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Poeta, romancista, memorialista, ensaísta, tradutor, editor, professor. Reeleito para o quarto mandato como presidente da Academia Brasileira de Letras, Marco Lucchesi prefere ocupar espaços onde não precisa se abreviar. Sua presença alcança diversos ramos da literatura, da arte… da vida de modo geral. Seus livros foram traduzidos para diversos idiomas, árabe, romeno, italiano, inglês, francês, alemão, espanhol, persa, entre tantos outros.
Leitor voraz e desprendido de bens materiais, Lucchesi leva uma vida simples, em que a literatura se faz presente de forma latente em diversas etapas de sua trajetória. Chegou a doar alguns quadros valiosos do seu acervo pessoal para a UFF, presenteando a universidade pelo seu aniversário de 60 anos, comemorados neste 18 de dezembro, e reduziu a sua biblioteca particular de 90 mil para 10 mil livros, com a doação de obras raras para a biblioteca da UFF e entidades culturais do Estado do Rio.
As línguas são como pontes de comunicação
Dono de um olhar sensível, define a literatura como um lugar que exige uma grande dedicação e certo envolvimento intrínseco, que se estabelece entre o leitor e a obra:
– A boa obra literária é uma máquina preguiçosa porque ela exige que o leitor trabalhe. A poesia exige um esforço e, quanto maior ele for, mais você descobre coisas que em um primeiro momento você não seria capaz de ver. São momentos de epifania que você colhe da sua própria vida – diz Lucchesi, que também mantém uma relação muito forte com a música.
Em um momento da conversa, quando falávamos sobre o que ele tem feito nesse período de confinamento, o presidente em exercício da ABL me brinda com um trecho do Noturno nº 2 de Chopin no seu piano Albert Schmolz, que carinhosamente chama de Alberto. Ele diz que não há um dia que não tenha uma partitura em sua mão. Lucchesi vem de uma família que tem uma veia musical pulsante. Ele guarda lembranças de sua mãe cantando e tocando piano. “Em família, a gente gostava muito de cantar, e a música foi uma iniciação para a poesia”, diz.
Como se não bastasse, Lucchesi fala mais de 20 idiomas e é cantor lírico. Transitou por diversos locais do Brasil, dando palestras pelo país e em diversas universidades no mundo, além de ter participado de seminários, feiras de livro e encontros literários mundo afora. Foi também editor de revistas, colunista de diversos jornais, como o Globo e o Jornal de Letras de Lisboa. Professor titular de Literatura Comparada na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Lucchesi é graduado em História pela UFF e tem mestrado e doutorado em Ciência da Literatura, pela UFRJ.
Sua atuação notória em defesa dos direitos humanos se traduz na constante presença em comunidades e prisões cariocas, mediante projetos literários e educativos. Chegou a ser convidado pelo Conselho Nacional de Justiça a integrar o Grupo de Trabalho para a elaboração do Plano Nacional de Fomento à Leitura nos Ambientes de Privação de Liberdade.
Lucchesi define sua relação com Niterói em forma de metáfora: “é de uma fidelidade canina.” Quando saiu do Rio para vir morar na cidade, aos 8 anos de idade, não esperava uma paixão tão arrebatadora. Ele diz que esse amor se reflete em uma tríade composta pelo Colégio Salesiano, em que estudou boa parte de sua vida, pela UFF e pela sua relação com pessoas que promoviam encontros na rua.
Em entrevista ao A Seguir: Niterói, Marco Americo Lucchesi fala sobre o lugar que a literatura e a música ocupam em sua vida, sua experiência na ABL, suas referências literárias, sua relação com o povo indígena, entre tantos outros temas.
A Seguir: Niterói: O que guarda de memória afetiva do período escolar? Você estudou no Salesiano, correto? Quais outros lugares fizeram parte de sua vida escolar?
– Marco Lucchesi: Eu venho de uma família italiana, meus pais são da Toscana e chegaram ao Brasil nos anos 50. Nasci no Rio de Janeiro e tinha oito anos quando cheguei à Niterói. Nos mudamos para Icaraí, junto com a minha avó materna, porque meu pai estava implantando um sistema para as rádios Tupi e Tamoio, em São Gonçalo.
