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Aprovado no Conselho Municipal de Políticas Urbanas (Compur), o Anteprojeto de Lei Urbanística de Niterói tomará, agora, o rumo da Câmara Municipal onde começa nova tramitação até virar lei regulamentada.
Enquanto estudos técnicos são feitos e (acalorados) debates são travados, a vida real fora do “urbanês”, linguagem técnica dos urbanistas, engenheiros e arquitetos, segue seu ritmo. Uma das regiões da cidade que pode vir a sofrer grande impacto caso seja aprovado o texto do atual Anteprojeto de Lei é o entorno da Lagoa de Piratininga.
Na última terça-feira (22), A Seguir percorreu o local, que já passa por transformações por conta das obras relacionadas com o Parque Orla Piratininga Alfredo Sirkis (POP). Agora, convida o leitor para fazer esse “passeio” também.
Quem chega na Região Oceânica, vindo do túnel Charitas-Cafubá, muito provavelmente vai trafegar pela extensa Avenida Sete. De lá não se avista a Lagoa de Piratininga, mas várias ruas transversais à via dão acesso a ela. Muito trânsito e ainda poucas casas, a maioria simples, com algum comércio popular compõem o cenário local.
Essa “porta de entrada” para a RO pode vir a se tornar também a porta de entrada de muitas mudanças na região. O Anteprojeto de Lei prevê autorização para construção de imóveis de até dez pavimentos, ao longo da via. Do lado esquerdo, a permissão vale para uma quadra a partir da rua; do direito, chega até a orla da Lagoa.
No entorno da orla, vivem os moradores de duas comunidades: Barreira e Ciclovia. São cerca de 3.200 pessoas, ao todo. De acordo com levantamento da Prefeitura de Niterói, trata-se de uma área de 12 hectares com 1240 imóveis.
Na Barreira, as obras de urbanização que “respingam” por conta da construção do POP ainda são poucas. Na Ciclovia, o cenário já é diferente.
Na Barreira, os moradores comemoram a remoção que está sendo feita do lixo, inclusive, com maquinário pesado. O poluído rio Jacaré, que desagua na lagoa, recebeu, na sua saída, uma “piscina” para decantar resíduos sólidos.
O baiano João Carlos mora na Barreira há 23 anos, desde que chegou em Niterói. Ele conta que somente por conta dessa iniciativa do tanque de decantação, a água do rio já está chegando mais clara na lagoa, apensar de ainda carregar muita poluição.
Ele aprova o pacote de obras e o trabalho de limpeza que a Prefeitura está promovendo, mas está ressabiado:
– Quando começaram a fazer obras por aqui, eu logo pensei: vou acabar tendo que sair daqui. Eles iriam gastar tantos milhões para deixar para nós? É isso o que diz a minha intuição.
Integrante da diretoria da Associação dos Moradores da Beira da Lagoa de Piratininga, João conta que, quando as obras estavam para começar, foi promovida uma reunião com os moradores. Nela, foram informados que as casas da região seriam medidas.
De fato, várias casas foram medidas. Porém, ele diz que ninguém sabe o motivo da medição, até agora.
Sim, ele já ouviu “histórias” que iriam construir prédios de dez andares na região. João tem certeza que os “bilionários” estão de olho na linda vista da Lagoa. Vista que ele tem da laje da sua casa de dois pavimentos, que fica bem ao lado da sua padaria; esta, vizinha à saída para a lagoa do rio Jacaré.
Ele informa que comprou a casa por R$ 30 mil e tem a escritura de posse. E não, não pretende vendê-la, por preço algum.
– Vou vender minha casa e depois não vou conseguir comprar outra com a tranquilidade e a vista que tenho hoje. Mas sei que muitos vão vender, se oferecem um bom dinheiro – diz João.
Na região, há muitas construções irregulares feitas sobre o rio Jacaré. Todas estão marcadas para serem demolidas. Quatro famílias já teriam sido removidas para outras casas, lá mesmo na Barreira. Especula-se que a Prefeitura estaria pagando até R$ 350 mil, por imóvel, para acomodar famílias que vierem a ser removidas.
Essa especulação, inclusive, já chegou aos ouvidos dos moradores da Ciclovia, distante cerca de 1 Km da Barreira. Apesar de serem vizinhas, as obras criaram, neste momento, uma espécie de fronteira entre as duas comunidades.
Na Ciclovia, as melhorias são vistas no calçamento ordenado e quase nenhum lixo a céu aberto. Já existe uma ciclovia propriamente dita. A urbanização deixou as casas a uma distância de, no máximo, cinco passos da beira da lagoa.
No meio da calçada, foi criada uma calha para escoamento de água. Não funcionou, mas os moradores trataram de resolver o problema: virou canteiro, muitos floridos, com cada um cuidando do seu.
Na Avenida Chico Xavier, as vizinhas Daise Cardoso e Sonia de Souza também já ouviram falar dos “tais prédios de dez andares”.
– Eu amo isso aqui. É uma paz de Deus que reina o tempo todo. Se vierem prédios para cá eu não iria ficar muito satisfeita, não – comenta Daise, que mora na região há 22 anos.
Satisfeita ela está é com a obra que foi feita, apesar de alguns detalhes. Por exemplo. Daise observa que a ciclovia é estreita; passa, no máximo, uma bicicleta por vez. Espaço para os carros fazerem manobra também não existe, mas “os carros que lutem”, diz ela em tom de brincadeira. O sistema de drenagem não funcionou, mas os canteiros deixaram o lugar mais bonito.
No momento, em frente à sua casa, já na beirada da lagoa, ela planta goiaba, abacate, jambo, laranja e lichia.
Sem contar que é só dar alguns passos e chega no altar de Nossa Senhora. A imagem da santa já existia no local. Foi retirada para as obras e, ao ser recolocada, ganhou um altar. Comenta-se que, em breve, a santa ganhará a companhia de São Pedro porque o lugar é usado pelos pescadores para guardar embarcações.
Ao longo da Ciclovia, mirantes, pontos de apoio para os pescadores e parquinhos estão sendo construídos. Quem passa pela via, em direção à praia de Piratininga, não percebe os acessos a essa área da lagoa, entre as várias construções que ficam de frente para o “trânsito”.
Daise trabalha como faxineira em uma clínica pertinho da sua casa. Sonia é dona de um salão de beleza. Elas contaram que, quando as obras estavam para começar, foi feita uma reunião com os moradores.
– Nessa reunião, falaram que não iam tirar ninguém que é morador daqui. Só pediram para a gente colaborar não jogando lixo e mantendo limpinho a parte em frente à casa de cada um. Eu cuido e a maioria cuida também porque isso é bom para todo mundo – comenta Daise.
Sonia endossa as palavras da vizinha, mas faz uma ressalva:
– Falam dos prédios porque quando acabar o espaço para construírem pela praia, a especulação imobiliária vai vir para cá porque é um lugar muito bom.
Ela, que mora no local desde 1996, acredita que, se for verdade o valor que dizem que a Prefeitura está pagando para morar em outro lugar, é provável que muitos aceitem a oferta. Mas nada sobre esse assunto é certo, ainda. Por enquanto, o que rolam são comentários, como elas mesmo afirmam.
Seja como for, Daise e Sonia contam que já estão mais do que decididas: não venderão suas casas porque não pretendem passar um dia longe da tranquilidade que é viver de frente para a Lagoa de Piratininga.
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