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Ditadura estética: quais são os perigos e desafios do cuidado excessivo com o corpo?

Por Livia Figueiredo
| aseguirniteroi@gmail.com

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Segundo psicanalista da UFF, Marcia Azevedo, a série ‘Beleza Faltal’ e o filme ‘A Substância’ revelam que as pessoas costumam depositar sobre a sua imagem um peso maior do que seu valor como indivíduo
Beleza Fatal
‘Beleza Fatal’ reacende debate sobre a obsessão pela estética e corpo. Foto: Reprodução/Internet

A busca incessante e a qualquer custo por procedimentos estéticos tem gerado sequelas fortes emocionais, além de um debate de larga escala nas redes sociais.

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Uma pesquisa Euromonitor International – empresa que pesquisa mercados globais – revelou que o Brasil é o quarto maior mercado de beleza e cuidados pessoais do mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos, China e Japão, e movimenta cerca de R$ 48 bilhões anuais.

Os cuidados excessivos com o corpo têm sido também pauta de filmes e novelas. Dois exemplos recentes são o filme “A Substância”, indicado a melhor filme no Oscar, e a novela “Beleza Fatal”, do streaming Max.

Ambas as produções pontuam, sem papas na língua e propositalmente de forma grosseira, os malefícios gerados pela preocupação exagerada com o corpo ao evidenciarem, nas telas, o retrato de uma realidade que choca.

Essa obsessão vai além da vaidade e em casos mais graves, dialoga com um problema mais profundo: o vazio emocional, ou melhor, o esvaziamento de sentido.

Em alguns casos, após uma série de procedimentos estéticos ou basta um isolado, mas invasivo, escancaram a ‘plasticidade artificial’, que, após tantos procedimentos, acabam perdendo a naturalidade.

Em entrevista ao A Seguir, a psicanilista da UFF, Marcia Azevedo, fala de todos os possíveis desdobramentos e os efeitos na pessoa, quando há uma preocupação exagerada com o corpo.

– Vemos que o Brasil ainda ocupa o primeiro lugar no ranking de cirurgias plásticas estéticas. O que chama a atenção é de que há uma demanda social que atravessa o sujeito e convoca a todos que precisam se sentir bem com consigo mesmos, depositam sobre a sua imagem um peso maior do que seu valor como pessoa.

Confira a entrevista:

A SEGUIR: NITERÓI: Como você avalia a importância que parte das pessoas costumam dar para a estética hoje em dia?

MARCIA AZEVEDO: Essa é uma questão bastante complexa! Não é apenas uma realidade brasileira. Nas sociedades em que a aparência tem um peso maior do que o valor da vida interior, do que o caráter, da educação e da ética, a estética ganha uma prevalência exacerbada!

– Dois exemplos recentes são o filme “A Substância” e a novela “Beleza Fatal” abordam a preocupação exacerbada com a estética e evidenciam o retrato de uma realidade que choca. Até onde podemos ir? Até que ponto essa relação com a estética pode ser considerada saudável?

Bem, acho que ambas produções tem o objetivo de chocar exatamente porque as pessoas ainda não internalizaram de verdade a gravidade da situação. Entendo que há uma perspectiva de cuidado com o corpo, que encontra-se no campo do que é saudável e necessário!

Contudo, se vivemos em uma sociedade que exige um padrão de beleza estética corporal, facial etc em que os sujeitos “devem” se manter perfeitos.

Mas o paradoxo se instala aí mesmo nesse conceito de perfeição! Então, entendo que torna-se necessário criar uma situação imagética em que o humano possa mergulhar em uma situação provocadora de horror para chamar-lhe a atenção do que está acontecendo subliminarmente e não está sendo levado em consideração!

