A nossa homenagem ao jornal O Fluminense

Fim de uma era. Mas uma morte anunciada, depois de inúmeras crises: o jornal Fluminense fechou as portas. Ou melhor: parou as máquinas. O Fluminense faz parte da história da cidade e deixa um legado enorme, com muitos marcos e coberturas grandiosas, como a revolta das Barcas, com o povo incendiando a estação, o incêndio do Gran-Circus Norte Americano e a derrubada do trampolim da Praia de Icaraí. Para homenagear o jornal e várias gerações de profissionais e leitores, o A Seguir entrevista o jornalista, fotógrafo, colunista Carlos Ruas, de 95 anos, uma das mais privilegiadas testemunhas da história do jornal e da cidade.

Um pouco de história

O Fluminense era segundo jornal mais antigo do país, fundado em Niterói, em maio de 1878. Ficava atrás apenas do Diário de Pernambuco. Está com circulação suspensa desde o início de março, quando os funcionários entraram em greve devido aos três meses de salários atrasados. O jornal documentou uma época em que Niterói era capital do antigo Estado do Rio. A cidade fervilhava, com grandes eventos sociais, bancos e muitos comércios de grande porte do país abriam filiais aqui. Era, também, a expressão do interior do estado, uma herança dos tempos em que sediava a política e a economia do estado. A fusão com a Guanabara, em 75, seria um dos primeiros marcos da perda de influência do jornal. Vendido há alguns anos para um grupo com investimentos em shoppings da baixada, deixou o prédio histórico e foi, aos poucos, perdendo leitores e relevância, até a redação parar.

Em sua redação figuraram nomes importantes da imprensa, como o fundador de O Globo, Irineu Marinho, Euclides da Cunha e Olavo Bilac. Suas páginas também abrigaram colunas de Rubem Braga, do ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, o imortal Marcos Lucchesi. A equipe da redação era de excelência com nomes de calibre como Sérgio Torres, atual colunista do A Seguir e ainda o colunista social, que trabalhou por 35 anos no jornal, o repórter fotográfico e colunista social Carlos Ruas, o entrevistado dessa semana no A Seguir.

Ruas é uma das maiores referências do jornal. Devido ao longo tempo de atuação, pode vivenciar grandes transformações, entre elas, a mudança da tipologia comum para o offset, uma impressão moderna que o jornal adotou antes de todos os demais, numa demonstração de seu poder.

Em entrevista por telefone, o jornalista, colunista social, fotógrafo e produtor, de 95 anos, conta ao A Seguir algumas das peripécias que passou no Fluminense, momentos marcantes de cobertura do jornal, mudanças que enfrentou nesse período de mais de três décadas e, ainda, o contexto social de Niterói na época em que viveu o seu auge.

A SEGUIR: NITERÓI: Você começou sua vida profissional como fotógrafo, registrando as festas com o texto legenda para os jornais. Você era uma espécie de figurinha carimbada dos principais eventos da cidade. Em que momento você se assumiu de fato como colunista social? Qual foi a virada de chave da sua carreira?

CARLOS RUAS: Sim, comecei minha trajetória como fotógrafo. Montei um estúdio fotográfico muito importante em Niterói, onde inovei várias coisas. Eu tinha uma preferência muito grande pela sociedade de Niterói que, inclusive, me apelidou de fotógrafo gentleman. Eu sou carioca, mas fui criado em Portugal. E vim para cá já na intenção de tratar todos com quem convivia muito bem.

Eu fotografava muito as festas do Clube Central. Até que, um dia, eu tive a ideia de fazer um cartão postal – uma espécie de cartão visita – com alguns registros meus e meu contato, em anexo. Deixei vários espalhados nas mesas e as pessoas me procuravam. E assim foi. Fiz muitos casamentos, festas, muitos eventos sociais de Niterói. Até que fui parar no Diário Fluminense. Acho que o convite de colunista social se deu muito pelo meu conhecimento da sociedade de Niterói. Fiquei lá por um tempo, até que fui para O Fluminense. Lá, minha função inicial não era de colunista social e, sim, de reportagens fotográficas. Também fui contratado para a coluna “Homens de Negócios”.

Até que um dia o Alarico Maciel, príncipe da coluna social, pediu demissão do jornal. Lembro do Alberto Torres me chamando para assumir a coluna devido ao meu conhecimento da sociedade de Niterói. Era uma coluna diária e não dava para ficar sem. Lembro que a primeira coluna que foi publicada foi a quatro mãos. Eu e o Alberto Torres. E depois lá fiquei por 35 anos.

A minha coluna servia a Niterói e ao seu povo. Era uma coluna a serviço da cidade. Meu prestígio era muito grande. Tive companheiros muito especiais no jornal, como o Pinheiro Junior, Mauro Costa, Gilson Monteiro. Eram grandes mestres do jornalismo. Foi uma convivência muito importante em uma época em que Niterói era mais glamorosa, mais elegante e mais tranquila.

Niterói, naquela época, existiam cinco grandes jornais diários: Além do Fluminense, tinha o Diário do Povo, Diário Fluminense, Diário do Comércio e A Tribuna, que não era a que conhecemos hoje.

O jornal Fluminense cobriu alguns fatos marcantes da República, da velha província e da época em que Niterói era a capital do antigo Estado do Rio de Janeiro. Quais desses acontecimentos foram mais marcantes?

O caso do Gaguinho foi muito marcante. Ele era procurado pela polícia, que por sua vez, queria matar ele. Eu e um outro colega do Fluminense conhecíamos um advogado que sabia onde o Gaguinho estava escondido. Poderíamos entregar o Gaguinho à polícia desde que ela não fizesse nada com ele. Nós conseguimos trazer ele para Niterói. Tínhamos todo o material para que o Fluminense desse a notícia no dia seguinte com todo a exclusividade. Mas o Fluminense esqueceu de avisar a oficina (de gráfica) para esperar o Gaguinho chegar. A ideia era que ele fosse a manchete de capa no dia seguinte.