Durante a minha vida, estudei em alguns colégios. O primeiro, que não existe mais, foi o Colégio Pio XI, que ficava na Rua Otávio Carneiro. Depois, fui estudar no colégio Marly Cury, a famosa tia Marly, uma figura muito amada. Na época, era uma grande casa localizada na Mariz e Barros, também em Icaraí. Em seguida, fui para o Salesiano. Inclusive, quando fizeram uma homenagem a mim no Salesiano, a Marly não deixou de ir e eu fiquei muito emocionado com a presença dela. Lembro como se fosse hoje. Mas onde eu passei boa parte da minha vida escolar foi no Salesiano. Ingressei na antiga quinta série e fiquei até o último ano do Ensino Médio, antes de entrar para a faculdade. Eu gostava de muitas coisas do colégio. É onde eu guardo boa parte das minhas histórias e das minhas raízes. Gostava da imensidão do colégio. Os professores a quem eu devo muita coisa, que marcaram a minha trajetória. O grande órgão que ele possui, o maior da América Latina. Eu participava do jornal que eles tinham na época, o Noticiário Jovem. Eles chegaram a fazer uma biblioteca com meu nome. É uma das grandes emoções.
Como é ser reeleito para o quarto mandato como presidente da ABL?
– Da parte dos acadêmicos, um gesto de absoluta generosidade, mas da minha parte, um ato de loucura. É um momento muito difícil. Ser brasileiro hoje é uma condição de alto risco e, literalmente, de insalubridade. Dirigir uma instituição cultural nesse momento é complexo. E a Academia Brasileira de Letras é uma instituição muito importante para o país. Presidindo a ABL você compreende aquilo que disse meu querido amigo Alberto da Costa e Silva, de como a Academia está enraizada no brasileiro e a força que ela tem. A gente teve que se reinventar, né? Por meio dos podcasts e sites, os acadêmicos filmando com o próprio celular. Pode parecer simples, mas isso tudo requer uma reengenharia profunda. Fechamos logo as portas, porque já prevíamos que a pandemia seria terrível para todas as instituições. Fizemos acordo com a Marinha para levar livros aos ribeirinhos, levamos livros para orfanatos, asilos de longa permanência, quilombos, aldeias indígenas e presídios.
Você tem um projeto bem bacana em que faz visitas constantes a presídios e estabelece um diálogo franco com os apenados, como se estivesse conversando com seus alunos sobre Literatura. Conte um pouco sobre sua atuação no sistema prisional brasileiro. O que te inspirou a fazer isso? Com que frequência costumava fazer essas visitas?
– Isso começou com uma carta que recebi de um apenado que me escreveu, sem que eu o conhecesse, nos anos 2000. A partir de 2011 eu comecei a visitar os presídios com mais frequência. A inspiração vem de muitos lugares: primeiro, porque meu avô, foi levado para um campo de concentração na Áustria e de lá ele se salvou graças à sua própria astúcia. Também tem relação com a minha amizade profunda com a doutora Nise da Silveira. Comecei a visitar os hospitais psiquiátricos por conta de sua obra tão fabulosa. E também porque perdi um grande amigo na Síria, o padre Paulo. Um homem de profunda coragem que eu conheci no deserto da Síria. É o somatório desses elementos todos, mas se você me pedisse objetividade, eu diria Dostoiévski. A leitura da obra dele. “O homem do subsolo”, “Crime e Castigo”. Isso me levou a trabalhar nessa área e hoje eu tenho muito orgulho de contribuir para o grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça, que trata justamente da leitura em espaço de privação da liberdade.
Em relação à frequência, ela é muito sentimental porque não é simples ir à prisão. Eu não sou um agente da lei, do Estado, eu sou apenas um cidadão. E não vou só para ensinar, vou para aprender. Em geral, eu visitava sozinho. Muitas vezes entrava nas grandes celas sem ninguém me acompanhando. É uma forma de compreender quem sou eu naquele meio, que linguagem devo utilizar. É um grande aprendizado. Acabei de publicar um livro que se chama Cultura da Paz, que é um grande ensaio em prosa poética e nesse livro tem uma parte inteiramente dedicada às minhas visitas nas prisões, onde relato a minha experiência.
