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Gari que estuda na PUC quer mudar o mundo e promover consciência ambiental

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Niteroiense que foi notícia no mundo todo por trabalhar na Comlurb e estudar na PUC pretende “ser um multiplicador de conhecimento”
Profissional de limpeza urbana e estudante de ciências sociais usa sua formação para contribuir com sua categoria e com a sociedade. Foto- Coletivo Nuvem Negra (PUC)
Profissional de limpeza urbana e estudante de ciências sociais usa sua formação para contribuir com sua categoria e com a sociedade. Foto: Coletivo Nuvem Negra (PUC)

Anotem esse nome: Felipe Luther. O niteroiense chamou a atenção da mídia internacional pela garra com que administra o dia a dia, trabalhando como gari e sendo aluno na PUC-Rio. A imagem do rapaz de origem humilde que supera dificuldades para fazer um curso universitário foi o que o destacou a ponto de virar notícia, porém sua vida é muito mais do que a trajetória romântica do herói que supera obstáculos para ter uma vida melhor. Luther trabalha na Comlurb e faz parte do Círculo Laranja, um movimento socioambiental que propõe mudar a forma como a sociedade vê sua relação com o lixo, meio ambiente e a profissão de gari.

O estudante de Ciências Sociais e membro do coletivo Nuvem Negra contou ao A Seguir: Niterói que busca no conhecimento uma forma de contribuir com importantes mudanças sociais:

– O conhecimento que eu adquiro na graduação, eu uso pra ajudar minha categoria, e vai refletir em melhorias para a sociedade, desonerando os cofres públicos, ajudando o meio ambiente.

A Seguir: Niterói – Nas suas redes, você publica diversos conteúdos sobre diversos assuntos sociais, como os relacionados aos direitos e ao papel social do gari como agente de saúde ambiental. Qual seu objetivo com seus conteúdos? Para quem você fala e a quem você quer influenciar com seu conteúdo?

– Eu cresci num berço de uma religião de matriz africana, que é o Candomblé. E ali, eu consigo perceber uma conexão do culto com a natureza. Quando eu falo de natureza hoje, sobre preservação das árvores, das águas, de uma série de coisas, eu já via isso dentro da religião de matriz africana. E minha mãe levava isso pra fora do terreiro. Uma vez eu saí, e joguei um palito de fósforo no chão, tomei um esporro da minha mãe, e nunca mais eu devia jogar lixo no chão. Então, era uma coisa que vinha da minha mãe, que tem até a quarta série do fundamental, mas muita consciência do cuidado com o meio ambiente.

No Candomblé, Felipe começou a aprender sobre a unidade entre o meio ambiente e o homem, que aplica em sua profissão e estudos. Foto de arquivo pessoal.

Trabalho na Comlurb há 12 anos, e fiz quatro períodos de Direito, mas sem bolsa, e não pude continuar pagando. Quando eu me vejo com 30 anos de idade, precisando voltar a estudar, eu me vejo entrando em um pré-vestibular social, e ali eu aprendo a dar de graça o que recebeu de graça, no sentido de aprendizado, do ensino. Além de eu aprender com várias pessoas de idades diferentes, e não só de classe média, mas também oriundos da favela, aprendo essa coisa da troca; de que todo mundo pode falar e pode ouvir.

E eu junto tudo isso: o conhecimento que eu tive lá atrás, com minha mãe, desempenhando um trabalho bom pra natureza, com a religião de matriz africana, e ao amor que eu tenho por cuidar do meio ambiente através da minha profissão, como um agente de saúde ambiental.

Quando eu paro pra fazer um vídeo sobre algo relacionado ao direito, ou ao meio ambiente, é a partir de algo meu, vivências minhas, e sai ao natural, sempre prezando uma linguagem mais popular que todos consigam entender.

O que te motivou a escolher o curso de ciências políticas? É sua primeira graduação?

– Minha caminhada começa no Direito, que eu comecei em 2015.1 e fui até 2016.2. Eu fazia FIES, mas eu tinha muitos custos, e não consegui bancar a graduação, então parei em 2016, mas já criando uma estratégia onde eu conseguisse me manter dentro da faculdade. Foi quando conheci a EducAfro, criada pelo Frei Davi para colocar jovens negros e também não negros de periferia dentro da universidade.

