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Um resumo das principais discussões relacionadas ao debate racial com linguagem acessível. O formato cabe no bolso, ou melhor na extensão do corpo em um smartphone. O “Manual de Boas Práticas Antirracistas na Comunicação Digital”, no formato de ebook, é um material de fácil acesso que reúne informações sobre temas relacionados à justiça social.
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Verbetes ajudam a explicar termos como “Woke”, “identitarismo”, “racismo”, “interseccionalidade”, “decolonialidade” e “branquitude”. Tudo em uma espécie de dicionário, ideal para consulta de dúvidas e para atualizar a memória.
O livro, lançado no final de março desse ano, já obteve mais de dois mil downloads, e contém ferramentas e dicas para uma comunicação antirracista. Ações como diversificar fontes e conteúdos, contextualizar os fatos e avaliar que mensagem está sendo passada são algumas das sugestões.
A cabeça por trás desse projeto é jornalista e coordenadora da Rede JP, Marcelle Chagas, com quem o A Seguir conversou, e Denise Mota, editora da AFP (Agência France Press) e colunista da Folha. Marcelle Chagas é jornalista e mestre em Comunicação pela UFF.
Formada por jornalistas e comunicadores pretos, a Rede JP é uma organização dedicada a buscar soluções para problemas sociais.
O material, que é gratuito e pode ser baixado em formato PDF no site da Rede JP, foi desenvolvido em parceria com o Instituto de Referência Negra Peregum e com apoio de instituições como a Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas) e a Cátedra de Comunicação da Unesco.
No final do manual, ainda há uma bibliografia com todos os autores citados, como uma espécie de porta de entrada para ampliar repertório e referências.
Alguns dos objetivos do manual, segundo Marcelle, é combater a desinformação e discursos discriminatórios, promover a diversidade e inclusão na mídia e nas redes sociais e apresentar um glossário com conceitos-chave para a comunicação antirracista.
Durante o lançamento, a jornalista Marcelle Chagas destacou que a comunicação digital historicamente reflete as desigualdades sociais e que o manual é uma ferramenta para corrigir distorções e estigmas nas narrativas sobre a população negra, promovendo uma transformação no mercado digital brasileiro para torná-lo mais inclusivo.
O lançamento do manual também dialoga com iniciativas governamentais, como o Plano de Comunicação pela Igualdade Racial na Administração Pública, que busca aprimorar a comunicação pública com foco na diversidade étnico-racial, enfrentando o racismo e promovendo a inclusão em espaços digitais e midiáticos oficiais.
Ao A Seguir, Marcelle destaca que os algoritmos reproduzem e potencializam as desigualdades da sociedade. Quando não são intencionalmente corrigidos, reforçam estereótipos, silenciam vozes negras.
— No digital, vemos páginas antirracistas penalizadas por “violar diretrizes”, enquanto conteúdos racistas são monetizados e impulsionados.
Outro ponto que ela levanta que merece toda a atenção é o racismo estrutural, como por exemplo, uma pessoa preta receber um tratamento diferente apenas pela cor de pele também, a redução do intelecto que vem com a descriminação, a associação à violência, entre outros.
Além de pesquisadora, Marcelle é especialista em divulgação científica, com experiências em instituições como o Centro Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Também é autora de artigos em publicações internacionais como o Le Monde Diplomatique e contribuiu como especialista para o relatório oficial do governo federal, ‘Racismo na Internet.
À frente da Rede de Jornalistas Pretos pela Diversidade na Comunicação, Marcelle impulsiona uma das experiências mais inovadoras do jornalismo contemporâneo.
Fundada em 2019, a Rede JP forma uma comunidade giobal que atua como estratégia de impacto coletivo, conectando mais de1000 jornalistas negros no Brasil e internacionalmente. A Rede desenvolve metodologias próprias de formação e pesquisa, influencia políticas públicas e estrutura redes transnacionais.
A SEGUIR: NITERÓI: Vemos muitos exemplos no dia a dia de racismo ancestral, em diferentes escalas e ambientes. Você pode citar alguns exemplos?
MARCELLE CHAGAS: O racismo ancestral se manifesta de forma sutil, mas contínua: quando uma mulher negra precisa provar três vezes mais para ser reconhecida, quando somos maioria nas redações, mas minoria nas lideranças, ou quando a tecnologia é construída ignorando nossos corpos, línguas e vivências.
Está no conteúdo das plataformas, nas políticas públicas que nos apagam e na ausência de investimento em iniciativas que vêm das margens.
– O que te instigou a escrever o Manual de Boas Práticas Antirracistas na Comunicação Digital?
A vontade de oferecer um material acessível e prático para quem comunica — seja jornalista, influenciador ou criador de conteúdo. O ambiente digital se tornou um espaço decisivo na disputa por narrativas, mas também é terreno fértil para o racismo e a desinformação.
O manual nasce da experiência da Rede JP e da necessidade de sistematizar diretrizes que combinem ética, representatividade e responsabilidade.
– O projeto já tem mais de dois mil downloads. O que você acha que colaborou para esse alcance?
Acho que o alcance se deve à linguagem direta, ao conteúdo aplicado e à urgência do tema. O manual responde a uma demanda real de quem deseja transformar suas práticas comunicacionais.
Além disso, ele foi pensado para ser útil tanto para grandes veículos quanto para comunicadores independentes — e isso gerou identificação.
– De certa forma, podemos dizer que a internet tem colaborado para eternizar a prática do racismo, com a força dos algoritmos?