Como é a sua relação com Niterói? O que guarda na sua memória afetiva?
– A minha relação com Niterói é uma tríade composta pelo Colégio Salesiano, pela UFF, onde me formei em História, e a minha relação com pessoas que promoviam encontros no calçadão. Eu devo muito a Niterói. As inquietações do mundo, da vida. Não tenho nenhuma razão para morar em Niterói do ponto de vista objetivo, mas pelo lado sentimental, tenho todas as razões. É de uma fidelidade canina. Eu me sinto muito niteroiense.
Como tem sido sua rotina durante a pandemia? Você continua morando em Itacoatiara? O que gosta de fazer no bairro e em Niterói de um modo geral?
– A minha grande companhia é o Alberto (meu piano) e os livros, claro. As minhas grandes paixões são a literatura, a música e o telescópio. Gosto muito de observar o céu. Sou encantando por ele. Já escrevi até um livro sobre o assunto. Aproveitei o momento também para escrever uns livros e finalizar outros. Um se chama “Cultura da Paz”, que é um ensaio poético, o outro se chama “Vestígios”, que é um diário filosófico, e o terceiro é a tradução de um poeta romeno chamado Barbu. Estou planejando também um romance que será lançado em fevereiro, o “Adeus, Pirandello”, em referência ao escritor italiano.
Às vezes eu ando por Itacoatiara e tem uma parte que só o verde predomina e nesse caminho eu me vejo chegando à Massarosa, que é a cidade onde meus pais viviam, e quando estou lá, lembro de Itacoatiara. Também gosto muito de caminhar, sempre que possível. Claro que atualmente sempre utilizando máscara. Antes da pandemia, eu gostava muito de subir o Costão. Itacoatiara ainda guarda um compromisso ambiental, que não é simples. A Associação de Moradores faz realmente um trabalho magnífico. Enquanto em Icaraí é mais um trabalho de arqueologia sentimental. Tenho muitas memórias afetivas de lá, pois morei durante muitos anos no bairro. O Cine Arte UFF é uma peça de resistência importantíssima. Foi onde eu vi pela primeira vez um filme iraniano que me encantou.
E tem as livrarias, claro. Eu mantive por muito tempo uma relação de proximidade com os vendedores, com os livreiros. Frequentei todos os sebos possíveis em Niterói e doei muitos livros também. Eu sinto muita falta dessa relação mais aquecida entre os clientes e os livreiros. A livraria como um espaço de encontro, de troca de conhecimento. É necessária uma política, que foi desmontada recentemente, mais forte voltada às livrarias.
O que você carrega do seu DNA italiano?
Eu carrego o amor da minha mãe, a relação profunda de um lugar que me constituiu para tentar ser mais ou menos aquilo que eu desejo ser. A minha língua mãe é o italiano. É a primeira língua que me fez dizer coisas. Meus pais nunca se sentiram estrangeiros no Brasil, o que é uma virtude dos brasileiros e deles também. Eu acabei amando duas vezes o Brasil. Primeiro, por ser brasileiro e, segundo, pela gratidão de como meus pais foram tratados. Meus pais de certa forma são brasileiros porque o Brasil é uma república de etnias.
Você tem uma relação com o povo indígena também. Poderia falar um pouco sobre isso?
Eu fui visitar várias aldeias indígenas. Fizemos uma visita guiada com as crianças. Mas não os chamamos para ABL para que eles nos vissem. Pelo contrário, nós chamamos os índios para que eles fossem vistos e ouvidos. Eles falaram na ABL como protagonistas. Os caciques guaranis falaram na ABL a meu convite. Meu último discurso de posse na Academia, inclusive, abordou essa minha relação com os povos indígenas. Eu sonho com a ABL com mais mulheres, mais negros, mais índios.
Você possui um amplo conhecimento e fala 20 idiomas. A paixão pela língua vem desde pequeno?
