Niterói por niterói

Pesquisar
Close this search box.
Publicado

Aníbal Bragança fala de livros e das livrarias que marcaram a cultura em Niterói

Por Por Livia Figueiredo

COMPARTILHE

Livreiro conta como sua relação com a leitura se tornou o eixo central do cultivo do imaginário em sua vida
escritor niterói
O livreiro, escritor e professor aposentado da UFF Aníbal Bragança/ Foto: Arquivo Pessoal

Livreiro, escritor, professor e, nas horas vagas, um leitor voraz. Nascido em Portugal, na cidade de Santa Maria da Feira, Aníbal Bragança é um dos maiores representantes da cena cultural de Niterói, onde mora desde os 12 anos. Professor aposentado da UFF, onde ministrou aulas no Instituto de Arte e Comunicação Social (IACS) no curso de Comunicação e de Estudos de Mídia, é também autor de “Livraria Ideal, do cordel à bibliofilia” (Edusp), coorganizador de “Impresso no Brasil – Dois Séculos de Livros Brasileiros” (EdUnesp), que lhe rendeu o Prêmio Jabuti 2011 de melhor livro na área de Comunicação. Aníbal é graduado em História pela UFF, tem mestrado em Ciências da Comunicação (Jornalismo e Editoração) pela USP e doutorado em Ciências da Comunicação, também pela Universidade de São Paulo.

Foi Secretário Municipal de Cultura da Prefeitura de Niterói e recebeu algumas honrarias, como o título de “Intelectual do Ano 2007-2008”, concedido pelo Grupo Mônaco de Cultura e o título de Cidadão Honorário de Niterói. Também traçou sua trajetória como um dos diretores da Editora da UFF (Eduff).

Como livreiro, atuou na fundação da Associação Nacional de Livrarias (ANL) e foi coordenador-geral de Pesquisa e Editoração da Fundação Biblioteca Nacional entre 2011 e 2013. Bragança foi também um dos fundadores da Livraria Encontro, que depois ficou conhecida como Diálogo, e da Livraria Pasárgada, a primeira do bairro de Icaraí. Um dos precursores do entendimento da livraria como um centro cultural, Bragança promovia com regularidade encontros com os autores, cine clubes, palestras e exposições de arte em suas livrarias.

“A minha relação com o livro é visceral, começou muito cedo e continua até hoje. Na escola primária eu percebi que os livros me permitiam vencer dificuldades e obter certo reconhecimento e isso ficou. Então, ter deixado esse legado para a cidade é muito bom”, diz.

Em entrevista ao A Seguir: Niterói, Aníbal conta seu percurso na cidade, sua trajetória profissional pautada na cultura dos livros e sua relação com a UFF. Ele também conta as suas referências literárias e fala da importância da resistência dos espaços culturais, como as livrarias.

A Seguir: Niterói: Conte um pouco da sua vinda para o Brasil e da sua trajetória traçada em Niterói.

ANIBAL BRAGANÇA: Eu vim morar no Brasil com 12 anos porque minha família veio morar aqui em Niterói. Logo que eu cheguei, comecei a trabalhar e estudar. O estudo sempre esteve presente na minha vida, paralelamente ao trabalho. Comecei no Brasil trabalhando como entregador na Federação das Indústrias até os meus 16 anos. Depois fui trabalhar em um banco, onde fiquei até 21 anos. Eu fui descobrindo o Brasil e descobrindo Niterói e isso me deu muitas alegrias.

– Quanto à minha relação com a literatura, eu tinha muita vontade de trabalhar com livros. Quando estudei no Liceu Nilo Peçanha, eu estudava na Biblioteca Pública de Niterói e fazia muitas pesquisas lá. Eu achava admirável as bibliotecárias com tantos livros à disposição e eu sonhava com aquela situação. O que chegava mais próximo para mim foi ter uma livraria. Resolvi então ser livreiro e, com 21 anos, saí do banco para fundar uma livraria. Eu tinha sido gerente do banco e acabei conhecendo Victor Alegria, um livreiro português que tinha uma empresa chamada Encontro. Entrei para a empresa para montar uma filial em Niterói.

