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Ator niteroiense, Henrique Vieira fala sobre sua participação em “Marighella”

Por Camila Araujo
| aseguirniteroi@gmail.com

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Em entrevista, ele conta como foi interpretar Frei Henrique no filme de Wagner Moura que denuncia a ditadura militar
frei e marighella
Cena em que Henrique Vieira (à direita) contracena com Seu Jorge Foto: Divulgação.

Tem niteroiense nos telões do cinema: Henrique Vieira, nascido e criado no Fonseca, Zona Norte da cidade, interpreta Frei Henrique, em “Marighella”. Digido por Wagner Moura, o filme já rodou diversos países e foi o longa-metragem nacional mais visto de 2021.

O personagem é um frei dominicano que faz parte do grupo de religiosos que enfrentou a ditadura militar no Brasil. O ator é ex-vereador de Niterói pelo PSOL, entre os anos de 2012 e 2016. Henrique é formado em Ciências Sociais (UFF) e em Teologia (Seminário Batista do Rio de Janeiro). É professor de História e deu aula em várias escolas da cidade. Militante dos direitos humanos, ele é pastor da Igreja Batista do Caminho, uma igreja itinerante que se reúne quinzenalmente entre as cidades de Niterói e do Rio de Janeiro.

Para 2022, Henrique conta que há muitos projetos pela frente: três livros e uma peça de teatro. Um dos livros é sobre o amor. Será editado pela editora Vozes e foi escrito em conjunto com a Monja Coen e o Padre Julio Lancelloti.

Na entrevista ao A Seguir: Niterói, ele conta sobre sua participação em “Marighella”, detalhes da gravação do filme [pode conter spoiler] e fala um pouco sobre a sua relação com a cidade de Niterói.

A Seguir: Niterói – Como foi para você participar do filme “Marighella”?

Henrique Vieira – Foi uma experiência incrível, singular, tanto como artista, ator, quanto como um militante dos direitos humanos. A direção do Wagner Moura, o elenco muito talentoso, muito competente, a gente criou vínculos muito verdadeiros de amizade, eu cresci muito como ator para construir aquele personagem. E também do ponto de vista da vida, porque é um filme que fala sobre democracia, sobre justiça social, que denuncia as arbitrariedades da tortura e da ditadura no Brasil, que conta a história de Carlos Marighela que, na minha opinião, precisa ser sempre lembrada, por sua força, por seu compromisso com a democracia, pela sua luta contra a ditadura. Então, tanto do ponto de vista pessoal, cidadão, quanto do ponto de vista profissional, artístico, foi uma experiência muito gratificante para mim.

A Seguir: Niterói – Alguns personagens do filme usam o nome próprio, inclusive, você foi um deles. Como foi pensado isso?

Henrique Vieira – Isso foi fruto, primeiro, do próprio processo de preparação do elenco. Antes mesmo de receber o roteiro a gente fez algumas dinâmicas, a gente já contracenava e isso foi criando um vínculo afetivo dentro do elenco. Sem ter acesso ao roteiro e sem saber ainda o nome dos personagens, a gente ia se chamando um pelo nome do outro. Foi uma decisão do Wagner que partiu disso, em primeiro lugar. Em segundo lugar e acho que, em terceiro lugar, foi também uma decisão política, porque é como se a gente estivesse colocando nossa assinatura na obra. É como se a gente estivesse dizendo assim: “olha, mais do que um personagem, eu, Henrique Vieira, atesto que é fundamental lutar contra toda e qualquer forma de ditadura, defender a democracia, defender a liberdade e defender a justiça social no Brasil e denunciar o terror da ditadura”. Quando eu falo sobre o nosso nome assinar embaixo a luta contra a ditadura, eu não estou falando especificamente da luta armada, estou falando da resistência à ditadura como um todo e da denúncia contra a violência do Estado: as execuções sumárias, as prisões arbitrárias, as torturas, o exílio, a censura e por aí vai.

