Num pó fobá…
Ouvi uma, ouvi duas, ouvi cem vezes. Mas a primeira vez, em especial, a gente nunca se esquece. Foi em São Roque de Minas, cidadezinha encravada na Serra da Canastra, em Minas Gerais. De volta da bela (e dura de se chegar) cachoeira Lavrinha, com o sol de meio-dia rachando a moleira, a propriedade bem simples de “Seu ” Julio foi o último descanso antes de encarar uma subida bem mineira, aquela que o “termina logo ali” é, na verdade, sinônimo de “acaba onde Judas perdeu as botas”.
A caminhada começara às 7h da manhã, com céu azul e sol despontando por detrás das montanhas com promessa de muito suor pela frente. Por questões óbvias, a ida numa caminhada é sempre mais suave do que a volta: de manhãzinha, corpo descansado, trilha nova e desconhecida, mil fotos, conversa à solta, uma música cantarolada aqui, outra assoviada ali. Já a volta…
Pois foi na volta da cachoeira para a cidade que conheci “Seu” Julio, 73 anos. Ele retornava da lavoura, seguia a cavalo a caminho de casa. Era meio-dia, hora da boia. Já li que essa expressão nasceu na Guerra de Canudos e fazia referência aos feijões estragados ou mal cozidos que boiavam no prato dos soldados na hora da refeição. Que seja verdade. Voltando a Minas, o solícito cavaleiro me ofereceu água, alguma fruta e até pepinos que trouxera da colheita.
Antes de partir para o sprint final – a subida dolorosa à frente – ainda perguntei-lhe se havia algum caminho alternativo, mais suave, mais humano. Nem pensar. Foi então que “Seu” Julio tirou da cartola, ou melhor, do bornal que carregava a expressão que se tornaria a partir dali uma espécie de mantra diante de qualquer obstáculo físico aparentemente instransponível.
– Num pó fobá – disse-me com naturalidade, no mais puro, simples e agradável idioma mineirês.
De imediato, nem entendi. Como, minutos antes, não entendera de cara a plaquinha de alerta, bem à frente à entrada da propriedade, que dizia: cochete aqui. Só depois associei a colchete, tipo de gancho que prende uma porteira de arame farpado a um tronco fincado na terra.
– O que o senhor disse? – perguntei enquanto ajeitava a mochila nas costas, na contagem regressiva para encarar a montanha que fervia na solina.
– Num pó fobá – repetiu “Seu” Julio, acrescentando ao recado o conselho de que tudo na vida deveria ser feito dessa maneira, sem pressa, com a maior calma do mundo, sem estresse algum, numa boa.
Como nos velhos orelhões da esquina de minha juventude, só então caiu a ficha do que ele dissera: não pode afobar.
Há dias, em Niterói, ao subir o Parque da Cidade, quase tão íngreme quanto aquele Everest mineiro e sob dois sóis crueis e impiedosos do verão, lembrei-me de “Seu” Julio: sem praguejar, reduzi a marcha das pernas, admirei a paisagem, deixei o suor escorrer e, quando vi, estava lá em cima.
Viu, “Seu” Julio? Não “fobei”, nem “fobo” mais quando caminho. Assim, no passinho de formiga, chego aonde quero.