Cheguei a cursar Economia na UFF por um tempo e, em 1966, fundei a Livraria Encontro no Ingá e passados alguns meses, eu me separei do Victor amigavelmente, e a livraria passou a se chamar Diálogo. Eu fui livreiro por praticamente 20 anos, até ingressar na UFF como professor em 1985.

A minha vida profissional e pessoal foi muito marcada pela minha relação com a UFF. Quando eu comecei como livreiro, a motivação principal, além do meu desejo de trabalhar com os livros, era a expansão da universidade. A UFF tinha sido fundada há pouco tempo. E a livraria que foi criada ali no Ingá tinha como objetivo atender a faculdade de Economia da UFF, a de Direito, que também ficava muito próxima, o Instituto Biomédico, o Colégio Batista e o Colégio Bittencourt Silva, onde é atualmente o IACS. Então a gente tinha ali um conjunto de estabelecimentos de ensino e acho que isso que deu condições de se instalar uma livraria inovadora, muito inspirada no exemplo do Victor Alegria. Acho que toda a minha trajetória está associada à própria universidade.

Como você define sua relação com Niterói? O que você gosta de fazer na cidade?

– Eu costumo dizer que vejo o Brasil como minha segunda pátria e Niterói como a minha segunda cidade natal. Moro há mais de 60 anos aqui. Eu sofro os problemas do Brasil de forma muita intensa. O país nunca esteve numa relação tão complexa e degradante como está hoje, mas fico feliz de Niterói ter um governo sério e uma gestão pública eficiente. Me sinto como em uma ilha aqui.

Os meus interesses para as minhas atividades de lazer mudaram com a idade. Na minha juventude, em Niterói, eu adorava ir a bailes nos Clubes Regatas, Central, Canto do Rio. Eu gostava muito de frequentar as domingueiras com meus amigos nesses clubes. Depois eu casei, tive filhas e passei a fazer mais passeios em parques, além de todas as possibilidades que Niterói e Rio oferecem em termos de natureza. Cheguei a caçar tatuí na Praia de Icaraí para fazer para comer e o por do sol na Praia de Itaipu foi um programa que fiz durante muito tempo na minha vida.

Tinha uma época também que fazia caminhadas no Campus de Gragoatá da UFF, mas nunca fui de frequentar academia. Eu moro em um condomínio que é muito agradável aqui no Badu e de alguma maneira hoje, com essa pandemia, eu aproveito meu tempo para cuidar do jardim e da casa.

Em termos culturais, houve uma época que frequentar cinemas era fundamental para mim. Eu sou do tempo que para entrar no Cinema Central tinha que ir de terno. Ia muito também ao Cinema Eden, Odeon e depois eu frequentei muito o Cine Arte UFF, assim como a galeria do espaço. Quando eu fui secretário tive a oportunidade de participar mais ativamente das instituições culturais, como o Centro Cultural Paschoal Carlos Magno, no Campo de São Bento, e o Teatro Municipal.

Como foi sua relação com a UFF como professor? O que você carrega na sua memória afetiva dessa época?

– Quando eu era professor do Departamento de Comunicação, eu dava a História da Comunicação, que era uma matéria de início do curso. Essa minha experiência foi muito positiva. Eu sou um pesquisador da história do livro, que é de certo modo um meio de comunicação. Muitos dos meus trabalhos docentes se basearam nos ensinamentos de McLuhan, que na época sofria muitas restrições na academia. Para mim, ele foi um gênio, porque foi uma pessoa que percebeu o que estava acontecendo no mundo das comunicações. Os alunos ficavam encantados com as ideias do McLuhan e outros sofriam um pouco com essa campanha contra McLuhan.

Mas eu consegui ao longo dos dez anos despertar nos alunos o interesse da Comunicação como algo importante na vida da sociedade. Houve mudanças no IACS e eu acabei fazendo parte de um departamento novo, o de Estudo Culturais e Mídia e nesse período o foco do meu trabalho se voltou para a história do livro, o mundo editorial e a cultura letrada. Em termos pessoais, foi muito importante para mim porque consegui contribuir para os estudos do livro no Brasil de uma forma relativamente importante e até pioneira em alguns aspectos.

