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“A diretriz é subir prédio”, diz arquiteto, sobre plano Diretor de Niterói

Por Camila Araujo
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Arquiteto e urbanista Luiz Eduardo Alves teme que proposta de “adensamento” possa piorar engarrafamentos na cidade
Luiz Eduardo IAB
O diretor do Núcleo Leste Fluminense do Instituto dos Arquitetos do Brasil, durante audiência sobre o Plano Diretor de Niterói. Foto: Divulgação

Prédios demais, deterioração do patrimônio cultural e engarrafamentos. Estas são algumas das considerações que têm sido feitas por arquitetos e urbanistas sobre o novo plano diretor da cidade, o Projeto de Lei 416/2021, que propõe uma profunda alteração da organização urbanística de Niterói. O projeto tem sido alvo também de críticas por parte de parlamentares, entidades de classe e membros da sociedade civil. A promessa de simplificação da legislação para uso e ocupação do solo urbano vem acompanhada de dúvidas quanto ao impacto causado na configuração urbana da cidade.

Na avaliação dos especialistas, há mudanças na legislação que precisam, de fato, ser feitas, porém, exigem intensa discussão. Um dos projetos citados é a autorização para a construção de um prédio de até 11 andares na Estação da Cantareira, que pode descaracterizar o bairro histórico de São Domingos.

Veja também: Plano da Prefeitura para construção de prédio de 11 andares na Estação da Cantareira causa protestos em Niterói

O A Seguir: Niterói conversou com o arquiteto Luiz Eduardo Alves, diretor do Núcleo Leste Fluminense do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB), especialista em Administração Pública e mestre em Arquitetura e Urbanismo, ambos pela Universidade Federal Fluminense (UFF).  Ele diz que a Prefeitura surpreendeu todo mundo ao apresentar um projeto pronto à Câmara Municipal, com pouco tempo para estudo dos impactos das medidas propostas e debate com a sociedade, limitado até agora a sete audiências públicas.  Segundo ele, fala-se sobre uma “cidade ideal”, baseada no adensamento da população – que em nada leva em conta a realidade do atual espaço urbano niteroiense. Confira.

A Seguir: Niterói – Qual é o atual panorama da situação urbanística de Niterói?

Luiz Eduardo Alves – Eu acho que um marco é a revisão do plano diretor de Niterói de 2019. O anterior é de 1992 e aí teve esse processo de revisão. Começou em 2015, com diagnósticos, se desenrolou com muitas audiências em 2017 e 2018, e foi homologado como lei no começo de 2019.  Voltando um pouco, a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade que é o que regulamenta as políticas urbanas a nível federal indicam que quem tem que colocar em prática a política urbana são os municípios mesmo, eles têm esse “carro-chefe”, cada município tem sua política urbana. O documento maior de política urbana de cada município é o Plano Diretor. É onde vão estar todas as diretrizes, todas as intenções gerais do município. Em Niterói, isso sofreu todo um processo de revisão que ficou pronto em 2019. Acho que isso é um marco.

Antes disso, o que tinha muito eram os Plano Urbanísticos Regionais (PURs) que eram pelas cinco regiões administrativas regionais: Praias da Baía, Norte, Leste, Pendotiba e Região Oceânica. Fizeram dois em 2002, tem outro de 2005 e depois mais um em 2016. Foi-se fazendo durante vários anos esses Planos Urbanísticos Regionais, que é mais próximo disso que a gente está discutindo agora dessa lei urbanística, que é o que define parâmetros, zoneamentos, o que são os índices de cada área. A ideia de ter zonas (até eram outros termos nos PURs) é que define o que cada área do território, ah, aqui vai ter uso residencial, aquilo é uso comercial, aqui é industrial.

O Plano Diretor é mais generalista nisso. Ele define quais são as regiões, as macro zonas, macro áreas. É só para dar diretrizes mais gerais do que se tem de intenção para o território municipal. Realmente – e isso está até previsto no Plano Diretor de Niterói – precisa fazer a regulamentação de uma lei. E o que estão chamando de lei urbanística tem outros nomes, como Lei de Uso e Ocupação do Solo, Lei de Parcelamento. O executivo está meio que juntando todas essas leis, tanto que está revogando e substituindo os Planos Urbanísticos Regionais. Essa nova lei incorpora, digamos assim, e substitui os quatro Planos anteriores.

