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Niterói 450 anos: Arariboia, a festa do Rei, bombas sobre a cidade e muitas histórias

Por Sônia Apolinário
| aseguirniteroi@gmail.com

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“A origem indígena de Niterói é um mito republicano”, diz o historiador da UFF Paulo Knauss
arariboia anntonio parreiras
Arariboia retratado pelo pintor niteroiense Antonio Parreiras. Foto: reprodução Cultura Niterói

É quase como revelar para uma criança que Papai Noel não existe. Atenção niteroienses: a origem indígena da fundação de Niterói não passa de um mito. Sim, Arariboia existiu, bem como uma antiga aldeia batizada São Lourenço dos Índios. Mas a História termina aí.

Arariboia por Antonio Parreiras.

– A origem indígena da cidade é um mito republicano criado para suplantar o fato de que Niterói se constituiu a partir de memória da Monarquia. Nasceu, na verdade, como cidade imperial – afirma o historiador da Universidade Federal Fluminense Paulo Knauss.

Por conta do aniversário dos 450 anos de Niterói, A Seguir fará uma série de reportagens para conhecer melhor o passado da cidade e, com isso, tentar projetar seu futuro.

Assim, o ponto de partida é o mito da criação de Niterói. Resumidamente, o chefe dos índios Temiminós e sua tribo fundaram uma aldeia na sesmaria que lhe foi dada em recompensa por ter se aliado aos portugueses na defesa da Baía de Guanabara contra os índios tamoios e os franceses. A data da posse dessas terras é 22 de novembro de 1573, adotada como sendo da fundação de Niterói.

Arariboia permaneceu na aldeia, instalada no morro de São Lourenço, até sua morte, em 1587. A partir daí, o lugar entrou em decadência.

Nessa entrevista de quase duas horas para o A Seguir, Knauss, que é pesquisador do Laboratório de História Oral e Imagem (LABHOI) da UFF e ex- diretor do Museu Histórico Nacional (MHN) explica porque recuperar a memória de Arariboia foi estratégico para a República que se instaurava no país.

Ele também analisa a cidade a partir dos seus dramas e traumas. Apesar de não fazer uso de bola de cristal, indica os caminhos que, na sua opinião, podem ajudar Niterói a superá-los e seguir em frente para cumprir uma vocação que parece se descortinar para a cidade em um futuro próximo:

– Não tenho dúvida que a vocação da cidade é de centro cultural. Por isso, Niterói merece fortalecer sua memória urbana e a ocupação dos seus espaços públicos – disse Knauss, que é doutor em História Social.

Confira a entrevista

Por que a fundação de Niterói por Arariboia é um mito?

O documento que deu posse de uma sesmaria a Arariboia, com data de  22 de novembro de 1573, marca o início de um aldeamento indígena. Índios não constroem e não vivem em cidades, mas em aldeias. Além disso, em termos geográficos, essas terras, que iam do Morro de São Lourenço até a Praia Grande não tinham continuidade por terra. A elas só se chegava de barco. O Morro de São Lourenço era protegido, inclusive, pelos alagadiços a sua volta. O que hoje são as vias Amaral Peixoto e Feliciano Sodré são frutos de aterros. Originalmente, era tudo água e alagadiço. A construção da Ponte Rio-Niterói, por exemplo, completou o aterro em direção ao Fonseca.

Foi por isso que a construção do mergulhão na Jansen de Melo foi uma novela?

Exato porque naquela área era uma lagoa, produto de água que minava no local por baixo de uma pedra. Quando furaram, descobriram a água. Tudo naquela região era água.

Então, como Niterói foi criada?

