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Andanças

Por Giovanni Faria

Giovanni Faria é jornalista com mais de 30 anos de atuação em jornais e rádios do país, professor universitário e um andarilho pelo mundo. Já percorreu mais de 5.500 KMs em 11 viagens pelo Caminho de Santiago de Compostela. Nasceu em Nova Friburgo, mas é frequentador assíduo das ruas de Niterói, onde mora e caminha diariamente por todos os cantos da cidade.
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Um armazém de ‘causos’ mineiros, uai

armazém

– Minha filha vai se chamar Atleticana!

São Gonçalo do Rio das Pedras é distrito de Serro, cidade de Minas Gerais em plena Serra do Espinhaço. Disputa com com Milho Verde a preferência dos amantes de caminhadas, cachoeiras, paz e, claro, comida boa. Afora histórias contadas, às pencas, por seus residentes.

De botas, bastão, mochila e perneiras contra cobras, cheguei àquela SG do Caminho dos Diamantes sob muita chuva. Pingos grossos, pesados, duradouros. Mas houve luz suficiente para que admirasse a pracinha, a igreja tricentenária, o horizonte infinito. Janeiro é pura água nas Minas Gerais.

“Seu” Ademil estava no balcão do armazém. Cotovelos no mármore, luz do recinto apagada. Tinha de tudo, até um relógio emoldurado por uma tampa de vaso sanitário pendurado no teto. Mas dava para ver, franzindo os olhos, o orgulho dele: cerca de 300 marcas de cachaça expostas nas prateleiras. Mas não apenas. Também vidros do picles que produz, de broto de bambu e uva verde. Clamam pela companhia de uma cerveja gelada.

Ademil, agora na intimidade sem o “Seu”, era para ser Ademir. Na hora do registro em cartório, sotaque pra lá, sotaque pra cá, o escrivão escorregou. Sem problema. O dono da venda esbanja simpatia e derrama história da boca pra fora. Ademil, um senhor nota… Perdão, esqueça a rima.

Enquanto falava, a mente voou até Cunha, em São Paulo, onde eu estive em outubro em trilhas na Serra do Mar. O dono da pousada era hilário. Nome? Dalvo, Dalvinho na intimidade. Mas também não era para ser. O pai queria Darwin, mas o cartório negou o registro de nome no “diminutivo”. O escrivão entendeu Darwin como se fosse Dalvinho. Coisas da evolução da espécie. Perdão Charles, o Darwin.

Ademil então entra na conversa de nomes assim e assados. E contou a história de um pai, torcedor fanático do Galo, que queria registrar a filha com o nome de Atleticana. Dessa vez o cartório negou, apesar da insistência uma, duas, três vezes. Não satisfeito, dias depois, o pai retornou à repartição e sacou da manga o nome Anacitelta. Na mosca. Registro feito, o dito-cujo sai com a certidão na mão, vestido com a camisa do time de coração, claro, e exultante com o drible que dera no cartório.

Anacitelta, enfim uma filha com o nome Atleticana, como ele queria, só que escrito ao contrário.
De repente, o sino da igreja tocou e o porta-voz anuncia o falecimento de “dona” Maria Vicentina, conhecida como Sinhá, sogra de Ademil. Tinha 98 anos e lá vai fumaça, segundo ele. Em silêncio, todos pagam a conta e, em respeito mineiro bonito de ser visto, se vão para suas casas. Ademil começa a fechar a venda.

– Sinhá viveu bem, viveu muito. Respeito sim; tristeza, não – diz, cerrando portas e janelas.

A chuva parou, voltei a caminhar, mas não deixei de pensar nem na Sinhá que se fora com quase um século de vida, nem na Anacitelta que havia pouco chegara ao mundo já carregando um fardo no nome.

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