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Sergio Torres

Sergio Torres trabalhou nos três maiores jornais do país ao longo de 35 anos. Mas se interessa mesmo é pelas notícias locais de Niterói, onde nasceu e sempre viveu. 
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O ritmista de dois pulmões

Desfile-Cubango-A-peixoto
Desfile antigo na Amaral Peixoto, Centro de Niterói

Carnaval para mim sempre foi um período desesperador. Nunca gostei, realmente abomino. Minha estreia profissional em um desfile carnavalesco se deu em 1984, na Avenida Amaral Peixoto, ainda a mais famosa do Centro de Niterói. Era repórter de “O Fluminense”. Posso garantir aos que me leem: tudo deu errado.

Coube ao chefe de Reportagem, o grande Gilberto Fontes, montar o esquema de cobertura. Eu era o foca da equipe. Então foi dada a mim a tarefa de cobrir o segundo grupo das escolas de samba de Niterói. Imaginem a bagaceira que era.

O primeiro grupo, o de elite, era tarefa dos jornalistas mais experientes, como a musa Simone Botelho, a adorável ranzinza Deborah Bruno e Paulo Freitas, o Cachorro.

O grupo 2 era integrado por 12 escolas. Gilberto dividiu a cobertura: metade delas, eu faria; as outras seis, o veterano Múcio Bezerra, que deveria estar conduzindo a equipe encarregada das principais escolas. Logo vim a entender, da pior forma possível, a razão de ele não ter sido escalado para acompanhar a Viradouro, a Cubango, a Sossego e as coirmãs.

Pronta a escala, combinei com Múcio.

“Eu faço a primeira e você, a segunda. E assim por diante. De acordo?”

“Claro, garoto. Tranquilo, vamos arrebentar!”, respondeu.

O desfile do 2º Grupo de Niterói começaria às 19h de sábado. Uma hora antes estava eu a postos, acompanhado do fotógrafo Paulo Faber. E nada de o desfile começar. E nada de Múcio aparecer.

Às 22h, com atraso de três horas, a cancela subiu (sim, o Carnaval começava quando levantavam uma cancela mal ajambrada). A escola iniciou a evolução pelo asfalto esburacado da Amaral Peixoto.

Como a próxima agremiação era de responsabilidade do Múcio, fiquei tranquilo. Mas ele não apareceu e eu me mantive no posto. Ainda sem o parceiro de reportagem cobri a terceira e a quarta escolas. Naquele momento percebi que Múcio tinha dado um perdido no evento.

Mas enganei-me. Quando a cancela abriu pela quinta vez, à frente da paupérrima comissão de frente, o repórter Múcio Bezerra sambava de maneira desenfreada. Fui falar com ele. Demonstrou não me reconhecer. Aliás, no estado em que se apresentou não reconheceria nem a própria genitora, posso afiançar.

Assim, cobri sozinho as 12 escolas. Apresentações intermináveis, fantasias e alegorias modestíssimas, mas sambistas muito animados.

Decidi que um deles seria meu personagem. Com a mesma fantasia, ele havia desfilado em todas as escolas que se apresentaram até então. Quem era o sujeito?

Fui perguntar para o presidente de uma escola do Badu (não lembro o nome nem sei se a agremiação existe ainda) sobre aquele passista que fazia misérias com o pandeiro, sambava como um louco, sempre com um sorriso cheio de dentes e olhos esgazeados.

“Presidente, esse aí não cansa?”, perguntei ao cartola.

“Cansa nada. Na escola a gente diz que ele só pode ter dois pulmões, só pode”, respondeu o homem, a sério.

O trabalho terminou ao meio-dia de domingo. A sorte é que nos meus 21 anos eu ainda tinha muito lenha para queimar. Ao final, lembro-me de ter ido a um botequim inóspito na Visconde de Sepetiba na companhia de Faber. Pedimos dois sanduíches das mais hediondas linguiças com que já me deparara. Para acompanhar, latas mornas de uma cerveja barata e horrorosa.

Na Redação, escrevi 12 relatos, um por escola. O editor, uma sumidade, esqueceu de publicar um texto. Quem for à Biblioteca Nacional e pedir para ler a reportagem de “O Fluminense” daquele dia vai achar que só 11 agremiações evoluíram pela avenida.

Muitos Carnavais vieram depois. Todos eles muito trabalhosos e lastimáveis. Mas esse do subgrupo niteroiense se superou na ruindade. Jamais esqueci aquele perrengue.

 

 

 

 

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