A região cresceu longe da aldeia de São Lourenço dos Índios. Em 1817, Dom João VI, de luto pela morte da mãe, passa uma temporada em Niterói, então um povoado. Ele fica em São Domingos. No dia do seu aniversário, ele promove um “beija-mão” onde hoje é a praça do Rink. Como se sentiu muito bem acolhido, ele presenteou a população elevando o povoado à categoria de Vila Real da Praia Grande. A Vila Real vira capital de província, em 1835 e passa a se chamar Niterói (que significa “Água Escondida” em Tupi-Guarani, como os indígenas se referiam à região por conta da reentrância da Baía, protegida por colinas de tal modo que só ao penetrar na baía é que se descobre a sua vastidão).

Em 1841, após a visita, dessa vez, de D. Pedro II, a antiga Vila Real passa a ser chamada de Cidade Imperial. É a partir daí que se dá a ocupação do espaço e a formação do corpo político da sociedade de Niterói. A ocupação do espaço se dá a partir de quatro campos: São João, Pelourinho (área da antiga Prefeitura), Largo da Memória (Praça do Rink) e São Domingos. Ou seja, Niterói se constitui a partir de memória monarca.

Como o mito da fundação indígena surge?

Chegamos, agora, na República. Acontece a Revolta Armada (Rebelião em unidades da Marinha ocorrida entre setembro de 1893 e março de 1894. Começou no Rio de Janeiro, então Distrito Federal, e chegou ao Sul do Brasil, onde a Revolução Federalista acontecia simultaneamente. Sem apoio popular ou do Exército, o movimento foi sufocado pelo presidente Floriano Peixoto, a quem pretendia depor.)

Durante a Revolta, Niterói foi bombardeada. A cidade sofreu muito. Naquela época, Niterói era a capital do estado do Rio de Janeiro. Por conta dos bombardeios, a sede do governo foi transferida para a cidade serrana de Petrópolis até 1903.

A partir desta data, Niterói se torna uma cidade republicana de fato e é aí que entra o mito da fundação da cidade por Arariboia. Retomar essa lembrança da ocupação indígena foi a forma que a República encontrou para apagar a memória da Monarquia na origem da cidade.

Nessa época, começou o projeto de aterramento das áreas do Centro para a construção do porto e ferrovia. O mito de Arariboia chega junto com investimentos que organizaram a área de São Lourenço. Estamos falando de um período entre 1910-1927.

A construção do mito da origem indígena chega junto com um projeto de desenvolvimento urbano que levou à expansão do Centro da cidade com a ampliação do centro terrestre. Esse mito, além de apagar a memória monárquica da cidade, legitimava o crescimento em direção a São Lourenço que, naquele momento, se tornou uma nova área de expansão urbana. Vale lembrar que, até então, Fonseca e Barreto só tinham acesso por água.

Acredita que nesse momento já teria começado uma certa especulação imobiliária?

Com o aterramento, muitos terrenos foram criados e é possível pensar na hipótese de uma expansão imobiliária. É preciso lembrar que a área nobre, naquela época, era o Fonseca. Icaraí ainda era um areal, uma área difícil para construção.

Por que um período tão difícil para Niterói que foi a época do bombardeio não é oficialmente lembrado?

Porque Niterói perdeu, apesar de estar do lado que saiu vencedor. O bombardeio e a destruição da cidade foi o motivo da transferência da capital para Petrópolis, o que provocou esvaziamento do seu poder político. Foi uma derrota política para Niterói. A cidade teve um capítulo heroico desse período e contribuiu para a vitória. Mas o que vingou a partir daí, o surgimento da elite republicana fluminense, não tinha relação com isso.

É justamente essa grande área aterrada o alvo das principais obras da Prefeitura quando Niterói completa 450 anos. Coincidência?

A História de Niterói está atrelada à História do país. No fim da década de 80, com a democratização, houve o fortalecimento do poder municipal, o aumento da autonomia das cidades e, em Niterói, houve uma retomada do cuidado dos seus espaços.

