Aceitei com muita satisfação o convite para ser colunista do A Seguir. O portal é uma novidade de Niterói. Mas a sugestão para escrever sobre a história da cidade não me atraiu. Não sou historiador. Embora saiba coisas sobre Niterói, tenha lido muito sobre o tema, não me considero um especialista. Sempre fui repórter. Cobri eleições, chacinas, pacotes econômicos, Copa do Mundo, Olimpíadas, entrevistei Roberto Carlos, Caetano Veloso, Pelé, Ayrton Senna, Roberto Marinho, Lula, Brizola, até Bolsonaro, Hugo Chávez, o Rei Juan Carlos, de Espanha, e o serial killer de Niterói.
Resolvi escrever sobre a atividade que desenvolvo há quase 40 anos. Basicamente sobre o período de quatro anos em que trabalhei no diário “O Fluminense”. Comecei lá em 3 de novembro de 1983, como repórter. Naquela Redação convivi com grandes (e pequenos) jornalistas, participei das mais bizarras coberturas. Algumas delas relatarei neste espaço.
Na coluna inicial contarei como cobrimos o segundo aniversário da Rádio Fluminense FM, a Maldita, em 31 de março de 1984, no Canecão. A rádio fazia enorme sucesso à época, graças à programação de alto nível, rock em geral. Bandas novas, hoje na história da música brasileira, começaram ali.
Foi uma noite memorável. O Canecão lotou. O palco seria ocupado por conjuntos do porte da Blitz, Paralamas, Kid Abelha e Barão Vermelho, todos em processo acelerado de consagração. Desde cedo já havia confusão em frente à famosa casa de espetáculos na zona sul carioca. O jornal e a rádio integravam o Grupo Fluminense de Comunicação. Logo, cabia a nós, os repórteres do impresso, a cobertura do evento.
Meus preparativos para o magnífico espetáculo começaram cedo. Sorrateiro, ludibriei a vigilância familiar e furtei uma legítima garrafa de vodka russa que meu pai guardava em seu armário. A caminho, eu, os demais repórteres, fotógrafos e até motoristas nos fartamos com o nobre destilado.
Cheguei ao Canecão à tarde. Assisti a ensaios e passagens de som. Vi coisas que guardo na memória. Lobão isolado em um canto com um violão. Não falava com ninguém, ninguém falava com ele. Era um outsider desde aquela época. Um calibradíssimo Celso Blues Boy precisou ser carregado pelos colegas Sérgio Magrão e Flávio Venturini, do 14 Bis. Pensei comigo: esse não vai ter condições de tocar. Engano terrível. Celso fez um show grandioso.
Do lado de fora, muito tumulto. Vi o vocalista Cazuza, então no Barão Vermelho, dar um tremendo chilique ao ser imprensado pela turba. Quando conseguiu entrar, um arranhado Cazuza, no auge da crise de nervoso, anunciou, aos brados, que não cantaria. E não cantou mesmo. O então candidato à estrela não se dobrou às súplicas dos colegas de banda.
No backstage, aconteceram episódios
Hoje avó de alguns netos, Simone mantém em suas caminhadas no Campo de São Bento, sabe-se lá às custas de quais poções e mandingas, a beleza, o charme e simpatia daqueles anos. Pois foi ela, a musa daquela redação, que convenceu o arredio bandleader dos Paralamas do Sucesso a falar com exclusividade com “O Fluminense”.
Perto dali, acompanhava abismado o desenrolar daquela conversa. Simone perguntava, Herbert respondia; Simone dava uma bicada no copo de plástico cheio de vodka, também compartilhado pelo míope roqueiro; os dois riam. E a repórter escrevia freneticamente em seu bloco de anotações as preciosas respostas do artista. Naquela época, gravador estava em falta. A apuração era consolidada em caneta e papel. Nada mais que isso.
Iniciado o show, algumas cenas marcantes. Para delírio dos milhares de presentes ao Canecão, o guitarrista do Genesis, o inglês Steve Hackett, pelo que lembro casado com uma brasileira, deu uma canja na apresentação do grupo Roupa Nova. O presidente do Grupo Fluminense de Comunicações, o taciturno dr. Alberto Torres (não era meu parente, apesar de muitos até hoje duvidarem), com a esposa, dona Loló, bateu em retirada no meio do espetáculo. Certamente indignado com o coro de indecências cantadas pela plateia ensurdecedora, com o incentivo dos músicos do João Penca e os Miquinhos Amestrados. Quem estava lá sabe do que estou falando.
No dia seguinte, estávamos todos de volta à redação, com boa saúde. Éramos jovens. Nosso chefe de reportagem, Aissar Elias Jorge, o Turco, queria saber o que tínhamos para escrever sobre o show. Cada um vendeu seu peixe. Até chegar a vez de Simone Botelho. Ela contou que tinha uma excelente entrevista com Herbert Vianna. O Turco entusiasmou-se e mandou caprichar. À época, o veterano jornalista já não usava paletó, como bem sabe o rio-bonitense Vinícius Martins, cidadão honorário de Niterói.
Fomos todos para nossas máquinas de escrever (não havia computadores naqueles tempos). Absorto na preparação de meu texto, tomei um susto quando Simone irrompeu ao meu lado e fez um apelo dramático: “Serginho, por Deus, me ajude!”. “O que tá acontecendo, Simone?”, indaguei, preocupado. “Eu não posso acreditar! Que tragédia!”, respondeu ela.
Eu também não podia crer no que via diante dos meus olhos. As anotações da musa, aquelas da entrevista com Herbert, eram garranchos totalmente incompreensíveis. Na penumbra do backstage, Simone escrevia, mas não olhava para a ponta da caneta. Talvez como efeito da vodka, as anotações saiam do bloco como se a autora continuasse escrevendo as frases no ar. Não havia qualquer lógica naquilo. Vivo fosse, nem o linguista francês Jean-François Champollion, o sábio que decifrou os papiros do Velho Egito, conseguiria esclarecer o que havia sido escrito naquele papelucho.
“E agora, Simone? Você lembra do que o cara falou?”, perguntei. Sincera, ela admitiu: “Nada, nada, nada…”.
Paciência, a entrevista saiu assim mesmo. Vivíamos o auge da era do Jornalismo Verdade.
Na próxima coluna, saiba mais sobre o canibal do clube náutico da Fróes.