– A condição bilíngue por si só já é interessante porque revela uma combinação descombinada. O meu avô falava de cinco a seis línguas. Uma prima também muito querida falava muitos idiomas. Então, acho que tinha uma tendência, da minha família por parte de pai. Eu sempre gostei de me comunicar, ter contato com o mundo. As línguas para mim são pontes de comunicação. Como poeta eu precisei traduzir. Acho que você não pode ficar restrito apenas à sua família literária porque a língua é uma forma de ver e cada pessoa enxerga de uma forma. O conhecimento do original ajuda a captar o som e o balanço das palavras de umas com as outras. Eu entendi sempre com muito orgulho o que significava falar uma língua. Me importa a relação do texto, a conexão com a alma.
Li em uma matéria que dizia que reduziu seu acervo de 90 mil para 10 mil, com a doação, inclusive, de obras raras e autografadas para a biblioteca da UFF e para entidades culturais do Estado. O que te motivou a fazer isso?
– As obras mais raras, no sentido de antiguidade, eu dei para o Museu Nacional, que teve seu acervo destruído por conta do incêndio. Foi como um símbolo para que depois das cinzas a sociedade se mobilizasse e inspirar os outros a fazerem o mesmo. Mas eu sempre fui muito desprendido dos bens materiais. Acho que eu queria socializar essa coleção. Queria compartilhar. Eu precisava fazer isso. Doei os meus papéis mais preciosos para a Biblioteca Nacional, cartas de Drummond, Umberto Eco com os esquemas da tradução. Eu tenho cada vez menos coisas em casa e acho que isso tem muito a ver com o momento.
Você costuma consumir a literatura ainda no papel ou faz um equilíbrio com o digital?
– Eu uso o que for me atender no momento. Às vezes, acaba sendo o digital, mas eu uso muito o livro. Ele tem um design interessante e nasce dessa portabilidade e dessa poética que todo mundo já fez e eu me associo a ela. Mas também uso muito o livro eletrônico, o e-book, o kindle. Não sou daqueles que colocaria livros eletrônicos em uma fogueira sob hipótese alguma.
Quais são as suas principais referências literárias? Quais gêneros literários ocupam mais espaço em você?
– Acho que o ponto central da minha vida é a poesia, porque você não faz poesia apenas quando está escrevendo. A poesia se faz presente quando você faz outros gêneros também. Eu enxergo a poesia sob uma perspectiva radial. Ela é o centro e vai tocando todas as bordas específicas do romance, do ensaio, do diário filosófico e das formas de traduzir a própria prosa. A poesia tem uma centralidade porque ela exige um grau de leitura mais intenso. Como já dizia Umberto Eco, a boa obra literária é uma máquina preguiçosa porque ela exige que o leitor trabalhe. A poesia exige um esforço e quanto maior ele for, melhor você descobre coisas que, em um primeiro momento, você não seria capaz de ver. Um determinado ritmo que tem sentido, uma determinada palavra que, caso outra fosse utilizada, não caberia naquele momento. Ela te dá uma arma para enfrentar o mundo: uma notícia de jornal, uma questão musical e na própria filosofia da matemática.
Quando eu era professor da Fiocruz, ensinava a poética da matemática. Quando eu faço minhas visitas na prisão, a própria chave é poética. A poesia está em todo lugar. Ela pode estar em um artigo de jornal, numa página de Dostoiévski, em uma aula, numa peça teatral. São momentos de epifania, que você colhe na sua própria vida. Tem que ter olhos e ouvidos atentos. Tem que treinar, se aprofundar e mergulhar. O fascismo detesta poesia. Ao invés de convidar para trabalhar com a poesia, ele sente que a poesia o afronta.
Você tem uma relação muito forte também com a música: toca piano desde os oito anos, já cantou óperas. Poderia falar um pouco sobre a presença da música na sua vida?
– A música é determinante na minha vida. Eu lembro com muita clareza da cena: eu com dois anos de idade e minha mãe tocando piano e cantando alguma música. O piano e o canto sempre foram muito presentes na minha vida. Em família, a gente gostava muito de cantar e a música foi uma iniciação para a poesia. Não há um dia em que eu não tenha uma partitura na minha mão. Isso tudo à noite, porque eu preciso encontrar uma paz. É sempre muita inquietação. A música me ajuda a meditar. Eu fico ouvindo, tocando. Ela é fundamental para mim. Gosto muito de música clássica, etnomúsica, música popular, contemporânea. Tudo me interessa.
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