A Seguir: Niterói – Seu personagem, tem duas cenas muito marcantes no filme, que é a conversa que ele tem com o Marighella sobre Jesus ser preto; e o momento em que o frei liga para Marighella e acaba colaborando na captura dele pela polícia. Conta um pouco mais sobre esses dois momentos.

Henrique Vieira – A cena do Jesus preto foi uma cena de completo improviso. O Wagner conhece a minha caminhada e a minha militância como pastor, teólogo, militante do movimento negro. Ele tinha essa característica de, às vezes, depois de uma cena, propor um jogo de improviso. Então, foram feitas muitas cenas no improviso, algumas foram para o filme outras não. Tudo isso foi muito especial de viver. Então,  eu, Humberto, Luiz Carlos e Seu Jorge acabamos uma cena e, do nada, o Wagner falou “Henrique, explica aí para o Marighella porque Jesus é preto”. A partir da minha história de vida, da minha militância, das minhas referências teológicas como James Cone, Ronilso Pacheco, Ras André Guimarães, eu fui aprendendo com esses irmãos sobre a negritude na bíblia, sobre o caráter antirracista do evangelho, sobre a negritude não somente física, mas existencial e política de Jesus, que tem um compromisso radical com os oprimidos. A partir desse repertório que eu tinha na minha cabeça, eu fui falando. Depois quando eu vi, virou uma cena do filme super comentada por aí, cumprindo uma função muito pedagógica de descolonizar o evangelho e devolvê-lo à sua origem social, territorial, étnica, racial. O Jesus dos pobres e oprimidos e não o Jesus da guerra, da opulência material, da ganância, do lucro, porque essa imagem não tem nada a ver com o Jesus de Nazaré.

A Seguir: Niterói – E sobre a cena do telefonema?

Henrique Vieira – Foi uma cena rápida, mas muito difícil de fazer. Eu procurei fazer, digamos assim, registrando cenicamente a coragem e a ousadia daqueles freis dominicanos. Acho que é esse registro que precisa ficar para a história, muito mais do que os que entregaram Marighella. Na verdade, eles foram freis dominicanos que colocaram suas vidas em risco, que não ficaram neutros diante da ditadura, como um monte de religioso ficou. Eles estavam ali porque perceberam a violência e o terror da ditadura, em nome da democracia, em nome da justiça social, em nome do povo pobre e oprimido, da liberdade e a partir da sua consciência do evangelho. Eu procurei fazer aquela cena com muito respeito e admiração por esses freis dominicanos. Quero registrar que, na minha opinião, foram homens de fé, de coragem e que se colocaram ao lado da liberdade, da democracia e do povo oprimido. No roteiro, a cena acabaria quando o Frei Henrique fala pelo telefone “ah, tá confirmado”, ele está marcando com Marighella aquele encontro, ele desliga o telefone e chora, ponto final. Aquele soco que eu dou na mesa, aquele grito que eu dou, quando eu me levanto e parto para cima dos policiais, na verdade, aquilo foi totalmente o ímpeto do momento, isso não estava no roteiro. Acabou que a câmera foi acompanhando e foi para o filme. Eu estou te falando isso porque foi realmente muito difícil, eu não consegui só abaixar a cabeça e chorar. Eu precisei extravasar, me expressar de outras formas.

A Seguir: Niterói – “Marighella” foi lançado com dois anos de atraso, no Brasil, por conta de problemas com a Ancine e também por causa da pandemia. Você acha que isso foi uma forma de censura?

Henrique Vieira – Ah, com certeza foi. O governo Bolsonaro é inimigo da arte, da cultura, do pensamento crítico, da liberdade de expressão – e, veja bem, eu nem falei ainda que ele é contra Marighella. Além disso, é um governo fechado ideologicamente com a ditadura, importante dizer isso. O presidente do Brasil é defensor da ditadura. Então, obviamente, ele usou os mecanismos burocráticos da Ancine para atrasar o lançamento do filme porque é uma obra que denuncia os horrores da ditadura. Por tudo o que acompanhei, o filme foi alvo de censura, sim. Ele foi lançado em 2019, em Berlim, percorreu o mundo inteiro, prontinho para ser lançado no Brasil, mas ficou travado na Ancine por causa da censura imposta pelo governo Bolsonaro.