É uma grande atualização. É o que se divulga como principal vantagem, desburocratizar, simplificar: “ah, porque tinham muitas leis”, o poder executivo gosta de falar que essa lei simplifica, o que, de certa forma, é verdade.

Enquanto essa nova lei urbanística não é aceita, os PURs continuam valendo.

A Seguir: Niterói – O que é esse Projeto de Lei 416/2021 e por que ele é tão importante para a cidade?

Luiz Eduardo Alves – Como foi dito anteriormente, esse Projeto de Lei vem como uma das coisas que tem que acontecer a partir do Plano Diretor. A ideia de uma lei de uso e ocupação, de uma lei urbanística é definir cada zona, cada ponto da cidade, quais vão ser os usos e ocupações e como vai ser. Isso é muito importante e é o que a gente chama de parâmetros urbanísticos, que é a altura do prédio, o afastamento dele, se tem que construir subsolo, se tem que construir garagem, se tem que afastar ali. Isso é o mais visível para a população: o quanto eu vou poder construir? Eu posso construir uma casinha só ou onde eu estou morando pode construir um monte de prédio? Falando de forma bem simples, mas é isso.

A intenção da Prefeitura foi negar todas as frações urbanas os zoneamentos dos planos que já existiam, consolidar, mas eles também fizeram alterações. Não foi simplesmente consolidar o que já existia. A preocupação é justamente as alterações que estão acontecendo nessa lei nova.

A Seguir: Niterói – Até agora foram feitas sete audiências públicas na Câmara Municipal. Qual sua avaliação sobre a participação dos moradores de Niterói na discussão do PL?

Luiz Eduardo Alves – A política urbana é uma das que mais exige democracia participativa. Instrumentos de escuta da população, como audiências, têm que ser feitos. Isso é uma luta histórica de movimentos por reforma urbana e conseguiram consolidar essas coisas na Constituição Federal, no Estatuto da Cidade, quer dizer, existe diretriz de gestão democrática da cidade. Coisas da política urbana precisam ser feitas com participação.

O que aconteceu foi que essa lei começou a surgir no meio do ano passado, o poder executivo fez três audiências executivas em que eles não mostraram nada do conteúdo da lei. Mostraram diretrizes, teorias do que é a cidade ideal que eles têm a vontade de fazer, sempre dizendo que a lei ainda não estava pronta, que não tinham escrito, que era só o começo de uma discussão. Mais para o final do ano todos nós fomos surpreendidos com a mensagem executiva, que é como a gente chama quando o poder executivo coloca um projeto de lei para apreciação dos vereadores. Quer dizer, com as meras três audiências, em que não foi discutido nada substancial, eles apresentam um projeto todo pronto, basicamente numa situação em que se hoje os vereadores quiserem botar para votar e aceitar, aceitam. E foi isso que aconteceu, tiveram várias audiências, mas a partir do momento que ele colocou como projeto na Câmara, saiu das mãos do Executivo. Isso eles usam até como argumento quando eles recebem as críticas. “Ah, agora o que vale é a luta das emendas dos vereadores”.

Outro ponto foi a falha da participação do Conselho Municipal de Políticas Urbanas (COMPUR), que é uma instância de participação, são conselheiros qualificados, professores da UFF de movimentos sociais, representantes do mercado imobiliário também. Teve uma apresentação que foi só das diretrizes, dos artigos iniciais dessa lei urbanística e isso realmente gerou muita crítica porque o executivo se valeu de que tinha mostrado a lei, mas não mostrou a lei toda. Até eu fui falar como visitante que precisa aprofundar o que é uma discussão urbana. Não se faz uma discussão urbana sem apresentar um mapa, por exemplo. Eles não apresentaram um mapa! Quem lida com território precisa ver onde estão as coisas nos lugares. É o mais básico. A gente começou a ter acesso a mapa com referenciamento a partir desse ano, para conseguir analisar profundamente com a ajuda de programas.

