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O número assusta e traz um alerta: em Niterói, 50% dos tiroteios ocorridos em 2021 foram decorrentes de ações e operações policiais. Será que as polícias estão investindo em ações de inteligência para tentar coibir ações de criminalidade sem aumentar os indicadores de violência armada? Ou a principal forma de resposta é armada, de confronto direto nas ruas?
Diretora de Programas do Instituto Fogo Cruzado e doutora e mestre em Sociologia pelo Iesp/Uerj, Maria Isabel Couto atua na área de segurança pública há mais de dez anos. Está à frente do Fogo Cruzado, plataforma digital colaborativa que registra dados e mapeia a violência armada na Região Metropolitana do Rio de Janeiro desde 2016.
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Em conversa com o A Seguir: Niterói, ela fala das possíveis razões do aumento dos índices de violência armada ao longo dos anos e lança luz sobre o cerne da questão: a prevenção ao crime, seja ela de forma social, ou pela prevenção de forma qualificada, deve ser estruturada a partir de serviços de inteligência e da capacitação de profissionais.
Confira os melhores trechos da entrevista abaixo:
A Seguir: Niterói: Vocês recebem alguma denúncia de expansão da milícia em Niterói?
Maria Isabel Couto: Na nossa página de dados do Fogo Cruzado nós temos informação de tiros relacionados à disputa de território, entre outros, mas não temos dados relacionados à milícia. Temos uma parceria com o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI) da UFF, cujo objetivo é construir um mapa dos grupos armados para todo o Estado do Rio de Janeiro. A gente tem como fonte de dados o Disque Denúncia, que são as informações que denunciantes anônimos oferecem e estamos construindo, junto a eles, um mapa histórico das facções e das milícia, que vai abarcar desde 2005 a 2021.
O mapa ainda está em construção, então os dados ainda são provisórios. Nesses dados, em 2019, observamos que não havia área de milícia determinada em Niterói. O que a gente via era um avanço das milícias para Itaboraí, já chegando a São Gonçalo. Era um contexto de Niterói começando a ficar mais cercada pelas milícias, mas nenhuma área ainda de domínio de milícias dentro de Niterói. Esses dados históricos devem estar disponíveis no início do segundo semestre deste ano.
Como funciona essa parceria com o GENI? Qual a participação do grupo da UFF e a do Fogo Cruzado?
O GENI é nosso parceiro de longa data. O Fogo Cruzado criou um banco de dados sobre tiroteio da Região Metropolitana. Era algo que não tínhamos antes. No Rio de Janeiro, a gente ainda tem a sorte de ter o Instituto de Segurança Pública (ISP), que dentro do cenário nacional, é um dos órgãos públicos que possui maior transparência em indicadores criminais do estado do Rio. Acho que o Rio de Janeiro está muito avançado em relação aos outros estados no sentido do ISP existir e divulgar dados com periodicidade. A gente conhece a metodologia que eles usam.
Mas a gente sabe que quando a gente fala de criminalidade, os boletins de ocorrência em delegacias não são suficientes e não dão conta de traduzir o cenário de violência, porque a subnotificação é muito grande. Quando a área é de milícia ou de domínio tráfico isso limita muito a denúncia. As pessoas vivem a violência armada e sofrem com elas, além de criar mecanismos para controlar essa violência. E a gente percebe, pelo histórico do Fogo Cruzado, que tem um elemento que impacta muito a violência armada que é a própria ação das polícias em serviço. Quando a gente pega a base do Fogo Cruzado a gente tem, na região Metropolitana do Rio, uma média entre 20% a 30% dos tiroteios são decorrentes de ações e operações policiais. Os demais são roubos que terminam em tiros, disputas de território entre facções e milícias, homicídios, feminicídios e comemorações com tiros. Por exemplo, meu time de futebol ganhou o campeonato, tiro para o alto. Fulano ganhou eleição, tiro para o alto. Réveillon…. e por aí vai.
E como ficou a média de tiroteio por ano na Região Metropolitana do Rio? Vocês têm esse balanço?
Em 2017, 28% dos tiroteios eram por conta de operações policiais, em 2018 caiu para 22%. Em 2019, voltou para 28%. Já em 2020, caiu para 26 e em 2021 a gente chega no ponto mais alto da série, com 29%.
