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Luiz Cláudio Latgé

Jornalista, documentarista, cronista, atuou na TV Globo por 30 anos, como repórter, editor, diretor. Consultor em estratégia de comunicação, mora em Niterói e costuma ser visto no Mercado de São Pedro.
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Tiro nas Barcas, um retrato de Niterói

protesto barcas
Confusão e medo junto à bilheteria do terminal de barcas depois do tiro que matou um vendedor de 21 anos

Para o morador de Niterói, ir às Barcas é muito mais do que rumar em direção à estação da Praça Arariboia. Barcas, para a cidade, não é o transporte. É um endereço, quase um bairro: vou às Barcas, dizemos, assim com maiúscula, como usaríamos para situar o Centro. Um território entranhado na memória e no afeto, que estava aqui antes de nossos pais, dos nossos avós, a lembrar “que aqui sangraram pelos nossos pés/ Que aqui sambaram nossos ancestrais”, como diria Chico Buarque se tivesse vivido por estes lados.

O terminal que conhecemos, com várias modificações ao longo do tempo, foi construído para ser um lugar seguro, depois que a cidade botou abaixo a estação da Cantareira, em 1959, revoltada com o descaso da empresa e o preço das passagens. Mas isto foi antes, a estação da Praça Arariboia deveria ser o lugar mais protegido da cidade. Com a Polícia na porta, gente passando e enorme atividade.

Não foi o que se viu nesta segunda-feira (14). Um vendedor de balas, identificado como Hiago Macedo, de 21 anos, foi baleado e morto diante de dezenas de passageiros. A arma teria sido disparada por um policial militar à paisana. Houve correria. O acesso à bilheteria ficou isolado por um tempo pelos bombeiros para a apuração do caso e a retirada do corpo. O homem que atirou foi detido e levado para a Central de Flagrantes, na Delegacia do Centro (76ª DP). A concessionária informou que não há alterações na operação das embarcações. Mas as marcas do episódio vão ficar, como um lembrete para a cidade de que as coisas não andam muito bem.

As Barcas, o nosso Centro, sofre e se deteriora diante de nós faz tempo, com o esvaziamento do comércio de rua e dos escritórios, que ao longo do tempo se transferiram para Icaraí ou para os shoppings. Muitos prédios se desmancham diante dos pedestres, como os dois edifícios interditados na Avenida Amaral Peixoto. Não há mais lojas de roupas, jóias, presentes, nem restaurantes famosos, nem lojas de doces que façam o morador da cidade se meter por aqueles lados, sem que seja por obrigação, porque ainda estão por ali a Previdência, companhias de serviços, bancos e a burocracia da Prefeitura. Nem ao menos guardamos o atrativo do Centro do Rio de prédios históricos e ricas igrejas. Nada para visitar.

A Prefeitura, agora, anuncia um plano de R$ 450 milhões para revitalizar o Centro de Niterói. É uma ideia louvável, no momento que o país tentar vencer a crise da economia e a perda de empregos e renda amplia a desigualdade social e enche as calçadas de pessoas em situação de rua. Mas obras, apenas, não revivem um lugar. O Rio de Janeiro diante de nós mais uma vez pode servir de exemplo: o Centro, totalmente repaginado, com ruas de pedestres e VLT, está abandonado. Mais que licitações, é preciso ter um projeto para o Centro de Niterói. Qual a vocação do bairro, que tipo de empresas e residências podem se estabelecer ali?

O Brasil não costuma oferecer muitos exemplos de ações públicas transformadoras. Mas é possível encontrar alguns, como o trabalho feito no Centro Velho do Recife, para ver que é possível promover a recuperação de uma região maltratada pelo tempo. A região histórica hoje abriga o Polo de Tecnologia, atraiu jovens, e conta com bares e restaurantes sempre cheios, é uma atração turística. Uma ação que levou mais de 20 anos e transformou o endereço num orgulho para a cidade.

Mas qual a vocação do Centro de Niterói?

No passado o Centro de Niterói tinha fortes atrativos. Era a sede do governo do estado. Fórum para assuntos legais. Era o acesso da cidade ao Rio de Janeiro. Um centro de comercialização e distribuição de produtos e serviços. Estavam ali os escritórios dos advogados, os consultórios de médicos e dentistas, e os melhores restaurantes da cidade. Mas tudo isso ficou para trás, e faz tempo, desde a construção da Ponte Rio-Niterói e a fusão dos estados do Rio e da Guanabara.

As barcas, agora em minúsculas, não mais o bairro, mas o transporte, contam bem esta história de decadência. Já transportaram 150 mil passageiros, nos anos 70, atendendo moradores de Niterói e São Gonçalo e ainda de cidades vizinhas. Só este movimento era capaz de gerar um enorme atrativo para o comércio. A ponte tirou dali os melhores clientes. E desde a remodelação da Praça XV, que acabou com os ônibus que paravam na porta do terminal, o número de passageiros das barcas caiu tanto que a CCR já anunciou que não quer continuar prestando o serviço. Hoje são cerca de 20 mil passageiros por dia, apenas. A Secretaria Estadual de Transportes tem que lançar uma nova concorrência ainda este ano, mas desconfia que, se repetir o modelo atual, não haverá interessados. As barcas, provavelmente, não serão nunca mais o que já foram na vida da cidade.

O tiro na estação serve de alerta para a deterioração das Barcas. Sem o movimento de passageiros, qual o atrativo do Centro?

É um lugar com infraestrutura e serviços, não deve ser abandonado. As maquetes exibidas pela Prefeitura não revelam os planos para o Centro, além de refazer calçadas e passeios. Seria interessante estabelecer o debate com a sociedade. Aqui, deixo minha contribuição, quase uma provocação para pautar o assunto. Por que o município não toma o Centro como polo de educação e tecnologia, de renovação de negócios, o endereço da economia criativa? O Centro já foi endereço de escolas como o Liceu, Centro Educacional, GayLussac, já abrigou cursos da FGV, a Universo, a Anhanguera… E tem a UFF, uma das maiores universidades federais do país. Por que não aprofundar o debate e estudar a viabilidade de projetos de Educação e transformação?

Que as Barcas, o Centro, sejam um endereço da educação e não de tiros. Calçadas novas não mudarão o destino do bairro, sem um plano efetivo de ocupação e desenvolvimento.

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