A Seguir: Niterói – Como avalia o fato de uma parte da comunidade evangélica ainda apoiar o governo Bolsonaro, elogiar e defende abertamente a ditadura militar, a tortura e outras práticas que são mostradas no filme?

Henrique Vieira – Importante esse cuidado, de não generalizar o campo evangélico. Esse foi o primeiro ponto: localizar que existe uma parcela do campo evangélico que apoia ainda o presidente. Porém, não é a totalidade dos evangélicos. Inclusive, o Datafolha, na última pesquisa eleitoral, indicou que 43% dos evangélicos consideram o Lula o melhor presidente da história do Brasil. Só isso já mostra que os evangélicos não são um bloco único, conservador e que todo mundo apoia Bolsonaro. Sobre quem apoia ainda, é complicado dizer. Tem gente, na minha opinião, que apoia deliberadamente. E aí eu tenho uma palavra mais dura, eu acho que são pessoas cuja consciência está completamente contrária ao evangelho e aos ensinamentos de Jesus. Falta razoabilidade, falta bom senso, falta entender o significado da vida de Jesus, porque não tem como aproximar, compatibilizar. O bolsonarismo se alimenta do ódio, Jesus caminhou pelo amor. O bolsonarismo é indiferente ao sofrimento humano. É só ver aí a pandemia e, agora, o que está acontecendo no Sul da Bahia, em que o presidente expressa total indiferença ao sofrimento das pessoas. Agora, não dá para rotular. Eu acho que tem pessoas evangélicas assim e tem também as pessoas evangélicas que, no desespero do momento do nosso país, na dureza da vida, na falta de alternativas que se colocavam, acabaram fazendo uma escolha mais pragmáticas. Acho que são pessoas que se vinculam ao bolsonarismo, mas não estão fechadas com o espírito do bolsonarismo.

A Seguir: Niterói – Para você, qual é a mensagem do filme para os brasileiros e brasileiras, nos dias de hoje?

Henrique Vieira – Não podemos aceitar qualquer autoritarismo, não podemos aceitar qualquer ditadura, não podemos ficar em silêncio diante da barbárie, do genocídio e da violência do próprio Estado. Precisamos nos organizar para defender um projeto de Brasil que tenha democracia, liberdade e justiça social. Acho que essa é a mensagem do filme, especialmente nessa urgência para o nosso momento e diante do governo do Bolsonaro. Não podemos achar razoável, não podemos achar que é qualquer coisa, não podemos achar que tudo bem, é só um genocida que daqui a pouquinho vai passar. Não. Acho que é um filme que provoca esse sentimento de urgência, de gravidade. Não é qualquer coisa a ditadura militar. Ela perseguiu, exilou, prendeu sumariamente, torturou e matou, e hoje nós temos um presidente que reproduz essa lógica e se dependesse dele já seria uma ditadura oficial e formal no Brasil. É um filme que chama para essa urgência.

A Seguir: Niterói – O que é e como surgiu a Igreja Batista do Caminho? É uma igreja itinerante? Como funciona?