O livro não tinha tanto apelo no curso de Comunicação porque o foco, geralmente, fica em torno dos meios de comunicação de massa. No entanto, eu tinha alunos apaixonados pelo livro, pela leitura e pela edição. Alguns chegaram a se tornar profissionais do livro, das livrarias e da editoras. Eu trabalhei na UFF por 29 anos e foi muito gratificante.

Como você descreve sua relação com a literatura? Quais são suas principais referências literárias?

– A minha principal atividade de lazer sempre foi a leitura. Tem algumas obras como “Os Miseráveis” do Victor Hugo que eu li quando era adolescente, o “Encontro Marcado” do Fernando Sabino. Depois, com a criação da livraria, fizemos muitos lançamentos em tardes e noites de autógrafos e uma das principais alegrias foi reunir Fernando Sabino, Rubem Braga e Vinícius de Moraes na livraria Diálogo. Essa relação com a leitura foi o eixo central da minha atividade de cultivo do imaginário.

Acho que o Victor Hugo foi o autor que me fez perceber o outro, o pobre, o miserável mesmo, como o título do livro. Foi quem me fez perceber como a sociedade cria uma desigualdade social muito grande. Isso marcou minha vida. Outro autor que foi muito importante na minha vida foi o Hermann Hesse, do Lobo da Estepe. Eu li quando tinha cerca de 20 anos e a personagem Hermínia do livro foi fundamental para que eu definisse o nome da minha filha primogênita.

Em termos de literatura brasileira, o autor mais importante foi Graciliano Ramos. É o autor que tive como modelo para escrever. Eu acho Graciliano o máximo. Talvez a obra que mais tenha me marcado seja São Bernardo. Ele procura dizer o máximo com o mínimo de palavras e esse é um grande desafio para qualquer pessoa que escreva. É fundamental cortar, para ficar com aquilo que é essencial. Outro autor foi José Lins do Rego. Esses autores são tão importantes para mim que eu quis ter as primeiras edições das obras deles. Tem também os poetas Vinícius de Moraes e Fernando Pessoa. Um grande autor não é só na língua portuguesa, ele é um grande autor na literatura universal. O Eça de Queiroz, o Guimarães Rosa são outros exemplos.

Foto: Arquivo Pessoal

Fale um pouco sobre as livrarias Diálogo e Pasárgada, que você fundou, e se tornaram um símbolo para Niterói em termos de impacto cultural para a cidade.

– Eu comecei a minha vida de livreiro com 21 anos com a filial do Encontro e depois, junto do Renato Berba e Carlos Alberto Jorge e outros amigos, criei a Diálogo, que foi muito importante na minha vida, principalmente porque foi onde editei meu primeiro livro. Esse livro foi marcante porque foi lançado na ditadura, em outubro de 1968, chamado o “Estado e a Revolução” e logo depois veio o AI5 e o livro foi recolhido, mas felizmente nós já tínhamos vendido quase tudo. A livraria chegou a ser fechada e depois passamos a empresa.

Depois disso, eu criei uma biblioteca de aluguel, que era mais uma espécie de clube de leitores, que funcionou ali perto do Liceu Nilo Peçanha e tivemos centenas de associados. A Pasárgada foi criada em 1975 e foi a primeira livraria de Icaraí. Foi muito relevante. Era uma loja pequena na Rua Pereira da Silva esquina com Moreira César. Tivemos o lançamento do livro do Ziraldo, “O menino maluquinho”, que foi fantástico e eu lembro que foram mais de mil exemplares vendidos. Foi um dos lançamentos de maior sucesso na história e Ziraldo cita até hoje em suas palestras.

Após cinco anos de existência, eu consegui alugar a casa da esquina da Pereira da Silva com Tavares de Macedo e lá fundamos o novo endereço da Pasárgada. De certa maneira, foi uma retomada da minha vida de livreiro iniciada na Diálogo. A Pasárgada era um centro cultural. Nós fomos inovadores. Iniciamos um modelo que se tornou habitual, de ter uma sala de café. A sala Capitu era uma sala de lanches anexada à livraria. Tinha também a sala Manuel Bandeira para palestras, cursos e peças de teatro. A livraria tinha uma seção infantil muito bonita. Tinha também os livros universitários. Eu passei a ter uma atuação também na vida associativa do livreiro. Fui co-fundandor da Associação Nacional de Livrarias, criada em São Paulo.

