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Andanças

Por Giovanni Faria

Giovanni Faria é jornalista com mais de 30 anos de atuação em jornais e rádios do país, professor universitário e um andarilho pelo mundo. Já percorreu mais de 5.500 KMs em 11 viagens pelo Caminho de Santiago de Compostela. Nasceu em Nova Friburgo, mas é frequentador assíduo das ruas de Niterói, onde mora e caminha diariamente por todos os cantos da cidade.
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Sou mais um na multidão…”

foto giovanni

Eu cantarolava Erasmo Carlos e Mariza Monte e me divertia com a fumaça gelada que saía de minha boca naquele mar de gelo. Mal podia imaginar que uma nevasca me aguardava. Ajeitei a mochila nas costas, gorro, luvas e deixei a cidade de Astorga, no norte da Espanha, a uns 200 e poucos quilômetros de Santiago de Compostela – 600 quilômetros já haviam ficado para trás. Era minha décima-segunda aventura a pé da França ao “Campo de Estrelas” – Compostela!

“Sou mais um na multidão…”

A música não me saía da mente e da boca congelada, apesar da balaclava que a cobria e deixava de fora apenas meus olhos negros, esbugalhados com aquele cenário que incluía o palácio episcopal criado por Gaudí e a catedral dedicada a Santa Maria, do século III.

O dia ainda amanhecia no inverno europeu. Flocos de neve cobriam meus ombros e o capuz e se dissolviam rapidamente como açúcar. Fincava os stickers, que já foram chamados de cajados e bastões, na neve que crescia sob meus pés. Não havia pegadas, só as minhas. Eu era o primeiro a passar por ali naquela manhã de janeiro em que nada nem ninguém se movia além de mim.

A letra da música e eu estávamos em total dissonância. De mais um na multidão, me dei conta que era, naquele momento, um andante solitário a não ver ninguém. Onde estão todos os peregrinos, esses seres estranhos que desafiam a distância, assim como um alpinista o faz com a altura e os mergulhadores com a profundidade?

“Sou mais um na solidão…”

Pronto, troquei a letra da música. Fazia mais sentido. Vi pegadas de coelho ou lebre na neve. Mas de botas, nada. Estou só e meus pensamentos voaram a baixa temperatura. Fiz as contas: havia cinco dias que não via nenhum peregrino. Conversei comigo mesmo, qual amigo querendo afastar o tédio de um momento.

Pensei em números. Já havia percorrido mais de seis mil quilômetros por aquelas bandas francesas e espanholas, além de portuguesas. Desde os Pireneus até Finisterre, onde o continente se encontra com o Atlântico. Lá, com um grupo de italianos e muita pasta e vinho, cantei “Nessun dorma”, de Puccini, sem desafinar. Mas era verão e a voz estava livre, leve, solta. No inverno, um pigarro gutural não me abandonou um verso sequer.

Na estação do sol, cruzei “La meseta”, o deserto espanhol, narrando gols imaginários do Brasil, virando jogos históricos como o 3 a 2 para a Itália em 1982. Enfim, fez-se justiça. Em Sahagun, na metade do Caminho Francês, o mais tradicional, cantamos – brasileiros, espanhóis e franceses – “Champagne”! E brindamos com vinho caseiro de La Rioja. Em Santo Domingo de la Calzada, onde um galo cantou depois de assado, num lendário milagre, erguemos uma taça à vida com água de chafariz romano.

O Caminho é gente, é número. Antes da pandemia, mais de 300 mil peregrinos chegavam anualmente a Santiago, onde está o corpo do primeiro apóstolo de Cristo martirizado – Tiago, o Maior. Agora, em 2023, esse número deve ser superado – em junho, a média diária de peregrinos que chegaram à Praza do Obradoiro, num bom galego, o ponto final da jornada, é de dois mil. Sim, por dia.

Mas eu estava só. Não havia sequer um, ao menos um, brasileiro, desses 200 e tantos milhões que habitam essa terra brasilis. E brasileiros são, em média, o décimo povo de todo o mundo mais presente no caminho.

“Sou mais um na solidão…”

A nevasca embranqueceu tudo à minha frente, ao meu redor, onde minha vista alcançava. Eu queria estar ali, me preparei – em termos – para estar ali, mas, por instantes, minha mente queria mesmo era fugir dali. Queria gente, companhia, amizade, conversa jogada fora, ao vivo. Como fazemos nas areias de Camboinhas, numa subida ao Parque da Cidade, no burburinho do Mercado São Pedro num sábado bom para peixe.

Como não via ninguém, nem mesmo pegadas, minha mente se encheu de gente – uns vivos, outros não. A memória – viva ela – transpõe muros do tempo com facilidade. Podia ouvir, apesar do assovio do vento, meu falecido pai sussurrar: “O que você está fazendo aí nessa lonjura?”. Ou, mesmo com minha respiração ofegante, escutar minha mãe a dizer, em Nova Friburgo, terra natal: “Cuidado para não se resfriar, você é um zé gargantinha…”

Conheço o Caminho na palma das mãos. E na sola dos pés. Mas não me conhecia tão bem antes dele. Respondi, na prática, passo a passo, a um questionário de vida – medos, ansiedades, desafios. E acho que me saí bem e melhor. Não somos o mesmo todo o tempo – ainda bem. Há muito o que fazer, o que aprender nessa corrida contra o tempo curto e breve chamado vida.

Cheguei a Santiago exausto, mas feliz. Troquei experiências, compartilhei histórias, retomei o convívio. E a jarra de vinho, claro. Recebi o diploma por ter concluído meu caminho – a Compostelana, em latim. E pensei se haveria espaço na parede para pendurá-la como (mais um) troféu cujo valor maior é a descoberta que fazemos de nós mesmos. A neve não congelou meus sonhos.

Enfim, como na música, voltei a cantar “sou mais um na multidão…”

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