Meu então professor, Joelson, que é cientista social, me orientou a tentar no vestibular Direito e Ciências Sociais. Passei para a segunda opção. No primeiro período, me deparo logo com o fato de que o único conhecimento de autor teórico branco que eu conhecia era o de Platão – A Caverna, e a professora começou dizendo “Então, gente, esse semestre iremos estudar , Marx, Weber, Durkheim, Tocqueville, Maquiavel…” E eu dentro da minha cabeça, pensei: Então, gente, vou desistir, porque eu nunca ouvi falar desses autores.

Fui pra minha casa, meio desolado. No dia seguinte voltei, e me aproximei dos meus quatro únicos colegas negros, e começamos a entender que precisávamos nos unir pra aprender sobre aquilo, pra poder sobreviver àquilo. E aquilo passou a ser um desafio, ao invés de um medo.

Eu pensava em fazer uma prova pra mudar de curso e voltar para o Direito, mas no segundo período de Ciências Sociais eu já estava encantado pelo curso, e me identifiquei muito com o ramo de Ciências Políticas. Não quero ser um antropólogo, um sociólogo. Eu quero ser um professor de Ciências Políticas pra falar para pessoas que tem a minha origem, que não conhecem toda essa teoria sobre como lidar com política, com economia, com um sistema opressor.

Na PUC Rio, após apresentar um trabalho sobre o Círculo Laranja, coletivo de profissionais da limpeza urbana. Foto de arquivo pessoal.

Permaneço eu nas Ciências Sociais, mas farei o Direito pela revolta por ter sido sempre, como está na moda dizer hoje, o “freio da blazer”. Estar passando em um lugar e ser parado pela polícia, que é coisa que agora, com 35 anos de idade, não acontece mais, mas até os meus 26, 27 anos, acontecia demais. Eu era muito o chamado “freio da blazer”. Eu sou negro. Pobre, favelado, uso um cabelo black. Na juventude, não tinha dinheiro pra fazer um corte de cabelo maneiro, nem roupas adequadas pra transitar pela Zona Sul do Rio, então chamava a atenção.

Você sempre foi um profissional engajado. Você acredita que pode fazer mais pela classe com a graduação?

– Com certeza, com certeza. Eu tenho amor ao que eu faço, então dificilmente dará errado. Mano Brown fala que não adianta você fazer o que dá dinheiro, você tem que fazer o que você ama. E o interessante é você ganhar dinheiro com o que você ama, isso que é “o barato louco”, como ele diz. Eu faço o que eu amo. Eu faço a graduação pra poder ver as mazelas do que eu faço e escrever sobre o que eu faço.

Eu acabei escrevendo dois projetos: um que diz respeito à coleta diferenciada, que no momento de pandemia teria sido muito útil se tivesse sido implementado. E outro, rebatendo um mecanismo que está em votação na câmara de vereadores do Rio de Janeiro, em que eles querem adaptar na parte de trás dos caminhões de coleta uma célula de segurança. E nesse projeto, eu aponto as problemáticas dessa célula de segurança, e proponho uma solução que, a partir do meu conhecimento, eu vejo como mais viável.

Então, o conhecimento que eu adquiro na graduação, eu uso pra ajudar minha categoria, e vai refletir em melhorias para a sociedade, desonerando os cofres públicos, ajudando o meio ambiente, e é isso.

Felipe Luther e colegas da Comlurb em protesto da categoria em 2017.
Foto de arquivo pessoal.

O que você gosta de ler? Tem algum escritor que te inspire?

– Eu tive uma fase até meus 17 anos, quando eu terminei meu ensino médio, em que eu gostava de ler. Passo um período adormecido até 2015, quando eu sinto que preciso entrar em uma graduação, e começo a caminhada pelo Direito, e quando vou pra Ciências Sociais, eu me assusto com o fluxo, o acúmulo, e a quantidade de leitura necessária. E tomo raiva da leitura eurocêntrica, daqueles autores muitas vezes classe média, brancos, que em determinado momento me parecem ser os ditadores do que é e do que deixa de ser a sociedade.

