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No próximo dia 23 de novembro, a estação hidroviária de Charitas completa 20 anos. Imaginando como se fosse uma pessoa, é possível pensar que a aniversariante esteja com mais expectativas em relação à véspera do que com o próprio dia do aniversário. Isso porque, muito do seu futuro pode começar a ser traçado no dia 22. É nessa data que está previsto para sair o resultado da licitação que vai definir a empresa que passará a operar o serviço do transporte aquaviário no estado do Rio.
A estação, projetada pelo arquiteto Oscar Niemeyer, foi concebida para receber uma linha seletiva de barcas, uma espécie de “frescão” das águas. Se, em um primeiro momento, essa linha se apresentou como um cisne, nos últimos anos tem se mostrado um patinho feio, diante da queda significativa do seu movimento.
A estação Charitas foi construída pela antiga Barcas S/A (Em 2012, 80% do capital da empresa foram adquiridos pelo Grupo CCR, que rebatizou a companhia com o nome de CCR Barcas, sendo a atual operadora do serviço aquaviário do Rio). A obra, então orçada em R$ 2,8 milhões, junto com a implantação da linha seletiva, eram obrigações do contrato de concessão da empresa com o governo estadual, assinado em 1998.
Questões burocráticas envolvendo o terreno da estação, que precisou ser liberado pela Secretaria do Patrimônio da União, atrasaram o início das obras. A estação levou dois anos para ser construída.
Para os gestores de Niterói à época, aquela obra representava muito mais do que uma simples estação hidroviária. Os planos para aquela área de 2 mil metros quadrados eram ambiciosos.
Por um lado, a estação deveria representar mais um ponto turístico da cidade, como integrante do Caminho Niemeyer. Por outro, servir de atrativo para a expansão da cidade rumo à Região Oceânica, além de “ampliar os limites” da zona Sul de Niterói até o ainda pouco adensado bairro de Charitas.
Em termos urbanísticos, seria a solução para dois problemas: aliviar engarrafamentos de trânsito e diminuir o adensamento de Icaraí. Quase deu certo, não fosse por um detalhe: para os planos urbanísticos funcionarem, a estação Charitas deveria se “casar” com o um túnel que ligaria o bairro à região Oceânica. O “noivo”, porém, só apareceu 12 anos depois.
A estação hidroviária de Charitas já nasceu moldada para ser um ponto turístico. Um dos destaques do projeto do arquiteto Oscar Niemeyer é o recuo da estação em relação à linha d’água e a construção de um píer sobre estacas, onde atracam os catamarãs. O edifício tem uma área de 2 mil metros quadrados. Desse total, 700 metros quadrados de vidro compõe a fachada do salão panorâmico de embarque de passageiros. O espaço abriga lojas de conveniência, o restaurante Olimpo, e oferece uma espécie de “mirante” voltado para a enseada de São Francisco e da Baía de Guanabara.
A fita da inauguração da estação hidroviária foi cortada pelo então prefeito Godofredo Pinto, conforme planejamento feito pelo seu antecessor, Jorge Roberto Silveira. Godofredo era o vice de Jorge Roberto, que deixou o governo em 2002 para se candidatar ao governo do estado – ele é filho e sobrinho de dois ex-governadores do Rio de Janeiro: Roberto Silveira e Badger da Silveira. Não deu certo. Jorge Roberto ainda voltaria à prefeitura para um quarto mandato, em 2008; a tragédia do bumba em 2010 fez com que se afastasse da política ao fim do governo.
– O projeto original é do Jorge Roberto Silveira e fazia parte do Caminho Niemeyer. Eu inaugurei, mas já encontrei prontos concepção, projeto e construção em andamento. Não foi a prefeitura que bancou a construção, foi a empresa (Barcas S/A). Eu peguei o governo em abril de 2002 e inaugurei a estação em novembro de 2004. Eu inaugurei outras duas obras do Caminho Niemeyer: a Praça JK e o Teatro Popular – contou o ex-prefeito Godofredo Pinto em entrevista para o A Seguir.
