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Os dados do último Censo Demográfico 2022 relacionados à religião revelam três pontos que se destacam: o aumento da população evangélica no Brasil, a queda do número de católicos, ainda maioria no país, e o crescimento dos que se declaram sem religião. Niterói não escapou desta tendência, mas os dados coletados na cidade foram sempre acima da média nacional. A cidade registrou por exemplo um percentual de 16,96% de pessoas sem religião, contra 9,3% da pesquisa nacional.
Veja a reportagem: Niterói tem 44,94% de católicos, 22,16% de evangélicos e 16,96% sem religião, segundo o IBGE | A Seguir Niterói
Para entender melhor as características da cidade no que diz respeito à religião, o A Seguir Niterói conversou com a antropóloga Andreia Soares, da UFF. A pesquisadora considera que a herança católica, enraizada em bairros tradicionais, como Icaraí e Santa Rosa, com a presença de igrejas, colégios e hospitais de ordens religiosas explica os 44,94% de católicos. Mas vê o crescimento da população evangélica para 22,6% relacionado à capacidade de oferecer respostas imediatas para crises existenciais e materiais, especialmente nas periferias urbanas. Algo que o catolicismo tradicional parece não conseguir com a mesma eficácia. A diferença em relação aos números nacionais, especialmente no caso dos sem religião, estaria relacionada ao alto índice de escolaridade, renda e perfil cosmopolita da cidade.
Veja a entrevista:
A SEGUIR: NITERÓI: Enquanto, na média nacional, 56,7% dos brasileiros são católicos, Niterói tem 44,94% de seguidores desta religião, um índice mais baixo do que o do Norte do país, que registrou a mais baixa taxa da religião. Quais fatores ajudam a explicar esse cenário?
ANDREIA SOARES: Niterói mostrou neste Censo 2022 ser um dos municípios brasileiros de perfil religioso mais diversos. Não se pode falar dos declarados católicos sem observar a representatividade dos outros segmentos religiosos.
Se observarmos o Censo 2010 para Niterói, vemos que, de lá para este último Censo, as representações de pessoas de autodeclaradas de outras religiões e os sem religião aumentam. De 4,1% para 6,7% e de 14,7% para 17%, respectivamente. Os percentuais de religiões de matriz africana (Umbanda, Candomblé e outras) e de evangélicos também apresentaram aumentos percentuais.
Na direção inversa, católicos e espíritas apresentaram diminuição. O espiritismo tem uma tradição na cidade de Niterói que, juntamente com São Gonçalo, são apontadas como berço da Umbanda através da vertente iniciada pelo médium Zélio Fernandino de Moraes.
E o catolicismo segue a tendência de queda observada nacionalmente, que é resultado de mudanças sociais mais complexas que envolvem os outros segmentos citados, cujos seguidores sentem que podem declarar abertamente sua fé. Como o caso dos seguidores de religiões de matriz africana. Fruto de um longo processo de mobilização – “quem é de axé diz que é” – iniciado antes do Censo de 2010.
Outro fator apontado nos resultados preliminares é que quanto maior o grau de instrução, maior o percentual de pessoas autodeclaradas sem religião. Ou dito de outra forma, grupos com maior escolaridade tendem a ser menos vinculados a tradições religiosas hegemônicas, como o catolicismo.
Niterói ocupa o primeiro lugar estadual e sexto lugar nacional no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), 0,837, que tem como componentes para a construção dessa avaliação escolaridade da população adulta e o fluxo escolar da população jovem. Então, isso também justificaria o aumento percentual desse grupo no perfil religioso do município.
– Quais as características de Niterói que podem estar atribuídas a esse número inferior em relação aos demais estados do país?
A cidade tem uma tradição de cosmopolitismo. É altamente urbanizada, com uma das maiores renda per capita e integrada à região metropolitana do Rio de Janeiro, onde há maior exposição a diversidade cultural e religiosa.
Este processo de secularização de Niterói é uma característica social, cultural e política em que a religião perde influência em diversas esferas da vida pública e privada ao mesmo tempo em que atrai outras religiosidades.
Niterói reflete sua condição de cidade urbanizada, diversa e com alto desenvolvimento socioeconômico, onde fatores como secularização, pluralismo religioso e influências históricas locais desempenham um papel central na diversidade religiosa que apresenta.