Henrique Vieira – A Igreja Batista do Caminho, primeiro, foi uma congregação da Primeira Igreja Batista de Niterói, onde eu era seminarista, em 2009. Depois, se tornou uma igreja autônoma, em 2012. Um grupo de jovens da Igreja Batista de Niterói participou desse processo de formação e amadurecimento e construção da nossa igreja. É uma igreja itinerante, entre dois pontos fixos. Fazemos o revezamento entre Rio de Janeiro e Niterói a cada quinze dias. Nós alugamos um espaço cultural, o Clube Livre de Arte e Cultura (Clac), em Santa Rosa, em Niterói. No Rio de Janeiro,  para 2022, nós ainda estamos procurando o lugar. Tem uma agenda voltada para o diálogo interreligioso, o respeito à diversidade, a defesa do Estado laico, a defesa ética e bíblica dos mais pobres e oprimidos que, para nós, é um dever que brota do evangelho, do compromisso com Jesus. É uma igreja que debate a questão racial, de gênero e de diversidade sexual à luz da bíblia e da consciência do evangelho. Temos um projeto social, que é o vestibular comunitário Marielle Franco, que funciona perto do Morro da Providência, e atende estudantes com baixa renda e vulnerabilidade social. Já tivemos uma garotada aprovada em universidades públicas. Para além de universidade, é todo um processo de cidadania, de educação crítica, de empoderamento, de valorização da vida e por aí vai. Ou seja, não é só o vestibular em si, mas a educação como uma experiência emancipadora. Outro projeto é o Mais Dois, que recolhe doações e compra alimentos de pequenos agricultores do estado do Rio e doa para famílias de baixa renda e vulnerabilidade econômica no Morro da Providência.

A Seguir: Niterói – Você nasceu em Niterói, foi eleito vereador em 2012 e exerceu o cargo até 2016. Conta um pouco da sua relação com a cidade.

Henrique Vieira – Nasci em São Francisco, numa maternidade que ainda tem lá. Minha infância e adolescência foi no Fonseca, no pé da Vila Ipiranga. Estudei boa parte da minha vida no Colégio Estadual Joaquim Távora, em Icaraí, dentro do Campo de São Bento. Parte da minha adolescência morei em Santa Rosa. Vivi no bairro até 2016, quando eu deixei de ser vereador. Logo em seguida, vim morar no Rio, onde estou até hoje. Dei aula de História em várias escolas de Niterói como Colégio Alzira Bittencourt, Centro Moderno, Colégio Argumento, Colégio Gaia.

A Seguir: Niterói – E como vereador?

Henrique Vieira – Foi um mandato muito bonito pelo Psol. A gente se vinculou à luta antimanicomial, à luta de camelos, ambulantes, marisqueiros, pescadores, à luta da juventude, do movimento negro, dos profissionais da educação. Eu presidi a comissão do meio ambiente, bati de frente com vários projetos que atendiam à especulação imobiliária. Propus a CPI dos desabrigados, que não foi aprovada, mas era para investigar o uso de recursos públicos para assistência e moradia para os desabrigados das chuvas de 2010. Participei da CPI dos transportes, que verificou vários problemas na lógica de transportes de Niterói. Enfim, foi um mandato do qual tenho muito orgulho. Minha família até hoje é de Niterói, eu vou sempre à cidade.

A Seguir: Niterói – Quais são seus projetos em andamento hoje?

Henrique Vieira – Eu estou para lançar três livros em 2022. Um, pela Companhia das Letras, tem a ver com algo como “devolvendo a bíblia aos oprimidos”. É toda uma leitura da bíblia a partir da experiência dos pobres e oprimidos, defendendo que essa experiência é a mais genuína da bíblia. É que historicamente ela vem sendo interpretada pela lente da casa grande, mas, na verdade, o chão da bíblia é o quilombo. Outro livro,  pela editora Planeta, é sobre a questão antirracista, o Jesus negro. O foco é mais na pessoa dele e no caráter antirracista do evangelho. E um terceiro livro é sobre o amor, pela editora Vozes, junto com a Monja Coen e o Padre Julio Lancelloti. Também vou participar de uma peça: Antígona, um clássico grego. Os ensaios começam em março. A estreia está prevista para em junho. Os detalhes da produção eu ainda não tenho. Mas fui convidado e vou compor o elenco. Fora isso, tem o ministério na Igreja Batista do Caminho e as atividades do Coletivo Esperançar, que é um coletivo de evangélicos e direitos humanos, que é a minha militância e dá muito sentido para a minha vida

 

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