Cabe aqui um parênteses. O Caminho Niemeyer era a “menina dos olhos” de Jorge Roberto. A ideia do ex-prefeito era colocar Niterói no mapa turístico nacional e internacional ao criar uma espécie de museu a céu aberto formado por obras do célebre arquiteto. A estação Charitas seria o “ponto final” do caminho que começa no Centro e deveria passar por toda a orla da cidade.
O senhor concordou desde o primeiro momento que a estação fosse usada como meio de transporte mais seletivo do que popular? – perguntou A Seguir para Godofredo Pinto:
– Isso foi objeto do contrato de Jorge com Amaury (de Andrade). Eu não assinei o contrato. Particularmente, até concordo, mas gostaria que a passagem fosse mais barata. A questão é que a estação era para funcionar também como atrativo turístico. E todas as decisões já estavam tomadas. Como discordar de um projeto do Niemeyer? A mim não cabia mexer em nada, mesmo – disse o ex-prefeito que, morador de Icaraí, quando vai ao Rio, costuma pegar a barca no Centro da cidade.
Outro parênteses para explicar quem é Amaury de Andrade. O empresário, que morreu em 2023, era líder do grupo de transportes JCA, com sede em Niterói. Dentre as empresas que fazem parte do grupo está a Auto Viação 1001. Ele foi presidente das Barcas S/A. Era o proprietário do histórico prédio da Estação Cantareira, desapropriado pela Prefeitura de Niterói por R$ 21,2 milhões, pouco antes da morte do empresário.
Segundo Godofredo Pinto, a reação do niteroiense à inauguração da estação Charitas “foi muito positiva”.
– Quem é que não vai reagir positivamente a um negócio do Niemeyer? A genialidade do Jorge foi procurar o Niemeyer para fazer o Caminho, porque são várias obras. A estação valorizou Charitas, adensou o bairro e criou uma alternativa para a classe média de locomoção para o Rio. O papel é positivo. Valeu a pena – avaliou o ex-prefeito.
Doze anos antes da inauguração da estação hidroviária de Charitas, o Plano Diretor de Niterói já tinha “decidido” que deveria ter uma estação de barcas, naquela região. E um túnel para ligar a Zona Sul à Região Oceânica. Fazia parte dos planos a ampliação de oferta de transporte de massa. Tudo isso, em grande parte, já para aliviar engarrafamentos. Um dos focos era oferecer alternativas para quem ia para o Rio de Janeiro, “desviando” o caminho da Ponte Rio-Niterói e, consequentemente, aliviando o trânsito da cidade, com menos fluxo de carros no sentido Centro via Zona Sul. Do papel para a vida real, as coisas mudaram um pouco.
– É difícil saber em que momento uma concepção de transporte de massa se tornou, na prática, um projeto de transporte mais elitista. Inicialmente, a estação em Charitas seria “normal” e os esforços eram para aliviar o trânsito na Roberto Silveira – contou a urbanista Lúcia Borges, que integrou a equipe da então nova secretaria municipal de Urbanismo e Meio Ambiente de Niterói.
Por 17 anos, na Prefeitura de Niterói, ela participou do processo de estruturação do Sistema de Planejamento Urbano, relacionado com a elaboração do Plano Diretor (1992) e dos dispositivos legais de ordenamento do solo urbano (1992-2003).
Coube ao urbanista João Sampaio (1941-2011) a coordenação da elaboração do Plano Diretor. A partir 1989, a convite do então prefeito Jorge Roberto Silveira, Sampaio se tornou o titular da secretaria de Urbanismo. Em 1992, ano da aprovação do Plano Diretor, ele foi eleito prefeito de Niterói, no primeiro turno das eleições.
Como técnica, Lúcia acompanhou grande parte dos trabalhos para tornar o Plano Diretor uma realidade, em Niterói. Quando a estação de Charitas foi inaugurada, ela já tinha sido transferida para ao setor de patrimônio da secretaria de Cultura.
Uma das principais lembranças que ela tem, em relação à estação hidroviária de Charitas, está relacionada com o descontentamento dos moradores do bairro e também os de São Francisco com a ideia.