O aterro da Praia Grande foi um projeto ambicioso, mas se perdeu com a fusão dos estados da Guanabara e Rio de Janeiro. Acabou sobrando para aquela área de Niterói que sofreu com o abandono. A retomada de obras naquela região é uma tentativa de organizar o legado da cidade que passou por projetos de urbanização superados ou incompletos. A frente marítima da cidade era um projeto voltado para uma Niterói capital do estado. Com a fusão, foi abandonado. É preciso lembrar que a UFF inteira está nessa área.

Há um discurso na cidade que, em tudo, Niterói é a primeira, pioneira, mais importante. A cidade tem complexo de inferioridade e precisa se auto afirmar o tempo todo?

Sem poder político, Niterói construiu um projeto para a conquista da qualidade de vida. O bairrismo é bom quando leva as pessoas a pensarem a cidade, quando leva ao engajamento do cidadão com a cidade. É uma forma de sobrevivência da política.

Pode parecer contraditório, mas Niterói, hoje, é uma cidade fortalecida pela sua história originária mítica. É uma memória pouco sustentada no processo histórico, mas que a fortalece.

O mito indígena lembra que a História é um processo que começa antes da própria cidade. O mito lembra que a História da cidade antecede à instituição de Niterói como capital. Valoriza a relação da cidade com o mar, uma vez que o aterro afastou a cidade da Baía de Guanabara. É bom ter um mito indígena para chamar a atenção que a vida em Niterói não se limita ao seu núcleo urbano. Esse mito deveria valorizar São Lourenço como bairro, mas, hoje, a cidade não abraça o local.

Essa situação merece reflexão porque, ao mesmo tempo, afasta o pensamento da cidade do seu legado histórico. É preciso reconhecer que os desafios atuais são consequência da sua História. Por isso, Niterói merecia ter seu patrimônio histórico mais valorizado, ter sua memória urbana mais valorizada. Niterói não ter um museu da cidade, um arquivo público da cidade indica que a cidade não reconhece a sua construção histórica. Isso resulta no risco de se construir uma cidade como se fosse tábula rasa, uma folha em branco, o que não é.

Quando a cidade faz 450 anos, é momento de comemorar a data histórica, mas também de colocar o legado em perspectiva crítica para ser mais generoso com a própria cidade e não abandonar áreas ou elementos dela, como o Caio Martins.

Há uma discussão neste momento sobre o futuro do Caio Martins que está sendo conduzida pelo governo estadual porque o equipamento pertence ao estado e não à prefeitura.

Pois é. Mas o Caio Martins tem um papel importante na história social e esportiva de Niterói.  Foi um centro da sua vida social, foi onde aconteceu o Congresso Eucarístico; é a sede da Federação dos Escoteiro; foi onde os corpos das vítimas do incêndio do circo foram reconhecidos; foi um presídio político.

Niterói tem uma vida cultural dinâmica que valoriza manifestações de todos os tipos, isso favorece uma imagem contemporânea da cidade.

Niterói tinha importância no mundo dos esportes. O esvaziamento do Caio Martins anda junto com o esvaziamento esportivo da cidade, que também passa pelos clubes. O aterro da Praia Grande teve consequências para os clubes de remo. Por exemplo, o Gragoatá e o Canto do Rio ficaram sem acesso à água. E a especulação imobiliária acabou com os clubes de Icaraí.

Para salvar o Caio Martins tem que pensar o sentido do esporte para a cidade. O complexo esportivo que está sendo construído pela Prefeitura junto com a UFF, em São Domingos, pode ser uma iniciativa que caminha nesse sentido.

Qual o maior desafio que Niterói enfrenta quando completa 450 anos?

O maior desafio da cidade, hoje, é qualificar suas vocações econômicas. Não tenho dúvida que a vocação da cidade é de centro cultural e, por isso, merecia fortalecer sua memória urbana e a ocupação dos espaços públicos da cidade

Niterói também poderia se valorizar como cidade religiosa. Igrejas de várias práticas convivem de perto. A umbanda começou em São Gonçalo, que já fez parte de Niterói. Por conta de colônias estrangeiras, já teve várias igrejas diferentes. Niterói tem tradição de acolher a diversidade religiosa. Porém, atualmente, as festas religiosas mobilizam comunidades, mas não mobilizam a cidade, como a própria festa de São Lourenço.

