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Morador de Niterói, Lucchesi assume Biblioteca Nacional para fazer república de ideias e livros

Por Livia Figueiredo
| aseguirniteroi@gmail.com

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Escritor conta, em entrevista ao A Seguir, seus planos para transformar e integrar a Biblioteca com toda a América Latina
Marco Lucchesi: 'Ser brasileiro é uma condição de risco e insalubridade'
O escritor, poeta, ensaísta e ex-presidente da ABL em sua casa, em Itacoatiara. Foto: Arquivo

A volta para casa, em Niterói, teve de ser antecipada quando o telefone do escritor, poeta e ensaísta Marco Lucchesi tocou. Ele estava na Europa em um ano sabático, mas nem tanto. Permeado pela escrita e pelo anseio de estar constantemente em um projeto novo, Lucchesi recebe um convite que traduz a sua capacidade hipnótica – e muitas das vezes lírica – de revolucionar os lugares que percorre. O convite veio às vésperas da posse do presidente Lula e tratava-se do comando de uma instituição nobre e de forte vínculo com o escritor e ex-presidente da Academia Brasileira de Letras por 4 mandatos. Um local que ele frequenta desde os 15 anos, de grande deleite para a imaginação e de diálogo com seus ancestrais: a Biblioteca Nacional.

– Instituições como a Biblioteca Nacional ajudam a construir a ideia de um imaginário polifônico brasileiro, com toda a diversidade que existe – revela.

Lucchesi apareceu de surpresa na Biblioteca Nacional no dia 5 de janeiro para uma espécie de peregrinação que durou cerca de 5 horas. Todos os funcionários da casa, incluindo serviços gerais,  pesquisadores, foram acolhidos.

– Eu queria abrir também um grande diálogo com os aposentados. Boa parte dos quais eu conheço, outros que não conheço ainda. É importante celebrar aqueles que muito contribuíram para a Biblioteca Nacional e seguraram, de forma heroica, todos os desafios que tiveram de enfrentar. Foi um momento muito emocionante, de reencontro. Eu frequento a Biblioteca Nacional desde quando tinha 15 anos – conta.

Os planos para os próximos meses envolvem, claro, a literatura. Lucchesi lançará duas traduções suas de autores turcos em fevereiro. Incansável, já no mês seguinte, sai seu novo romance epistolar passado na década de 80, “Marina”, pela editora Rua do Sabão. Esse último fala de Niterói, para onde o acadêmico e escritor se mudou quando tinha apenas 8 anos.

A Biblioteca Nacional fica na Av. Rio Branco, 219, na Cinelândia, no Rio de Janeiro. Foto: Agência Brasil

Em entrevista ao A Seguir: Niterói a quase dez dias de sua posse, Lucchesi fala dos planos para a Biblioteca Nacional, sua memória afetiva com o espaço e a importância da instituição para o fortalecimento da democracia.

A Seguir: Niterói: Qual foi o primeiro sentimento que veio quando você recebeu o convite da Ministra da Cultura, Margareth Menezes, para presidir a Biblioteca Nacional?

Marco Lucchesi: Primeiro, eu não estava acreditando que isso de fato estava acontecendo. Depois, me veio uma profunda emoção e um grande entusiasmo, porque é uma casa que eu amo e frequento desde muito jovem. Foi um motivo de alegria. Eu já tinha cumprido minhas obrigações no departamento turco da Universidade Oriental de Nápoles. Inclusive, serão lançados nos próximos meses os livros que eu traduzi para o turco. Já tinha ministrado as conferências e tudo mais, mas eu ainda tinha dois meses lá. Mas eu não pestanejei. Imediatamente fui direto da Itália para Brasília.

Você frequenta a biblioteca desde os 15 anos de idade. Você poderia citar os livros que mais te marcaram nessa época?

Na época morava em Icaraí, então pegava o ônibus e depois pegava as barcas. Era uma coisa maravilhosa e ruidosa também, porque havia muitos vendedores ambulantes.

A impressão que tinha, depois de ficar horas na BN, era muito semelhante a uma máquina do tempo. Porque você está em outro século discutindo questões filosóficas e ao sair se depara com vários carros passando na Rio Branco. Isso me fascinava porque me levava para uma outra dimensão e depois me trazia para essa que estamos todos. Na época, não havia aplicativos específicos, então eu saía da Biblioteca Nacional e ia direto para os sebos. Eram muitos no Centro do Rio, mas também em Niterói, como o “Casa da Filosofia” e o “Soletrando”.

