em uma rua onde morava boa parte de sua família. Na idade adulta, porém, a cidade onde cresceu não parecia ter mais nada a lhe oferecer, mesmo com duas formações. Ela optou por se mudar para Niterói em 2019, com esperança de ter mais perspectivas de vida do que na cidade natal. Como toda gonçalense, ama e defende sua cidade, e se diz triste por ter que gastar dinheiro com alugueis caros apenas para poder conseguir trabalhar, mas não viu alternativa diante da falta de oportunidades:

– Sou nascida e criada em São Gonçalo e aprendi a amá-la, tenho casa própria, o ideal seria eu poder investir nela e não ter que pagar os alugueis caros de Niterói.

Maíra já trabalhou em Niterói, Rio de Janeiro e Itaboraí, mas nunca encontrou emprego em sua área na cidade natal. Foto de arquivo pessoal

Fábrica de desesperança

Um fato icônico que representa bem os problemas de falta de prioridade em criar infraestrutura duradoura na cidade foi anúncio da desativação do prédio da Prefeitura de São Gonçalo na rua Feliciano Sodré por risco de desabamento. Um laudo emitido em 2011 apontava que o prédio deveria ser derrubado, e só agora isso será feito. Enquanto isso, a população viu e continua vendo serem construídas muitas praças. A atual gestão, do Prefeito Capitão Nelson (PL) tem publicizado um grande investimento em obras de calçamento e asfalto em diversos bairros.

O artista plástico e professor de História Jefferson Medeiros é nascido e criado no bairro de Itaúna e fez faculdade no Paraíso, na Faculdade de Formação de Professores da Uerj (FFP – Uerj). Toda sua vida se deu na cidade, e a batalha diária dos trabalhadores e as violências sofridas pela população suburbana e periférica, como a de onde cresceu, inspiram seu trabalho com esculturas que refletem os desafios e mazelas dessa parte da sociedade. Ele diz que São Gonçalo, que já foi uma cidade produtora que atraiu muitas pessoas, hoje espanta a população por produzir desesperança:

“Acho que isso é a coisa mais cara pra qualquer pessoa: um horizonte de perspectivas. Se você não tem perspectivas, não tem porquê você continuar algo. Você pode até estar em um lugar que você não gosta, mas quando há perspectiva de mudança, quando há projeto, esperança, é possível resistir a esse mal estar porque se acredita que ele é temporário. O lance é: São Gonçalo não apresenta perspectiva. Então acho que São Gonçalo, com exceção dessa coisa dos gonçalenses dessa esperança que se constrói das pessoas nas próprias pessoas, não se tem esperança em projeto político. Acho que é isso, São Gonçalo tem construído desesperança na população, e quem não tem esperança, migra.”, reflete o artista.

Jefferson Medeiros, natural e morador de São Gonçalo, ao lado de sua obra “Moinho”, de 2023. Arquivo pessoal

Mas de onde vem tanta desesperança no futuro? Problemas crônicos como falta de infraestrutura, vontade política e segurança podem estar por trás da busca por outro endereço para construir a vida. Foram os motivos  que motivaram a jornalista Debby Mahianini (34) a trocar o bairro Coelho por Inoã, em Maricá:

– Na época o valor de compra era menor aqui, por isso escolhi a cidade para viver. Mas ver as políticas públicas, qualidade de vida e segurança em Maricá me fizeram ficar. Hoje não me vejo em outro lugar e sempre que viajo faço comparações com Maricá.

E ela compara com a cidade onde viveu por 24 anos:

– São Gonçalo é uma cidade com grande capacidade, mas ainda carece de segurança, políticas públicas efetivas e oportunidades de trabalho.

O depoimento dela condiz com o de Jefferson sobre a falta de ânimo em permanecer em uma cidade que não oferece perspectiva para os moradores:

“Se você não tem perspectiva, não tem porque você continuar algo. Então, você pode até estar em um lugar que não te agrada, mas se você tem projeto, esperança, é possível persistir a um mal estar, porque você entende que é temporário. O lance é que São Gonçalo não apresenta perspectiva. Então acho que, com exceção dessa coisa dos gonçalenses, da esperança que o povo da cidade tem no próprio povo, não se tem projeto político. E quem não tem esperança, migra”, reflete.