– Ainda assim, Niterói tem quase metade da sua população católica e isso é bem representativo e mostra a potência da religião. Quais fatores sociais e históricos influenciam nessa preferência por quase metade da população niteroiense optar pela religião católica?
Na minha opinião, reflete uma combinação de fatores históricos, demográficos e culturais. Niterói tem uma população que envelhece mais rápido que a média nacional (IDH alto, expectativa de vida elevada).
Sobre envelhecimento da população, os dados preliminares da amostra sinalizam que pessoas mais velhas tendem a se autodeclararem católicas, mantendo vínculos com tradições religiosas estabelecidas pela educação de gerações anteriores e a menor propensão de mudança ao longo da vida. Este mesmo comportamento também pode ser observado nos municípios de Florianópolis e Porto Alegre, com pirâmides etárias envelhecidas e percentuais de autodeclarados católicos mais estáveis.
Os percentuais de católicos com 60 anos ou mais nessas três cidades (Niterói, Florianópolis e Porto Alegre) se encontram entre 18 e 20%, enquanto a média nacional é de 14%.
Em outro aspecto não podemos deixar de considerar que, assim como todo o Rio de Janeiro, Niterói carrega as marcas históricas da colonização portuguesa e sua identidade cultural ligada ao catolicismo. Essa herança se mantém principalmente em bairros tradicionais como Santa Rosa e Icaraí e a presença institucional da Igreja Católica em escolas e hospitais.
Estes são alguns apontamentos que justificam o catolicismo ser uma religião em declínio, mas ainda dominante no município.
– Como você avalia a presença católica na cidade? E como ela vem mudando ao longo do tempo?
É preciso que eu diga que o estudo que desenvolvemos no grupo de pesquisa Ginga UFF não é sobre religiões. Nos pesquisamos política públicas e conflitos relacionados à questão étnico-racial-religiosa. Nosso enfoque está voltado para as religiões de matriz africana. Por isso sinto que não sou a pessoa mais indicada para fazer esta avaliação.
– Ao mesmo tempo, embora seja a maioria, a população católica nacional tem menor nível desde 1872. O que pode ter colaborado para esse declínio?
É inegável o avanço das religiões evangélicas no panorama religioso nacional. Principalmente as denominações pentecostais, que têm influência forte no segmento mais jovem da população quanto a autodeclaração religiosa.
Se pode apontar como indícios que Igrejas Evangélicas conseguem dialogar com os jovens com uma linguagem moderna, cultos dinâmicos e abordam questões cotidianas (emprego, saúde).
Algo que o catolicismo pareceu melhorar com o advento do Papa Francisco, mas que talvez não tenha conseguido resultados significativos para reverter a diminuição de jovens católicos.
– Você acredita que o preconceito com as religiões de matrizes africanas diminuiu?
Não, não acredito. A expressão de aumento de pessoas de religiões de matriz africana é um processo político que envolve o trabalho das mobilizações sociais e políticas do povo de terreiro e de aliados. Acho que ainda há sub-representação desse espectro religioso, apesar dos avanços, porque as pessoas de religiões de matriz africana trazem marcas diferentes das outras religiões.
Existe o elemento racial, que não pode ser desconsiderado, principalmente pelos séculos de escravização pelos quais africanos sequestrados e seus descendentes passaram. Suas origens e referências culturais sofreram intenso apagamento.
No primeiro Censo, em 1872, todas as pessoas negras, “livres” e “escravizadas”, foram declaradas católicas. Impedidas de professar e declarar sua fé. Mas a resistência fez com que atualmente ainda possamos observar manifestações culturais religiosas de origem africana.
E a resistência segue. São diversas e presentes em todo o país as situações de vilipêndio, ultraje ao culto, racismo, agressões que têm como motivação a questão religiosa.
– Qual a relação entre evangélicos e política sabendo da ligação do Bolsonaro com os evangélicos? Os dados do IBGE indicam maior pressão da bancada da Bíblia nas decisões políticas? Maior poder de fogo nas eleições?