Em 2019, a presença mais forte das milícias era na Zona Oeste, tanto Jacarépagua, todo o litoral de Guaratiba, Santa Cruz. A gente também percebe um cinturão bem grande das milícias na Baixada Fluminense, cercando a região do porto de Itaguaí, com uma presença muito grande em Nova Iguaçu e Belford Roxo.
Em Niterói, nesse ano, enquanto ainda estava se formando a milícia na cidade, tínhamos uma presença maciça do Comando Vermelho, principalmente entre Fonseca e Baldeador e muitas regiões em disputa, como Jurujuba, Morro do Palácio, a região do Centro, a região da Ilha de Conceição, Buraco do Boi, Vila Ipiranga e Comunidade da Palmeira.
Como funciona a busca por localidade? E por região?
A gente chama de localidade sub-bairros, favelas, conjuntos habitacionais, loteamento, porque quando você pega um bairro, tem um série de favelas, mas não é bem isso. Às vezes é um bairro inteiro, mas em outras é uma localidade. E às vezes dentro de um mesmo bairro podem ter grupos diferentes, como é o caso do Fonseca. É importante destrinchar esses bairros e reduzir a escalas menores. As localidades são circunscrições menores que bairros. Ainda não existe um mapa de localidade no Rio de Janeiro. Temos um mapa dos bairros, de algumas favelas, mas não temos isso para todo o Estado.
O que fizemos foi usar um mapa de um parceiro nosso, o Pista News, que faz um retrato de áreas dominadas por tráfico e milícias para todo o estado, de forma colaborativa e manual. A gente utiliza as localidades que eles tinham, mas sabemos que ainda temos muitas localidades ainda não mapeadas por eles. Nesse novo projeto, estamos mapeando todas as localidades para representar o mapa completo.
Quando vocês recebem uma denúncia, é feita uma checagem antes? Qual o procedimento?
O Fogo Cruzado monitora a violência armada a partir de três fontes: os usuários, o que sai na imprensa e o que as próprias polícias publicam nas redes sociais delas. A polícia hoje em dia tem o hábito de publicar quando está fazendo operação, esse tipo de coisa. Quando o registro chega a partir de imprensa ou a partir da polícia, ele já é considerado checado, como uma fonte validada. Já quando chega pelo usuário, a gente tem uma rotina de checagem das informações. A gente tem por pressuposto que, muito raramente, quando ocorre o tiroteio, só uma pessoa está falando sobre isso. É normal que várias pessoas vão se comunicar sobre isso.
Feita a validação, é encaminhado algum material para outros órgãos ou vocês divulgam a informação em algum lugar?
Quando chega um alerta, por exemplo, de um tiroteio no Centro de Niterói, a gente tem pessoas de plantão que vão acessar o que as pessoas estão falando sobre o centro de Niterói, para ver se tem mais gente comentando sobre o assunto e acessar uma série de parceiros e grupos de páginas de bairro para averiguar. A partir dessa avaliação que a gente valida, ou não, o registro de tiro. Algumas secretarias usam como a Assistência Social. O Ministério Público também utiliza para entender quais regiões estão mais suscetíveis à violência armada, para pensar políticas de apoio à comunidade escolar. A gente incentiva que os agentes públicos usem nossos dados para diversos motivos, mas não temos nenhum mecanismo de repasse. Disponibilizamos uma conexão para que os agentes utilizem os dados de acordo com suas prioridades.
A nossa base de dados está disponível de forma aberta e gratuita. Dentro do nosso site, nós temos o sub site, que é a API. Qualquer pessoa pode baixar em tempo real e ter acesso aos dados. Dá para conectar, por exemplo o SiGeo de análise de mancha criminal, da Polícia Militar, e a API, do Fogo Cruzado.
Você falou no início da nossa conversa que de 20 a 30% dos tiroteios ao longo dos anos são decorrentes de ações e operações policiais. Como está a média de Niterói?
Em 2021, 50% dos tiroteios foram decorrentes de ações e operações policiais em Niterói. Em, 2020, eram 44% e em 2019 eram 51%.
Vocês conseguem nomear os fatores que possam estar contribuindo para esse aumento da violência decorrente de ações policiais?
A gente fez um levantamento de violência armada por área de batalhão e uma das coisas que a gente percebeu foi que, em 2021, os dois batalhões com mais tiroteio em ação e operação policial foram no Leste Metropolitano: o 7º Batalhão da Polícia Militar, que cobre São Gonçalo, e o 12º Batalhão, que cobre Niterói e Maricá. O 7º BPM sempre vence.