O senhor está escrevendo um livro sobre “a história sensível” de Niterói. O que isso significa?

É a história de Niterói a partir de suas tragédias. Basicamente, o incêndio do circo, o quebra-quebra das barcas e o Caio Martins. São memórias que ainda não são heroitizadas e marcam a vida da cidade.

Como assim?

Por exemplo, até hoje, a cidade tem dificuldade de lidar com circo, festas. Não temos espaços grandes porque temos a memória da tragédia com grande aglomeração. A cidade tem dificuldade de organizar o Centro em consequência do que aconteceu com as barcas. O Caio Martins tem dificuldade de lidar com alegria por ser um local onde a dor esteve tão presente. O apagamento da sua memória deve-se à dificuldade de reconhecer que ali foi um centro de repressão política.

É preciso se solidarizar com a dor da cidade e não jogar seus dramas para debaixo do tapete.

Niterói já teve como vocação econômica ser uma cidade balneário, com Icaraí. Isso é uma vocação para o prazer. Como ter prazer onde tem quebra-quebra de barca, tragédias como o incêndio do circo ou o aparelhamento da repressão política em um local que era de vida esportiva?

O circo representa a memória do horror que as pessoas se recusam a ver. Por isso, todos falam sobre a tragédia, mas ninguém se lembra onde o circo estava armado. A barca é a memória do inexplicável. O Caio Martins é o que se recusa a falar.

E o desmoronamento do Morro do Bumba?

Reúne tudo isso: o que não se consegue explicar, ver ou falar. A cidade não lida com seus problemas porque não enfrenta seus dramas. Reduz o problema às pessoas que sofreram nos episódios, como se fosse apenas questão de memória individual quando, na verdade, é uma dificuldade de enfrentar uma memória coletiva.

São problemas como a falta de transporte eficiente, de segurança que se arrastam por não enfrentar a memória coletiva. O Bumba atualizou esse drama, se tornou uma dor inexplicável.

A cidade não é feita só do que se lembra, mas também do que esquece.

 

Litografia que representa Arariboia, publicada em 1866 na Coleção Brazil Histórico, em 1866. (Biblioteca Nacional) via Cultura Niterói

Martim Afonso de Souza

Em 1556, os temiminós, que viviam na ilha de Paranapuã (atual Ilha do Governador, no Rio de Janeiro), foram expulsos de suas terras pelos seus tradicionais inimigos tamoios. Dentre os expulsos estava Arariboia. Os temiminós acabaram por se instalar na Capitania do Espírito Santo, aonde reorganizaram sua aldeia e foram catequizados pelos jesuítas. 

Em 1564, a catequizada tribo de Arariboia vai do Espírito Santo para o Rio de Janeiro, na frota de Estácio de Sá, para combater franceses e os rivais tamoios. Nessa época, Arariboia já havia adotado o nome cristão de Martim Afonso de Souza, em homenagem ao donatário português que foi o comandante da primeira “expedição colonizadora” enviada ao Brasil pelo rei de Portugal D. João III no ano de 1530.

Igreja

Igreja de São Lourenço dos Índios. Foto: Secretaria de Estado de Cultura

O bairro de São Lourenço abriga a Igreja de São Lourenço dos Índios, erigida em 1627, a mais antiga do Estado do Rio de Janeiro.

Brasão 

O brasão da cidade de Niterói, presente em sua bandeira, traz três datas gravadas: 1573; 1819 e 1835.

A primeira remete à data oficial da fundação da cidade; a segunda, à data da elevação da região à condição de Vila, com o nome de Vila Real da Praia Grande; e a terceira à elevação da Vila à condição de cidade.

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