Falei de paradoxo por quê? Porque exatamente por essas películas tal como “A Substância” serem tão insuportáveis a alguns, que cheguei a ouvir pessoas comentando exatamente um sentido contrário acerca de aspectos, que o filme não objetivou apresentar! Sua proposta foi de denunciar uma realidade seríssima. E como o humano tem a tendência a se proteger daquilo que ele não suporta ele nega que aquilo possa acontecer com ele.

Então se pensarmos até onde podemos ir! Não sabemos! Não há um limite estabelecido para as exigências de perfeição humana. Posso dizer que há um aglomerado de fatores tanto externos quanto internos, quero dizer tanto sociais quanto subjetivos.

– Muito do contexto da novela aborda a indústria da beleza e a busca por um ideal de aparência impossível. De que forma é possível manter uma identidade e preservar nossa essência em meio a tantos padrões rígidos e engessados?

Essa é outra questão que ficaríamos aqui falando muitos dias à respeito! Todo ser humano quer ser aceito, todo ser humano quer ser desejado, mas não quer ser visto como diferente, não quer se sentir excluído de um sistema de valores sociais! Assim é que a necessidade de aceitação passa exatamente em primeiro plano pelo aspecto físico.

E cada um desenvolve internamente um ideal de acordo com suas bases culturais, sociais e familiares! Esse ideal impossível, existe em sua virtualidade , fica posto na imagem que aparece no espelho! Então, entre o ideal de imagem que a sociedade impõe aos sujeitos e aquela a que o sujeito se impõe ter  e a sua própria imagem, sempre haverá um desacordo maior ou menor.

Esse desacordo, essa distância entre o que se é e o que se gostaria de ser ou de ter, é onde reside o imbróglio  que produz o sofrimento que aparece através da imagem. Algumas formas de adoecimento e a busca incessante de ajustar o que não precisaria tanto de ajuste, falam de uma “vergonha”de ser si mesmo.

Então, para manter-se protegido dessa invasão de exigências advindas do mundo em que a tirania da imagem impera, as vezes é necessário recorrer a ajuda terapêutica!

– Que lições ficam de uma relação não saudável/tóxica com a estética?

Talvez eu não falasse em lições, mas de reflexões. As lições são sempre individuais, o que cada um de nós poderá pensar a respeito daquilo que nos toca será sempre particular, subjetivo.

– Quais limites podemos estabelecer desde o começo para não sairmos do tom?

Posso dizer que é importante pensar sempre na perspectiva dos excessos. O sofrimento que o sentimento de inadequação na sua imagem produz, e os recursos estéticos a que o sujeito vai lançar mão para lidar com seu mal estar, será sempre o sinal de alerta, de que algo esta fora do Tom.Porque vivemos em um mundo compulsivo, em que sempre se quer ir além!

– Até que ponto se classifica preocupação com a saúde e até que ponto é com a estética? Quais seriam os pontos de interseção?

Existe uma necessidade de cuidado com o corpo em diversos aspectos, inclusive em prol da saúde física e mental. A questão sempre estará apontada ao excesso, quando a corpolatria toma parte prioritariamente na vida do sujeito, já não se fala de saúde.

Vemos que o Brasil ainda ocupa o primeiro lugar no ranking de cirurgias plásticas estéticas. O que chama a atenção é de que há uma demanda social que atravessa o sujeito e convoca a todos que precisam se sentir bem com consigo mesmos, depositam sobre a sua imagem um peso maior do que seu valor como pessoa.

E se há uma década eram somente as mulheres as mais atingidas por essa convocação, hoje vemos que há também um aumento de homens em busca de próteses, de cirurgias plásticas, de cirurgias bariátricas e  de procedimentos estéticos em geral. Esse parece ser um sintoma social de grande importância.

– O debate público das redes e artigos sobre o tema mais ajudam que atrapalham na reflexão da estética exacerbada?

Bem, não sei se felizmente ou infelizmente hoje existem muitos formadores de opinião e que se autorizam a fazê-lo nas mídias sociais sem base, sem conhecimento científico, sem preparo e nem preocupação com aqueles a quem vai influenciar. Acho que o debate sério é importante e necessário.