Na Biblioteca Nacional, eu me dedicava, sobretudo, aos estudos da história colonial brasileira, especialmente o período do século XIX que tanto me atraía. Quando entrei na Faculdade de História, a coisa foi se ampliando. Mas antes mesmo de entrar para a faculdade eu lia muitos livros de filosofia, então é difícil escolher um ou outro livro.  Eu lembro que li “A Teologia Mística”, que é uma obra muito importante, cuja autoria permanece até hoje desconhecida. Era uma edição muito bonita e antiga.

O que sempre me atraía na Biblioteca Nacional era esse grande susto, essa admiração de obras que remontavam há 400/500 anos. Lembro que as abria com enorme cuidado. A BN era um grande depositório. Enfim, tenho um grande amor pela casa. Pensar que outras mãos de outras gerações me precederam o manuseio do livro e vê-lo se mantendo tão lindamente publicado. Eram livros que eram feitos como monumentos para atravessarem os séculos.

Das bibliotecas que você conheceu no mundo, existe algum projeto que pense em traçar para a BN inspirado em alguma delas? 

Nós vamos abrir uma série de protocolos importantes. A Biblioteca Nacional já tem acordos e protocolos internacionais, mas a nossa meta será de expandir o diálogo, ampliar a troca de experiências, o que já vem sendo feito, claro, mas agora numa perspectiva de ampliar para países menos visitados. Sobretudo, estreitar os laços com a América Latina e fazer essa troca de vivências e soluções. É importante não perder a perspectiva continental.

A Biblioteca Nacional é patrimônio do Brasil, do Ocidente, mas ela está em um continente e está num país que se chama Brasil. E como o Ministério tem falado e o próprio Presidente da República, nós precisamos democratizar e acolher. Não há outro caminho no Brasil que não passe pela justiça social, pelo acolhimento, pela promoção da cultura e da paz.

Eu estive no ano passado na Biblioteca do Vaticano. Fui visitar um amigo que é cardeal e também poeta português, o José Tolentino de Mendonça. Fui conhecer o “bunker” do Vaticano, junto de um professor que nos acompanhava e lá fiquei emocionadíssimo ao ver obras raras, como a Divina Comédia que pertenceu a Petrarca e folhas do diário de Michelangelo. Eu olhava aquela fileira de livros, pergaminhos e documentos antigos greco-latinos e realmente fiquei muito impressionado.

Eu sou um visitante contínuo de biblioteca, não só de visitar, mas pesquisar. A biblioteca é uma espécie de farol, de abrigo, de mãe que acolhe generosamente todos os cidadãos para que desfrutem do livro. Embora hoje existam outras formas e múltiplos suportes no mundo contemporâneo, é preciso expandir cada vez mais o universo digital.  Isso é inerente a uma ideia democrática do que seja uma biblioteca pública nacional.

Ao contrário do que muitos dizem, acredito que as bibliotecas se tornem mais importantes à medida que elas produzem cada vez mais metadados sobre os livros, quando elas indicam hierarquias possíveis de conhecimento, o que é o caminho. Enfim, vejo como um papel fundamental essa transformação do mundo físico para o digital.

Marco Lucchesi em sua estadia na Itália. Foto: Arquivo

Uma forma de dialogar com esses escritores da América Latina seria trazê-los para participar de debates e conferências também?

A Biblioteca Nacional sempre teve uma relação dialógica com o mundo. É de sua própria e inerente tradição. Mas nós vamos investir muito em experiências de conservação tanto física, quanto digital, como a migração de tecnologia, que é um desafio não só grande, como custoso. Pretendo continuar aprofundando a conservação dos livros que já existem, além de ampliar os espaços, que é um problema também clássico.

Hoje no mundo, numa conta baixa, são publicados cerca de 1 milhão de livros por ano no Brasil. Nós precisamos ampliar espaço para não só ter a possibilidade de acolher os leitores, que precisam ter o conforto necessário para a atenção de suas leituras, mas também para que os livros fiquem guardados com segurança.

Além dos cursos e seminários, vamos oferecer uma série de atividades de inclusão. Nós vamos dar um grande acento tônico, um grande cuidado com a ampliação e conservação.