Acabou que os outros jornais deram a manchete com o Gaguinho e o Fluminense não deu uma linha. Foi o maior alvoroço. Naquela época, o Fluminense não colocava nada relacionado à crime na matéria de capa. A circulação do jornal começou a cair um pouco e eles começaram a fazer uma campanha em rádios, outdoors, mas o retorno foi muito pífio. Não teve muita repercussão. Até que um dos redatores teve a ideia de “chamar” o crime na primeira capa e isso fez com que o faturamento aumentasse em 30%. E você vê que isso perdura até hoje. O RJTV, por exemplo, é crime do início ao fim, basicamente.

Outra coisa muito importante do Fluminense foi a mudança de tipologia. Ele saiu da tipologia comum para o offset, uma impressão moderna. E isso tudo sem deixar de circular, o que é mais impressionante. Foi muito marcante.

O Fluminense tem um grande arquivo fotográfico e as edições dos jornais foram encadernadas desde o número 1. É fascinante. Esse arquivo não pode morrer. A Prefeitura de Niterói tem que intervir nisso. Eu tenho publicado várias capas de edições históricas do Fluminense no Facebook, como um arquivo digital.

Você cobriu a derrubada do trampolim da praia de Icaraí, a revolta das Barcas, com o povo incendiando a estação e o incêndio do Gran-Circus Norte Americano. Quais dessas pautas foi a mais desafiadora? E como você articulava essa diversidade de assunto?

Eu fiz um livro onde conto tudo isso: “Niterói em outros tempos: fotos, festas e fatos”. Lá eu compartilho histórias do incêndio do Circo, a revolta das barcas, a derrubada do trampolim, entre tantos outros acontecimentos. A revolta das barcas foi a pauta que mais me desafiou. Foi uma tragédia brutal. O governador da época, Roberto Silveira, não colocou as tropas na rua. Foi um desastre.

Mas o incêndio do circo foi muito triste. Muitas pessoas comentavam que o circo foi incendiado. Mas, na verdade, foi combustão da lona. Eu digo isso porque meu cunhado assistiu ao espetáculo. Ele viu quando o fogo começou na cúpula. Foi combustão espontânea devido ao calor. A lona não era moderna, como a de hoje.

Quanto a essa diversidade de assuntos, acho que vem da minha experiência no jornalismo. Trabalhei na reportagem, na produção, na fotografia. Transitei muito. Fui criando um fascínio. Era muito atuante e gostava disso.

Tem uma história que o iate do Roberto Carlos, o Lady Laura, atracou em Jurujuba, onde o Roberto Carlos ia jantar… Isso de fato aconteceu?

Não, isso não foi verdade. Mas Jurujuba tinha um hotel que foi um dos melhores de Niterói. Ele tinha cais próprio, onde atracavam vários iates e barcos do Rio. Eles vinham para jantar em Niterói porque era uma comida de primeira linha. Mas era muita gente que vinha do Rio. O hotel ainda tinha 6 apartamentos, onde vinha muita gente clandestina. Os caras vinham com suas amantes para Niterói. Era engraçado.

Quais foram as principais mudanças da coluna social dessa época para os dias atuais?

A coluna social praticamente desapareceu. Naquela época, as colunas sociais eram de fofocas. Mas eu nunca entrei na fofoca. O que eu fazia era uma coluna noticiosa. Hoje as colunas abrangem todos os aspectos da cidade. A coluna ganhou um teor muito mais informativo, como a do Ancelmo Gois, do Globo. Acho que pude inovar na coluna. E as famílias conhecidas não saíam de casa sem ler o Fluminense. Era o Jornal do Brasil de Niterói. E ainda tinham os classificados, que foram de enorme importância. O Fluminense tinha até 6 páginas de classificados.

Como era a sua relação com as fontes?

Eu tinha uma rede de contato muito grande porque o pessoal confiava muito em mim. Era uma rede de informantes realmente muito boa. As fontes eram as principais porque eu circulava muito pelo Palácio do Ingá, que era a sede do governo do Estado da época. O pessoal confiava muito porque nunca cometi uma fake news. Tinha uma apuração ali. E tinha que haver. Caso contrário, seria uma tragédia.

O jornal Fluminense expandiu depois que foi adquirido, em 1954, pelo jornalista e deputado Alberto Torres. Ele foi um celeiro de grandes jornalistas, como o próprio Irineu Marinho, do Globo. A que você atribui esse protagonismo do Fluminense?

Com certeza. Era uma grande escola do jornalismo. O Fluminense era o jornal mais antigo de Niterói e era o terceiro mais antigo em circulação do Brasil. Tinha um elenco de ponta, com jornalistas de excelência atuando como chefes de reportagem. O Fluminense inovou muito, passou da tipologia de gráfica comum – aquele de letra por letra, para o offset. Foi um dos primeiros jornais a ser impresso em offset, que era o que existia de mais moderno na época. Quando isso aconteceu, o Fluminense abriu outras sucursais, como em várias cidades fluminenses.

Por fim, você poderia citar algum episódio curioso para contar sobre o jornal?

O que mais me emocionou foi a primeira cirurgia cardíaca no Estado do Rio de Janeiro, no Hospital Antônio Pedro. Eu fotografei tudo. Pude ver a retirada do coração funcionando e depois introduzido novamente. Foi algo muito tocante para mim. Acabou sendo publicada na “A Noite Ilustrada”, que era uma revista do Rio antigamente.