Para responder a esta pergunta, que na verdade é questão para uma tese, vou fazer referência a alguém que tem propriedade científica sobre o assunto. Ontem, 11 de junho, foi publicado no Carta Capital um artigo de Magali Cunha, do ISER, no qual ela faz uma análise sobre os resultados do Censo destacando o segmento de evangélicos e a configuração de um eleitorado com forte ativismo político. Ela destaca também algo que a socióloga Cristina Vital, professora da UFF, aponta em seus estudos que é a visibilidade social dos evangélicos. Uma estratégia muito bem explorada em diversos aspectos: cultural, econômico, político, para não ficar somente no âmbito religioso.
Tudo isso influi no que você coloca como pressão nas decisões políticas. É uma parte da população com demandas específicas. Eu acredito que a desaceleração no crescimento dos evangélicos não prejudica o processo de politização que acontece nos templos, nas redes sociais, nas falas dos representantes políticos eleitos com o apoio evangélico.
Acho que está cedo para falar da atuação dos evangélicos nas eleições como ocorreu na eleição de Bolsonaro em 2018 e na campanha de 2022, mas como um projeto político organizado, já se observa no panorama político alguns indícios que sugerem mudanças de estratégias para recuperar do desgaste inerente à arena política e seguir. Não tenho dúvidas de que a politização nos templos se intensificará com a aproximação das próximas eleições e que este é um segmento com forte influência nas decisões políticas.
– O censo mostra que espíritas, umbandistas e outras religiões somam 9% em Niterói e isso é bem pouco, num comparativo com os demais índices. Isso revela que a cidade ainda é um pouco conservadora?
Primeiramente, discordo do pouco. Estamos falando de um dos municípios com maior diversidade de religião autodeclarada. Em segundo lugar, não tenho argumentos para dizer que há forte relação entre não ser católico ou evangélico e ser menos conservador.
Minha experiência de campo de pesquisa dirá, qualitativamente, que é errôneo pensar desta forma. Há pouco tempo as redes sociais falavam de um sacerdote de religião de matriz africana em uma manifestação de cujo ideológico conservador, para dar um exemplo.
Então, não, não posso dizer que a população de Niterói é mais conversadora ou menos conversadora somente pelo seu perfil religioso. Mas posso apontar, como já disse e os dados mostram, que o segmento sem religião tem características menos conservadoras e está em ascensão.
– A consulta domiciliar mostrou ainda o avanço dos evangélicos no país, que chegaram ao maior percentual da história, 26,9% – um crescimento de 5,2 pontos percentuais. A pesquise revelou ainda que o percentual de evangélicos na população é o maior da história. Comente um pouco sobre isso.
O crescimento dos evangélicos no Brasil reflete uma transformação no campo religioso brasileiro que ocorre há pelo menos 50 anos, como analisa a antropóloga Cristina Vital (Religião e Conflito: Pentecostais e Demônios no Terreiro, 2017; e outros textos).
O sucesso evangélico está ligado à capacidade de oferecer respostas imediatas para crises existenciais e materiais, especialmente nas periferias urbanas. Algo que o catolicismo tradicional parece não conseguir com a mesma eficácia.
Além disso, Vital ressalta que os evangélicos ocupam espaços públicos, usam a mídia e a política para ampliar sua influência de forma mais incisiva, enquanto o catolicismo perde terreno por estar associado a uma estrutura hierárquica rígida e distanciada.
Mas esse crescimento não é homogêneo. Em cidades com maior escolaridade e renda, como Niterói, o avanço evangélico é mais lento. O futuro do fenômeno evangélico dependerá de sua capacidade de manter o ritmo doutrinário, especialmente diante do aumento dos sem religião entre os jovens.
Se, por um lado, as igrejas evangélicas souberam aproveitar as fragilidades do catolicismo, por outro, enfrentam o desafio da dinâmica social. A sociedade não é estática. Assim, da mesma forma, acredito em panoramas mais diversos com maior presença de outros segmentos religiosos.
*Andreia Soares é Doutoranda em Antropologia na UFF e pesquisadora do Ginga UFF e do INCT-InEAC. Tem experiência em pesquisas aplicadas às Ciências Humanas. Foi servidora extra-quadro por 12 anos no ISP/RJ como analista dos dados de segurança pública e na produção de relatórios como o Dossiê Mulher.
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