Acho que a livraria Pasárgada marcou porque nós reunimos desde leitores infantis até intelectuais. Na sala Manuel Bandeira nós tínhamos cine clubes, as exibições ao domingo enchiam. Uma curiosidade é que o Aldir Blanc conheceu a mulher dele na sala Capitú. Era uma livraria inovadora.

Com a Diálogo também criamos algo inovador na época, em 1968/69, que era o supermercado do livro, que funcionava em uma grande loja onde as pessoas tinham mais possibilidades de acesso, com muitas indicações para facilitar. Também criei um sebo, chamado “Sebo fino”, para vender livros usados voltados para bibliófilos, obras mais escassas. Foi uma experiência interessante.

Da esquerda para a direita: Aníbal Bragança e o escritor Ziraldo / Foto: Arquivo
Sala Manuel Bandeira, na livraria Pasárgada / Foto: Arquivo Pessoal

Qual a importância das livrarias atualmente como espaços de resistência, com o mercado do e-commerce cada vez maior?

– Acho que sempre há aspectos positivos e negativos. Faz parte da existência social. Mas eu sou saudosista neste aspecto. Eu sempre defendi que a livraria é um centro cultural que oferece ao leitor um acesso ao patrimônio cultural da civilização. Além desse universo que o livros nos guardam e nos aguardam para nos transformar. Como já disse Monteiro Lobato, “um país se faz com homens e livros”. O livro constrói as pessoas. Eu devo muito da minha existência a autores que eu li e foram importantes na minha vida. A livraria quando se inaugura numa comunidade pode ser um centro irradiador de cultura e crescimento para as pessoas.

É importante a existência dos livreiros. Os livros são melhores absorvidos quando há alguém que possa dialogar com o leitor. Fica ainda melhor quando o livreiro traz autores para conversar com os leitores na livraria. E tem ainda o encontro dos leitores entre si. A antiga livraria de rua, com o livreiro, é fundamental para o desenvolvimento do interesse pela literatura. Infelizmente no Brasil nem 20% das cidades têm livrarias. Então, é uma perda civilizatória muito grande.

As livrarias virtuais são muito importantes também e são fantásticas. É muito bom poder comprar um livro e dois dias depois já estar na sua casa. A gente ganha na facilidade instrumental de conseguir um livro rapidamente. E o que existe de arquivo, de informação na internet é fantástico. Isso é algo que só vai se fortalecer, mas a experiência de entrar em uma livraria física para comprar um livro que você quer e chegar lá e ver vários outros que você não tinha conhecimento, é uma experiência que só se tem em uma livraria.

O livro “Impresso no Brasil”, que o senhor coordenou, recebeu o prêmio Jabuti, que é um dos prêmios mais relevantes do país. Como foi receber essa homenagem?

– Esse prêmio é o mais importante da indústria do livro no Brasil e é dado pelas instituições que representam os editores e os livreiros. É muito consagrador. Esse livro nasceu do meu trabalho sobre as pesquisas do livro e a leitura no Brasil. Eu chamei a Márcia Abreu, que é uma professora da Unicamp que se dedica basicamente à leitura no Brasil, e organizei um seminário sobre a história editorial brasileira. Chamei pessoas do Brasil inteiro que estudavam o livro ou a leitura. Fizemos esse seminário, que resultou no livro. Participaram vários pesquisadores espanhóis e franceses. Foi um seminário que coroou uma série de atividades que organizei como pesquisador da história editorial, que eu vinha fazendo desde o começo da minha trajetória universitária.

O livro tem a ver também com a relação que eu tive como diretor científico da Intercom, que é uma entidade que representa os pesquisadores de comunicação do Brasil e isso me permitiu ter relação com esses pesquisadores. Acho que o livro “Impresso no Brasil” busca apresentar novas pesquisas da área da história do livro no Brasil. Toda essa vivência foi muito enriquecedora para mim porque percebi que eu estava desenvolvendo um trabalho coletivo.

Leia também: No Dia do Livro, relembre livrarias que fazem parte da história de Niterói

COMPARTILHE