Em 2020, o 12º ficou também em segundo lugar, em 2019, em terceiro. Já em 2018, o 12º estava em sexto lugar. Em 2019, vemos, portanto, essa mudança de chave, em Niterói. Existe uma explicação. Isso pode estar relacionado à disputa de favelas e conjuntos habitacionais de Niterói por grupos de traficantes e milicianos diferentes. O que nos leva a refletir que tipo de enfrentamento o 12ºBPM está fazendo. Ele está investindo em ações de inteligência para tentar coibir ações de criminalidade sem aumentar os indicadores de violência armada? Ou a principal forma de resposta é uma armada, de confronto direto nas ruas?
Acho que tem alguns elementos. Observando o mapa do Leste Metropolitano ao longo dos anos, vemos que 2019 foi o ano que teve mais tiroteio em ações e operações policiais e, em segundo lugar, 2021. A gente vê também uma queda de tiroteios cujo motivos eram homicídios e tentativas. Em 2017, a gente tem 184 tiroteios em homicídios e tentativas e em 2021 a gente tem 122. Tentativas e roubos também vêm caindo, assim como disputas de grupos armados, que também teve seu auge em 2019. Mas por outro lado, os ataques a civis, muitas vezes ligados a disputas entre grupos, a gente teve um auge em 2018 e 2020 nessa região e os números se mantém altos. Alguns casos de brigas que terminam em tiros.
É importante dizer que existe uma probabilidade grande de essa violência armada está ligada à forma como os batalhões estão reagindo. É importante dialogar com o 12º BPM e que a sociedade possa contribuir para o batalhão, para que a Prefeitura de Niterói e de Maricá invistam mais em medidas de prevenção ao crime, seja ela de forma social, ou seja pela prevenção de forma qualificada a partir de serviços de inteligência, para tentar evitar os tiroteios. Não é que a polícia tenha que parar de fazer o papel dela, mas é pensar em como a polícia pode trazer segurança para a população sem colocar ela na linha de tiro. É uma equação difícil, mas é importante pensar nisso. E, claro, ficar atento a essas disputas de território, nessas situações de queima de arquivo e enfrentamento dos grupos dessa forma.
Qual sua opinião sobre a decisão do STF para reduzir a letalidade de ações policiais em comunidades do estado?
A gente viu que desde a liminar em 2020 da decisão do Fachin que depois foi sustentada em plenário de restringir ações policiais em favelas durante a pandemia, teve um impacto positivo. A gente conseguiu observar uma redução de 35% no número de mortos em operações policiais registradas pelo Fogo Cruzado, desde que a decisão do ministro entrou em vigor em relação ao mesmo período do ano anterior. Importante ressaltar que esse número é diferente do ISP porque contamos todos os números de mortos em ações policiais. Entram nesse número policiais baleados em serviço de operações, por exemplo.
Quando a gente compara o período de vigência da Arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) com o período anterior, a gente percebe 35% de redução do número de mortos em ações policiais. Há também nesse mesmo período uma queda de 39% do número de ações e operações policiais. Isso mostra que a decisão do STF teve impacto na redução da quantidade de ações policiais, mas uma vez que essas ações começam e terminam em tiro, a letalidade se manteve alta no mesmo patamar, o que demonstra que a decisão não impactou a forma que a polícia atua. A gente precisa discutir quando é legítimo que o policial dispare sua arma e quando não é.
Isso é o que STF está tentando fazer agora, para que o Estado do Rio de Janeiro se adeque. Isso é defender o direito de todos, inclusive dos policiais. O Rio de Janeiro não é apenas um dos estados em que a polícia mais mata do mundo, é também um dos estados em que os policiais mais morrem.
Esse tipo de atuação militar muito focada no enfrentamento armado e em operações muito caras, pouco dinheiro é gasto em inteligência. Isso coloca a população e os policiais na linha de tiro. Não à toa em 2021 voltou a subir o número de policiais vítimas da violência armada. Quando a gente pensa num cenário em que há flexibilização do número de armas circulando na sociedade e a redução de fiscalização, é ainda pior. Discutir a qualificação de como que a polícia atua nesses casos é muito importante. Reduzir a letalidade policial é reduzir a vitimização policial.
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