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Andanças

Por Giovanni Faria

Giovanni Faria é jornalista com mais de 30 anos de atuação em jornais e rádios do país, professor universitário e um andarilho pelo mundo. Já percorreu mais de 5.500 KMs em 11 viagens pelo Caminho de Santiago de Compostela. Nasceu em Nova Friburgo, mas é frequentador assíduo das ruas de Niterói, onde mora e caminha diariamente por todos os cantos da cidade.
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O longo caminho do trem até Niterói

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Ponte de ferro na serra entre Cachoeiras de Macacu e Nova Friburgo: Niterói é logo ali

Como Niterói era longe.
Velhas estações de trem abandonadas, alguns metros de trilhos fincados no chão, pedaços de dormentes, postes enferrujados, cravos retorcidos. Pontes, túneis e caixas de água pelo caminho.

Não há dúvida: o trem passou por essas (hoje) estradinhas que, muitas vezes, ligam o nada a lugar algum. Por aqui eu sigo, comendo poeira, admirando a paisagem, puxando prosa com gente, conversando com bichos.

De Cordeiro, no norte do estado, à velha Niterói, a viagem durava oito, dez, doze horas. Só Deus sabia. A locomotiva comia fogo, mas serpenteava devagar morro acima, serra abaixo. Era desconfortável.

Saio pisando em barro de Monnerat, distrito de Duas Barras, e sigo ouvindo um trem imaginário até Cordeiro. Dura caminhada, como canta Gil na música Drão. Duríssima.

Chego à antiga Fazenda Sant’Anna. Bela, imponente, cafeeira. Dali, na década de 50, descendentes dos suíços que povoaram os arrabaldes de Nova Friburgo partiam rumo a Niterói para morar, estudar, viver a vida urbana. A viagem? Só de trem.

– Pegávamos o trem de manhã e, muitas vezes, chegávamos a Niterói já escurecendo – conta Dorotheia Lutterbach, a Doró, 83 anos de paz e ternura, plena de saudade.

Ainda hoje, passados 60 anos, ela sente o cheiro do bolinho de arroz frito vendido na estação de Monnerat. Da fruta de conde em Sumidouro. Da banana em Cachoeiras de Macacu. Saudade de si própria.

Desses municípios vieram centenas e centenas de pessoas estudar e morar na antiga capital do estado. A maioria ficou por aqui. Se ainda tivéssemos catálogos telefônicos, aqueles tijolos de papel, lá acharíamos Lutterbach, Monnerat, Erthal, Tardin, Thurler, Frossard e tantos outros sobrenomes da gente trazida por dom João VI.

Doró estudava no Liceu Nilo Peçanha. Ia e vinha de trem, mas só em feriados e férias, claro. Ninguém é de ferro; só o trem. Sacolejou muito. Ela lembra que, na baixada entre Cachoeiras de Macacu e Itaboraí, na velocidade estonteante de 50km/h do trem, a fuligem entrava no vagão sem pedir licença.

– Para não sujar a roupa, alguns passageiros usavam uma espécie de guarda-pó – relembra Doró, sorrindo ao me ouvir dizer que o traje deveria mesmo era se chamar guarda-fuligem.

Ando por onde o trem passou. Às vezes, desligado no silêncio das estradas, batendo firme as botas no chão, até ouço na memória o seu apito frenético. E vou caminhando pelo cantinho da estrada, junto à mata, esperando que o comboio de ferro e fogo passe de verdade a meu lado e me leve de volta à velha infância.

A maria fumaça virou cinza.

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