As pessoas aceitam e acreditam em tudo que proponha uma solução mágica para situações que precisam ser tratadas seriamente. As pessoas não têm paciência para enfrentar os processos de resolução de situações. Dai ter havido um aumento absurdo de cirurgias bariátricas, porque emagrecer saudavelmente demanda esforço e tempo.

Além disso muitos outros assuntos poderiam ser pensados sobre esse aspecto. O mundo virou ontime, online e full-time. Tudo precisa ser para ontem o tempo e o ritmo individual foi atropelado pelas necessidades emergentes. Então, o cuidado com sua imagem, com sua saúde e com seu corpo ganhou uma outra dimensão.

– Em que momento e de que maneira a medicina e a psicologia podem intervir, seja através da terapia ou de um acompanhamento de um nutricionista qualificado?

Nesse caldeirão de exigências sociais a medicina e a psicologia poderiam caminhar  juntas interdisciplinarmente. Acho que ate têm tentado em certo sentido.

Mas tendo em vista o fato de a medicina muitas vezes encontrar-se comprometida com a interferência do uso de medicamentos, suas interveniências vão, muitas vezes, na direção de anestesiar a ansiedade, aplacar a angústia e indicar soluções mais rápidas para a resolução de problemas.

A própria medicina esquartejou o corpo humano. O Clinico geral quase que desapareceu, do sistema de saúde. Então cada especialidade cuida do seu campo de ação.

A psicologia pode ainda trabalhar no sentido de integrar essa imagem que esta tão precária. Contudo, isso requer um tempo. Não se resolve o problema de como o sujeito se vê em dez sessões.

– Há pesquisas que revelam quais são as partes do corpo que costumam ser mais considerados num tratamento?

Certamente. Podemos pensar que em geral o corpo, em suas formas, e principalmente o abdome, o cabelo, o rosto são as partes mais atingidas e acessadas pelo social. E ai é que a indústria cosmética cresce em gênero, número e grau, produzindo recursos para todas classes sociais e prometendo soluções milagrosas.

– O que explica que, mesmo diante de cenários como cirurgias clandestinas e mortes, ainda parte da população prefere insistir nos tratamentos estéticos a qualquer custo?

Acho que não há como ser menos explicito do que a necessidade de se sentir bem diante do outro, de ser visto, ser desejado, ser elogiado. Lembremos da musica de Caetano “Narciso acha feio o que não é espelho”.

A exigência midiática de “ficar bem na fita e na foto” , vem produzindo um mal estar social que transformou-se em transtorno de imagem e, com isso, muitas formas de adoecimento psicopatológicos vem vindo a reboque.

Soluções mágicas não existem, mas o humano insiste em procurar soluções fáceis para suas dificuldades. É preciso encontrar estratégias de sobrevivência social apropriadas a cada um para se defenderem da pressão exercida de que tem que ser perfeito para ser feliz, mas esse é um longo caminho a percorrer!

Sobre Marcia Azevedo

Marcia Azevedo é psicanalista, Mestre e Doutora em Psicologia pela UFRJ. Membro e Supervisora do Instituto de Formação em Psicanálise da SPCRJ -Sociedade de Psicanalise da Cidade do Rio de Janeiro.

É coordenadora do Núcleo de Psicossomática Psicanalítica da SPCRJ e Professora Associada do Departamento de Saúde e Sociedade no Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense (aposentada)

Professora convidada do Programa de Pós-Graduação em Transtornos Alimentares – Anorexia, Bulimia e Obesidade da PUC-Rio e Membro da Associação Internacional de Psicanalise de Casal e Família – AIPCF -Membro da Sociedade Brasileira de Transtornos Alimentares – SOBRATA e Membro da Poiesis Analitika Associação Portuguesa de Psicoterapia Psicanalítica de Casal e Família.

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