Outro dia eu soube que havia 3 mil pessoas para a visita guiada da Biblioteca, algo espetacular. A Visita Guiada virtual é igualmente belíssima. Enfim, existe um corpo de funcionários extremamente bem preparados que pensam a casa e eu vou trabalhar sempre com eles, os ouvindo e, claro, emprestando minhas características e meus anseios.

Quais os principais projetos para a Biblioteca Nacional?

Ampliar os acordos de protocolos internacionais da Biblioteca, discutir o lugar da inteligência artificial, ampliar a Visita Guiada, fortalecer a relação com a América Latina. Sempre colocando a Biblioteca Nacional como um motor democrático, que não vai discutir ideologias, nem nada. A Biblioteca é o lugar da inclusão, ela é plural, por excelência. A BN é uma república de ideias e de livros, onde nada está excluído, onde tudo é possível.

A Biblioteca Nacional não vai discutir política, mas trabalhar para o engrandecimento da cidadania, da república e do país. A BN é uma pequena república democrática, que funciona dentro de uma república ainda maior que é o Brasil, que deve ser cada vez mais republicana, justa e democrática.

Você continuará lecionando na UFRJ. Planeja algum projeto de parceria da universidade com a BN?

Sim, eu vou continuar lecionando na graduação, na pós-graduação e orientando as teses. Mas não pode ser diferente disso. É um compromisso meu com os colegas, com os alunos. É claro que a jornada vai ter que ter 48 horas em determinados momentos… Quem sabe a gente não inventa uma jornada de 32 horas?

Acredito que todas as parcerias institucionais atendendo a princípios republicanos serão feitas com grande intensidade. Até porque a soma de projetos e desejos coletivos sobre a casa são muitos. Nós vamos abrir um diálogo interinstitucional que diz respeito e atenda à BN e ao país.

Você também dará continuidade a seus projetos sociais, de doação de livros em presídios, certo?

É um compromisso comigo mesmo. Eu me lembro de um preso que me fez a seguinte pergunta: “Agora que o senhor vai se tornar presidente da Academia Brasileira de Letras, o senhor não vem mais me visitar, né?”. Mas não era sobre isso. Eu não visito para ensinar, mas para aprender. Algumas pessoas achavam que eu ia para escrever um livro, também não era sobre isso. Tampouco levava livros meus. Eu levava livros de doação daquilo que considerava necessário e quando havia algum bibliotecário lá.

Posso dizer que me trouxe muita alegria participar do Grupo de Trabalho do Conselho Nacional de Justiça, onde novas normas em leituras em espaços de privação de liberdade foram consagradas. Não era eu sozinho. Era um grande grupo, com várias demandas, de enriquecimento mútuo. É importante o coletivo. Não do ponto de vista demagógico, mas o coletivo do ponto de vista de respeito republicano e de modo científico de aprofundar o trabalho e as gestões. Foi muito bonito ver essa defesa de que a leitura é um direito da cidadania. Ela deve ser assegurada e aprofundada.

Tendo em vista a sua experiência como presidente da ABL por 4 mandatos, que contribuições você acha que pode trazer para a BN?

Foi um aprendizado importante porque foi uma gestão que demandou esforços difíceis. Afinal, o Brasil virou um grande gabinete de crise. Tive que enfrentar questões de ordem econômica, que se agravaram com a pandemia, com um presidente deplorável como o Bolsonaro. Tudo isso contribuiu. Antes da ABL, eu vivia mais o serviço público e precisei viver toda uma outra esfera privada. Essa compreensão entre o público e o privado me ajuda a pensar em algumas formas de aproximação e diálogo.

Diante do desmonte da educação e da cultura, causado pelo último governo, qual a importância de instituições como a Biblioteca Nacional para o fortalecimento da democracia?

A Biblioteca Nacional é a mais antiga instituição cultural do país. Ela eleva o país à condição de oitava biblioteca do mundo e carrega um compromisso que não deve depender de qualquer governo. É uma instituição que responde a uma perspectiva de estado e de cidadania ao mesmo tempo. Instituições como a BN ajudam a construir a ideia de um imaginário polifônico brasileiro, com toda a diversidade que existe. Um Brasil profundo e diverso. E ela confirma, como um espelho, a imagem de todos os brasileiros que existiram e irão existir. Não se trata de um espelho narcísico, mas de reencontro, de transformação. É nisso que acredito.

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