Até o relatório que o Ministério Público produziu para fazer a crítica a essa lei também apontou que tem certas falhas na participação. Eu acho que esse é o inicial, que já gera uma desconfiança da população quanto à lei. Fica parecendo algo apressado sem interesse de desenvolver como uma política participativa com a população.

A Seguir: Niterói – Quais são os pontos mais sensíveis do projeto?

Luiz Eduardo Alves – Tem uma questão teórica que é uma visão de cidade que esse governo coloca com uma visão dele. Tudo bem eles terem uma visão, o problema é colocá-la como a única visão certa e exclusiva. A gente que estuda isso é bastante frustrante, fica muito autoritário. Mas eles se valem muito de que estão fazendo o cientificamente correto, o que é consenso internacional do que tem que ser feito nas cidades hoje em dia e isso para a nossa classe, agora falando como representante de arquitetos e urbanistas, isso precisa ser mais aprofundado. Esse discurso deles é o que a gente chama de combate ao espraiamento urbano que legitima um adensamento da cidade. A mentalidade é que as cidades brasileiras com o passar do tempo se expandiram muito, as pessoas moram longe, tem que andar de carro. Isso tudo é verdade, aconteceu, só que isso vira uma defesa à cidade descompacta, por isso que se fala em adensar. Por exemplo, quando dizem “ah, é bom morar em Copacabana porque tudo está perto e tem a mistura de tudo e tudo está acessível”, “é bom morar em Icaraí porque você tem acesso a tudo e tal”. É por assim dizer, uma imagem ideal de cidade que eles querem alcançar. Eu acho que o que tem que ser aprofundado em Niterói é a cidade concreta que a gente tem e a população que a gente tem.

O discurso do adensamento como solução milagrosa engana as pessoas para justificar que áreas que são menos densas tem que ser ocupadas, porque “isso que é uma cidade eficiente”, entende? o que eles fazem é tentar fazer essas mudanças de gabarito (altura dos prédios), principalmente de adensamento em torno de eixos principais da cidade: na Marquês do Paraná, na descida da Ponte, no Centro, na Francisco da Cruz Nunes, na Estrada da Cachoeira, em volta do Largo da Batalha e descendo para a Região Oceânica, a Avenida Central. Isso tudo é pensado como eixos de estruturação. No geral, a diretriz é subir prédio, apoiado nesse discurso que as pessoas têm que ter acesso próximo do transporte. Niterói é uma cidade que já sofre com engarrafamento, é uma das piores do país. Colocar mais gente em volta [das vias] não vai solucionar, a gente tende a achar que só vai piorar a situação.

E aí entra em outra questão: o executivo diz que a essa lei não cabe discutir mobilidade. Mas uma coisa está relacionada com a outra. Mesmo que legalmente se separe a lei urbana da mobilidade, tem que ter um pensamento em conjunto. E as questões de mobilidade e das áreas populares são mais urgentes. São as duas questões fundamentais da política urbana de Niterói que não estão sendo tratadas.

Esses adensamentos foram para além dos tais eixos em Piratininga. Toda aquela faixa ao sul da transoceânica, a Avenida Arcúcio Tôrres, a Avenida Sete, até a lagoa e a praia de Piratininga, eles tentaram fazer subir prédio em toda Piratininga. É uma tentativa de mudar o modo de vida que está ali. E qual é o interesse em vender prédio em Piratininga que é um lugar lindo, quem vai comprar? Concretamente, que cidade se está fazendo quando se permite oito, dez pavimentos em quase toda uma área onde era permitido apenas dois, quatro em algum eixo.

A Seguir: Niterói – No caso da Estação da Cantareira, está prevista a outorga do imóvel tombado para autorizar a construção de um prédio de 11 andares, mantendo a fachada e cedendo 50% do pavimento térreo ao município. De que formas esse gabarito pode afetar o bairro de São Domingos e outros adjacentes?