Sim. Os algoritmos reproduzem e amplificam as desigualdades da sociedade. Quando não são intencionalmente corrigidos, reforçam estereótipos, silenciam vozes negras e transformam o racismo em regra algorítmica. A internet ainda opera sob lógicas coloniais que precisam ser urgentemente desafiadas.
– Temos uma novela no ar que fala sobre o racismo. A Raquel, uma mulher negra, destemida e realizadora, conquista tudo na base da honestidade e do caráter e é muito rígida com quem falta ética. A ética também é algo frágil hoje em dia. O que pensa sobre isso?
É muito simbólico que uma mulher negra firme e ética ainda seja lida como “rígida”. Isso diz muito sobre o quanto a sociedade tolera — ou não — a presença de mulheres negras em posições de autoridade. A ética, para mim, é um valor coletivo que precisa ser resgatado.
Hoje vivemos tempos em que princípios são relativizados por vaidade, audiência ou capital. Precisamos resgatar a ética como base para qualquer atuação social, inclusive na comunicação.
– Vemos muitas situações consideradas normais, mas que são carregadas de preconceitos. Cite alguns exemplos que vêm à sua cabeça.
No dia a dia, vemos diferença de tratamento quando uma pessoa preta entra em loja, quando está em espaços públicos e a segurança segue. Tem a questão do cabelo. São muitas questões sutis e outras não tão sutis assim carregadas de preconceito.
No digital, vemos páginas antirracistas penalizadas por “violar diretrizes”, enquanto conteúdos racistas são monetizados e impulsionados.
Recentemente, as jornalistas Luciana Barreto e Brasília Rodrigues sofreram ataques racistas em larga escala. Sofia Carrillo, jornalista peruana, também foi alvo de discriminação digital. Isso mostra como a normalização do preconceito está embutida nos próprios sistemas de moderação e nos modelos de negócio das plataformas.
– De que forma o uso das redes pode ser prejudicial no combate ao preconceito?
As redes sociais, regidas por algoritmos que priorizam o engajamento a qualquer custo, muitas vezes favorecem o sensacionalismo e o ódio. Isso silencia vozes antirracistas e expõe ativistas a ataques coordenados. Além disso, há um desgaste emocional real sobre quem está na linha de frente. Sem regulação, as plataformas se tornam máquinas de amplificação do preconceito — e não instrumentos de combate.
– Com a Mozilla Fellow, sua missão é construir uma tecnologia que não apenas evite reproduzir o racismo, mas que seja radicalmente diferente. Como a tecnologia pode ser uma ferramenta para alcançar pessoas, perfurar bolhas e transformar pensamentos?
Na Mozilla, desenvolvo tecnologias que colocam a justiça cognitiva e a equidade racial no centro.
A tecnologia pode ser uma ferramenta poderosa para reconstruir narrativas, conectar histórias e furar bolhas — desde que parta da escuta ativa dos territórios e das experiências de quem historicamente ficou fora das decisões tecnológicas.
Quando desenvolvida com intenção política e ética, ela deixa de apenas “não reproduzir o racismo” e passa a ser instrumento de transformação.
– Seu foco após a maternidade é numa comunicação especializada em saúde e ciência, com atenção a políticas públicas e epistemologias contra-hegemônicas, especialmente em regiões marcadas pelo apagamento da informação. Como foi chegar a esse mapeamento e quais lugares você avalia que são mais propensos a fake news?
A maternidade me trouxe um senso profundo de urgência. Percebi como a desinformação impacta diretamente a vida de mulheres negras e periféricas — especialmente em temas como saúde materna, vacinas, direitos reprodutivos.
Além disso, o racismo se tornou ainda mais real quando passou a afetar meu filho. Foi a partir dessa vivência que intensifiquei meu trabalho por uma comunicação que reduza desigualdades.
Mapear os territórios do apagamento foi um processo de escuta e análise de dados: comunidades ribeirinhas, quilombolas, favelas e periferias urbanas são especialmente vulneráveis à desinformação, pois estão fora dos circuitos formais e confiáveis de informação pública.
– Fale um pouco do seu trabalho e dos bastidores da fundação da Rede de Jornalistas Pretos pela Diversidade na Comunicação (Rede JP) e da criação do GriôTech.
Atuo na interseção entre comunicação e tecnologia, com foco em justiça racial, enfrentamento à desinformação e inovação baseada em saberes diversos.
A Rede JP nasceu da urgência de transformar o ecossistema da comunicação no Brasil, valorizando vozes negras e territórios historicamente silenciados. Foi construída de forma colaborativa, com escuta ativa dos profissionais negros e atenção às lacunas estruturais do jornalismo.
Já o GriôTech surge como uma proposta de tecnologia enraizada na ancestralidade, voltada para desenvolver soluções digitais mais éticas, comunitárias e inclusivas — unindo inovação e pertencimento.
– Para você, o que há de mais valioso que você conseguiu conquistar até hoje graças à sua profissão?
O mais valioso foi construir espaços de pertencimento e autonomia para outras pessoas negras na comunicação e na tecnologia. Criar redes, projetos e metodologias que rompem com a lógica do silenciamento e reconhecem saberes historicamente ignorados é um legado coletivo que me move todos os dias.
Marcelle Chagas é jornalista e pesquisadora. Tem se destacado como uma das principais pensadoras da interseção entre ancestralidade, comunicação e inovação digital.
Trabalhando na convergência entre comunicação e tecnologia, Marcelle possui mestrado em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense, especialização em desinformação e um MBA em Comunicação Online e Marketing Digital — uma formação que traduz em prática seu compromisso com a transformação dos ecossistemas digitais.
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