– São Francisco tinha uma associação de moradores forte e militante. A estação ganhar um projeto do Niemeyer, provavelmente, se deve à reação dos moradores contrária a uma estação de barcas nos moldes como a do Centro. Da mesma forma que, atualmente, o bairro não vê com simpatia a ideia da prefeitura de implantar na região um centro para abrigar pessoas em situação de rua – afirma ela que, há dez anos, é moradora de São Francisco e atualmente é professora de Projeto Urbanístico da Universidade Federal Fluminense.
Lúcia se recorda que, naquela época, Charitas era um bairro com “meia dúzia de casas”, mas que já tinha uma infraestrutura viária “forte” justamente para comportar os planos que a então gestão municipal tinha para a região.
Fato é que, quando as obras da estação hidroviária começaram, não havia nem sombra do túnel. E sem ele, haveria tanta gente assim para se tornar usuário da futura linha de barcas?
Fato também é que uma estação hidroviária “feita pelo Niemeyer”, na avaliação de Lúcia, “agregou valor ao bairro de Charitas, favorecendo o mercado imobiliário”.
– A estação se tornou um atrativo para a pessoa que morava em Icaraí e trabalhava no Rio, por exemplo. Isso ajudou a elevar o valor dos imóveis da região. Sem a estação, Charitas seria uma espécie de periferia de Icaraí. Diretrizes para saírem do papel dependem de articulações e da possibilidade real de financiamentos para a viabilização de obras. Não há ingenuidade. Tem sempre o mercado imobiliário que é um agente muito poderoso. O Caminho Niemeyer, por exemplo, foi criado para dar notoriedade para Niterói. Mas nasceu dentro de um gabinete, para ocupar uma área que era um aterrado pouco integrada à dinâmica da cidade. Acabou virando área do mercado imobiliário – observou Lúcia.
Em relação ao edital, a nova licitação prevê que o funcionamento da atual linha que liga Charitas (Niterói) à Praça XV (Rio) ofereça também horários com tarifa social – providência prevista em uma lei estadual aprovada em 2018 e que nunca foi colocada em prática pela atual operadora, a CCR Barcas, que assumiu o negócio em 2012.
De acordo com a Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes Aquaviários, Ferroviários, Metroviários e de Rodovias do Estado do Rio de Janeiro (Agetransp), atualmente, a linha Charitas transporta 3 mil passageiros, por dia, contra 36 mil passageiros por dia, na linha social, que sai do Centro de Niterói.
Há 20 anos, quando o serviço começou, logo no mês da inauguração da estação, foram transportados 17.225 pessoas. Naquela época, a passagem da linha seletiva custava R$ R$ 5,00, enquanto o preço da passagem da linha social era de R$ 1,80. Atualmente, para atravessar a Baía de Guanabara a partir de Charitas é preciso pagar R$ 21,00. Quem sai do Centro paga R$ 7,70.
A aparente empolgação inicial com a nova linha aquaviária foi diminuindo com o tempo. Em 2013, por exemplo, o movimento contabilizado foi de 14.784 passageiros. Três anos depois, caiu para 8 mil passageiros. Enquanto isso, no mesmo ano de 2016, 48.295 pessoas atravessaram a Baía, a partir da estação das barcas, no Centro da cidade.
No pós-pandemia, quando houve queda no número de passageiros de todos os modais, a linha seletiva transportou, em janeiro de 2022, 4 mil passageiros, contra 13.713 que usaram a linha social. De acordo com a Agetransp, em 2024, a linha Charitas transportou de janeiro a setembro, 654.894 passageiros; já a linha Araribóia registrou um movimento de 7.904.148 de passageiros.
Estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que consta do edital de licitação, estimou que a implantação da tarifa social na linha Charitas-Praça XV, das barcas, vai gerar um aumento de 150% no movimento de passageiros. A estação, essa “jovem senhora”, está preparada para isso? Ou será sua chance de voltar a viver dias mais movimentados, como há 20 anos?
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