Doval avança pela direita, dribla o marcador, toca para Rodrigues Neto…
A bola corria de pé em pé em antológicos e imaginários jogos de futebol da minha infância. Saía da Escola Número 9, no fim da tarde, e seguia sozinho por uma trilha na beira do Rio Bengalas. Sempre sozinho, por opção. Não queria ninguém a meu lado para o que iria fazer no trajeto. Era a então chamada Rua do Urubu, onde, pela primeira vez, sonhei acordado o que queria ser quando adulto: narrador de futebol. Em rádio, claro.
A paixão floresceu forte. Influência dos “speakers” da época, especialmente Jorge Curi e Waldir Amaral, reis do rádio. No meu quarto, com porta trancada, no futebol de botão, imitava um e outro em tom baixo para que não fosse descoberto pela família e vizinhos. Eu era craque em timidez.
Foi então que a Rua do Urubu virou minha escola de narração. Ali, no silêncio quase sepulcral, soltava a voz sem risco e medo de ser ouvido. Quase ninguém passava por aquelas bandas além das águas mansas do Bengalas e dos urubus em busca de carniça. Às cinco horas da tarde, quase noite na velha Nova Friburgo, a bola rolava goela afora.
De praxe, meus jogos começavam com o Flamengo perdendo por um, dois ou até três gols de diferença. Ou seja, nunca narrei gol adversário. Nos primeiros metros de trilha, com a voz ainda em aquecimento, tudo começava a mudar.
Arilson chega à linha fundo, cruza na área, cabeceia Dionísio… é gol!
O grito de gol dependia de quem eu incorporara naquele momento. Se fosse Waldir Amaral, era breve, solene, comedido. E seguido do bordão “tem peixe na rede do Fluminense”. Ou do Vasco, Botafogo, América… Se fosse Jorge Curi, o grito era alongado, possante, quase até esgotar o estoque de ar dos pulmões daquele moleque franzino. Como ele bradava: golaço-aço-aço!
Atira Fio, no ângulo, é gol!
Quando chegava ao meio do caminho de casa, o Flamengo empatava. Um pé de ameixa, quase sempre carregado de fruta azeda, era testemunha. A poucos metros da ponte de acesso à minha rua, quando a modesta casa número 19 da Henrique Zamith já podia ser vista em meio ao matagal, vinha a virada do meu time de coração. E foi num Fla x Flu empatado em 2 a 2 até aquele ponto que desisti da carreira de narrador. Acho que levava algum jeito.
Doval recebe de Liminha, invade a área, dribla o goleiro, vai marcar…
Nesse lance, aos 45 minutos do segundo tempo, meu destino foi traçado. Do nada, de um nada misterioso à la Hitchcock, uma sombra humana surge a meu lado com a velocidade de um ponta-direita e uma mão apoia-se sobre meu ombro. Subitamente, ouço a pergunta que não quer calar. Mas que me calou para sempre.
– Quanto está esse jogo aí?
Arrepiei da cabeça aos pés. Acho que até morri, embora tivesse saído correndo de vergonha. Nunca soube quem era aquele intruso no meu clássico no Maracanã de minhas ilusões. Talvez tenha sido um enviado de Deus a dizer: seu caminho é outro, rapaz! O Fla x Flu, enfim, terminou empatado. O gol de Doval, o Diabo Loiro, como era conhecido, nunca saiu de minha garganta. Passei a voltar para casa, com meus colegas, na algazarra que a minha timidez permitia, por uma outra rua, bem movimentada.
Há dias, quando caminhava na orla da Boa Viagem, em Niterói, vi e ouvi um jovem que também narrava um lance de um jogo imaginário. Não sei que partida era, não reconheci os jogadores. Mas ele levava jeito de narrador. Achei graça, apertei o passo e passei ao largo. Não nego que tive vontade de fazer com ele o que fizeram comigo. Mas preferi deixar a bola rolar no gramado de sua imaginação.