E começo a ir para uma leitura mais racializada: Começo com Achille Mbembe, Silvio Almeida, Djamila Ribeiro, Mãe Flávia Pinto, que dialoga com minha religião… Pego leituras negras pra poder contrapor por essa coisa que me é imposta, o ensino eurocêntrico. Algumas leituras obrigatórias no curso, e outras ligadas ao meio ambiente, que é onde eu me sinto mais à vontade, juntando essas três searas, pra fazer escritas voltadas a melhorar a categoria a qual eu faço parte.

E você já escreveu ou participou de algum projeto de pesquisa, dentro da universidade?

– Eu uso o conhecimento da Universidade para me dar base pra produzir melhorias pra minha categoria. O que eu costumo fazer lá dentro é participar de projetos onde eu crio mais base pro que eu uso na minha vida pessoal, que eu aplico agora mesmo. Eu sou voluntário da Pastoral Universitária da PUC – Rio, onde eu participei dando a colaboração da minha religião para um diálogo sobre crescimento espiritual.

Também um projeto de uma roda de samba que eu e mais dois alunos promovemos, dentro da universidade, que se paralisou durante a pandemia. E os outros dois que escrevi e citei anteriormente.

Qual seu objetivo de carreira a longo prazo? Pretende seguir carreira acadêmica, fazer um mestrado, doutorado? Vai conciliar com seu emprego na Comlurb, ou em algum momento você pretende sair?

– Quero ser multiplicador de conhecimento, ser professor. Pode ser na academia ou não. Como eu tenho que sobreviver, acredito que durante o mestrado, eu ainda pretendo estar na Comlurb. Mas meus objetivos são: me formar, dar aula no pré vestibular social, o que não vai me render dinheiro, tentar concurso público para professor, e continuar minha formação, com mestrado e doutorado, com certeza.

Ser um multiplicador, e parear isso com o trabalho de gari. A longo prazo, eu não pretendo ser “gari”, até porque eu não sou “gari”. “Gari” vem do sobrenome do empresário Aleixo Gary, que primeiro assinou com a coroa portuguesa um contrato para fazer a limpeza urbana da cidade do Rio. Eu me reconheço como agente ambiental, sem precisar estar na minha carteira, ou me chamarem na rua. Mas esse emprego eu pretendo levar até eu ter a necessidade financeira, alinhando com a minha vida.

Se a Comlurb me der a oportunidade ali dentro, o que não é a realidade hoje, eu quero contribuir para melhorar a lógica da empresa em algo sustentável, não só para o meio ambiente, mas também para a empresa e a economia do Rio de Janeiro. Tratar resíduos com potencial econômico como lixo, enterrando, pra mim é uma lógica predatória, covarde, não só com a sociedade, mas também com a natureza e com os funcionários da Comlurb.

Discursando na Alerj. Foto: Arquivo pessoal

Hoje, se destina pouco mais de 3% de resíduos limpos separados de forma adequada. Se aumentassem a destinação adequada a partir de um mecanismo simples que já existe na empresa, a Comlurb não necessitaria mais de nenhum dinheiro do contribuinte. Ela poderia ser autossuficiente, e poderia custear outros campos, como Educação, que se interligam com outros trabalhos ligados ao meio ambiente que a Comlurb desempenha. Eu e meus colegas entendemos que ela caminha, como outras empresas públicas, como Eletrobrás, Cedae, Correios, para um processo de precarização para ser privatizada.

Eu digo que eu dormi até os 30 e poucos anos, mas o conhecimento me dá base pra ser mais feliz, porque eu consigo enxergar solução pra muitas coisas, e é um contraponto com pessoas que têm muita base, muita informação, e não usam isso pra melhorar em nada a sociedade. As soluções estão aí, eles já sabem, só não querem aplicar. E eu quero ser essa pessoa que aplica as soluções, talvez não necessariamente eu consiga aplicar essas soluções no macro, na política, mas no micro, de cabeça em cabeça de jovens e adultos negros, favelados, com certeza.

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