Cidade dormitório

O que já foi uma grande produtora agrícola, famosa inclusive pelos laranjais que deram nome a um dos bairros, se transformou em cidade dormitório, o que faz boa parte do tempo do dia do gonçalense ser gasto no transporte público. Jefferson reflete sobre isso em sua obra “Descanso”, que lembra o ditado “enquanto descansa, carrega pedra”, pois é acolchoado com confortáveis sacos cimento, no lugar do estofamento típico de uma cadeira onde se espera descansar o corpo após um longo dia. É como se o trabalho nunca cessasse para quem vive ali.

Obra “Descanso”, do artista gonçalense Jefferson Medeiros.

A distância também compromete a empregabilidade, pois o custo com transporte dos funcionários faz empresas em outras cidades declinarem de contratações. Para Maíra, este foi um dos principais fatores que a fizeram deixar a cidade. Ela diz que passava cerca de quatro horas por dia no trânsito:

– Em São Gonçalo, na área na qual eu trabalho, não tem demanda, tem muito poucas oportunidades. Ou os empregadores [de outras cidades] tem muito preconceito. Então, entra estes fatores: falta de demanda, tempo que eu gastava no trânsito e oportunidade.

Violência urbana

A violência também espanta, literalmente. O relatório anual do Instituto Fogo Cruzado mostrou que São Gonçalo foi a segunda cidade do Estado do Rio em número de tiroteios: foram 298, que deixaram 119 mortos e 145 feridos.

Para além da guerra entre facções, a violência policial também assusta e traumatiza, como o caso do assassinato do adolescente João Pedro, de 13 anos, dentro de casa, durante uma operação em 2020, e a chacina ocorrida no Salgueiro em 2022, que matou 9 pessoas, dentre procurados pela polícia e inocentes.

Falta de interesse público

E, finalmente, tem a falta de infraestrutura. Moradores antigos, como Jefferson, conhecem os problemas crônicos da cidade, como as enchentes. Uma que marcou a população ocorreu em 2015, e inundou bairros inteiros. No Alcântara,  a água chegou a dois metros de altura no prédio do Colégio Estadual Pandiá Calógeras, uma importante escola no bairro comercial da cidade.

Colégio Estadual Pandiá Calógeras durante enchente história de 2015. Imagem de arquivo.

Algumas eleições depois, as causas das enchentes continuam preocupando e dando prejuízos. Em fevereiro de 2022, São Gonçalo sofreu três novas inundações em uma única semana. Desta vez, os alunos do Pandiá ficaram semanas sem aulas, pois a força da água derrubou o muro que separa o terreno da escola de um córrego que passa ao lado. A sensação que fica nos moradores, como Jefferson, é que não há interesse, seja da Prefeitura ou do governo do Estado em resolver essas questões crônicas, e salve-se quem puder:

– São Gonçalo é carente de vontade pública. É uma coisa meio coronelista, como se o interesse em São Gonçalo fosse necessariamente pelos votos, e a humanidade daqueles que vivem aqui fosse uma humanidade de segunda ordem; reflete o artista e historiador.

O que resta é buscar esperança em outro lugar, onde não só se dorme, mas se pode viver, com menos violência e negligência e mais perspectiva de prosperidade.

“Não só de segurança, é de tudo. Poder sonhar, mesmo. Não só fugir, da violência, do descaso. É fugir na direção de onde se pode realmente sonhar, pra caminhar, mesmo. É a barricada em tudo que é lugar, é a falta de vontade pública, é não ter projeto, é não ter emprego, é cansar de se entender como um espaço dormitório e ser retratado como uma mera ferramenta, que é usada pra construir outros lugares”, conclui Medeiros.

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