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Sergio Torres

Sergio Torres trabalhou nos três maiores jornais do país ao longo de 35 anos. Mas se interessa mesmo é pelas notícias locais de Niterói, onde nasceu e sempre viveu. 
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Passa a régua no leite

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Mosquito (em pé, à direita), com o repórter encostado no carro de reportagem. Foto arquivo pessoal anos 80

“O amigo tem um copo de leite?”
“Não.”
“Então manda um Velho Barreiro.”

O diálogo acima eu presenciei ao longo de um mesmo dia, inúmeras vezes, durante todo o longínquo ano de 1984.
Quem fazia a pergunta era o Mosquito, motorista do jornal “O Fluminense”. O “não” vinha do homem que trabalhava em alguns dos sórdidos botequins e biroscas onde Mosquito entrava sedento.

Logicamente todos os que ouviam o diálogo caíam na gargalhada. Quem iria beber leite gelado numa tendinha de pinguços?

Tudo começava às 7h, quando o Fusca do jornal saía para a ronda das delegacias. Na época não havia internet, acreditem. Mosquito era o piloto, eu o repórter e o fotógrafo costumava ser um veterano ganancioso que prefiro não identificar.

A ronda consistia na ida da equipe a todas as delegacias de Niterói (e às vezes de São Gonçalo) a fim de descobrir o que acontecera na madrugada.

“Apura lá umas cabeças quebradas”, pedia o chefe de Reportagem, Gilberto Fontes, que chegava ao jornal bem cedo.
Íamos às delegacias do Fonseca, Barreto, Centro (à época na Rua São João), Icaraí (então na rua Dr. Paulo César), Charitas, Rio do Ouro e Itaipu. Algumas vezes, passávamos no distrito policial de Neves (SG), pela proximidade com o Barreto.

O ritual se repetia todos os dias. O carro parava ou perto da delegacia ou do local de algum crime. Mosquito imediatamente seguia para a birosca e fazia a pergunta. Diante da negativa, pedia a cachaça de sua marca preferida.
Naquela época, motorista bebia. No caso de Mosquito, desde cedinho. No início da tarde, já tinha tomado uma meia dúzia de doses. E continuava a dirigir sem problemas. Era um excelente motorista.

Observador, Mosquito ajudava os repórteres. Lembro que uma vez, o carro parado em frente à 76ª DP, eu e ele conversávamos. Naquela delegacia, o fotógrafo fazia questão de entrar sozinho, pois se dizia amigo dos policiais, que não confiariam detalhes dos casos a um jornalista iniciante.

“Você não vai entrar, não?”, Mosquito me perguntou.

“Fulano pediu para eu esperar aqui fora.”

“Você sabe por que, né?”

“Porque os policiais preferem passar as informações para ele.”

“Porra nenhuma, moleque. Ele entra pra apanhar o pepê!”

“Pepê? Que merda é essa, Mosquito?

“É a caixinha da polícia pros repórteres. Por isso que ele não quer que você entre. Quer ficar com o dinheiro só para ele!”

“Por mim, pode ficar, Deus me livre de entrar num esquema desse.”

Nunca o fotógrafo tocou no assunto comigo. Era um cara estranho, chefe de família, mas que, quando bebia, mudava de comportamento. Tanto que passou a ser chamado nas encolhas de Patola. Graças a Deus o sujeito não acompanhava o ritmo do Mosquito!

Como havia alguns veteranos fotógrafos no jornal naquela época, preciso, sem nomear o patolista militante, dizer que não se trata de Zalmir Gonçalves, Salomão Sant’Anna e muito menos do velho Jurandir, o Juruna de Maricá. Estes não só recusavam o pepê como comportavam-se devidamente mesmo quando bebiam umas e outras.

Mosquito, de nascença José Argemiro, era mineiro. Morreu já há alguns anos. Trabalhei anos depois na sucursal do Estadão no Rio com Fábio Motta, seu filho. Fabinho é um dos melhores fotojornalistas com quem convivi. Fizemos uma cobertura heroica em Coari, cidade na margem direita do Rio Solimões, no Amazonas.

Presenciamos em Coari cenas que, tenho certeza, não esqueceremos jamais. Como os peixes enormes expostos diretamente sobre o asfalto fervente, sem refrigeração, junto a uma vala de esgoto. Isso no meio da cidade. Muita gente comprava esses pescados.

Terra de ninguém, acessível apenas por barco após 15 horas de navegação contra a correnteza possante, Coari era rica em gás natural. Por ano, a Petrobras pagava uma fortuna em royalties pela exploração do produto, que ia para Manaus em gasoduto.

O dinheiro era todo desviado pela corja de prefeitos e vereadores que dividiam o poder a cada quatro anos. A população vivia na mais absoluta miséria em uma cidade violentíssima. Os homicídios eram diários e numerosos.
Fabinho registrou tudo isso com um magnífico trabalho fotográfico. Como o pai, é um craque.

(Na próxima coluna abordarei minhas coberturas nas favelas de Niterói há quase 40 anos.)

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