Luiz Eduardo Alves – É uma situação esquisita, não sei por que pensam que cabe fazer isso ali. É uma afronta ao patrimônio da Cantareira. Ali, especificamente na região, parece que foi uma permissão pontual nesse imóvel, até porque a área como um todo é proteção do ambiente paisagístico e cultural, precisa respeitar a morfologia, o tamanho das coisas, porque aquilo conta uma história, conta uma cultura. Colocar um negócio daquele, além dos fluxos que vai gerar e outros fluxos, outras pessoas, não se sabe para que vai ser usado aquilo, em um ambiente que tem uma cultura universitária. Espero que isso caia. Imagino que vá ter uma emenda nesse sentido.

A Seguir: Niterói – Você citou que as áreas populares também são um ponto fundamental para a política urbana, mas que não estão sendo tratadas no PL 416/2021. Se esse projeto for aprovado, qual é a consequência para a população que vive nessas localidades?

Luiz Eduardo Alves – Tem uma figura que a gente chama de zoneamento desde o Plano Diretor que são as EIS. Zona de Especial Interesse Social. Que justamente são essas marcações dessas áreas de comunidade, favela, da cidade. Essa lei urbanística, essa proposta nova no geral reconhece as ZEIS que já existem, mas tira algumas sem justificativa, altera limites sem justificativa. E é um instrumento de zoneamento importante para a permanência das pessoas das comunidades. E para a luta por melhorias, por regularização urbanística, por regularização fundiária. Instrumento de ZEIS é muito importante para o combate à desigualdade socioespacial.

A Seguir: Niterói – O planejamento urbano proposto não propõe mais acesso à habitação para as camadas populares, em Niterói, é isso?

Luiz Eduardo Alves – É isso. O planejamento urbano de Niterói até agora se define pela ausência, pelo “lavar as mãos” das áreas populares. É não fazer. O máximo que a Prefeitura tem feito nos últimos anos são empreendimentos como o Minha Casa Minha Vida, que não tem mais, o Casa Verde e Amarela, do atual governo também, verbas não estão chegando para isso. Quer dizer, a gente está em um momento em que os municípios teriam que assumir ainda mais parte do orçamento para habitação de interesse social e dá para dizer que isso não é pensado.

Tem um discurso cínico do executivo de que o adensamento propõe maior oferta, vai fazer com que mais pessoas tenham casa, mas é de um simplismo econômico vergonhoso que não se configura na prática. São empreendimentos que estão dentro de uma lógica de mercado. Meramente subir prédio dentro do que o mercado quer fazer, é da classe média para cima. Vai servir ao capital imobiliário, ao capital financeiro. Quem está comprando ali que é uma pessoa que conseguiu um financiamento subsidiado? Que conseguiu juntar, que conseguiu sair de uma área popular e ter seu primeiro apartamento? Não é isso que vai acontecer com essa lei, entende? Precisa de outros instrumentos para de fato uma produção de habitação servir para garantia do direito à moradia. Do jeito que está, só acirra a desigualdade, enquanto a população continua morando precário, continua se comprometendo muito com aluguel. A gente sabe que a situação está difícil economicamente até a nível federal.

É importante citar também que, curiosamente, em paralelo a essa lei urbanística, está sendo feito um plano de regularização fundiária do município, pela Secretaria de Habitação, que faz um diagnóstico das áreas populares. Atualmente 36,92% da população vive em assentamentos precários e irregulares, áreas de comunidades, de favelas, que tem insuficiências de infraestrutura e dos serviços. É mais que um terço da população. A lei urbanística se esquece de um terço da população, porque não tem instrumento. O que tem de instrumento só vai reproduzir a cidade para os negócios de uma parcela da população.

Como a gente estuda, a gente sabe que existem instrumentos para fomentar habitação, como utilizar edifícios que estão vazios em áreas centrais para habitação social, programas de locação social, no sentido de a prefeitura subsidiar que as pessoas aluguem lugares por valores possíveis. Não precisa ser só construir, construir, construir. A gente já entendeu que o construir que está aí não é para o popular.

 

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