Cidade de origem de músicos que se consagraram mundo afora, Niterói, nem todos sabem, pode ser considerada, também, uma espécie de “esconderijo”, reduto de compositores e cantores antes da fama ou em períodos de recolhimento artístico.
Roberto Carlos, por exemplo, morou no bairro do Fonseca em 1956, antes de completar 15 anos de idade. Já sonhava com a música e veio para a casa da tia Jovina Moreira, deixando de vez a cidade natal de Cachoeiro de Itapemirim (Espírito Santo).
A passagem de Roberto Carlos por Niterói é pouco conhecida. Quem a revelou foi o biógrafo Paulo César de Araújo, em “Roberto Carlos em detalhes”, livro lançado em 2006. O futuro Rei chegou a estudar no Colégio Brasil, instalado no palacete que, por falar em nobreza, foi construído em meados do século 19 pelo barão de São João de Icaraí. O colégio fechou em 1985. Há três anos, a secular edificação foi destruída por incêndio provocado por um balão.
A história da música brasileira registra como nascidos em Niterói o sambista pioneiro Ismael Silva (1905-1978); o cantor Cauby Peixoto (1931-2016); o inovador pianista Sérgio Mendes, radicado nos Estados Unidos há quase 60 anos; a cantora e compositora Zélia Duncan; Baby do Brasil, que nos Novos Bahianos era Baby Consuelo; o “príncipe” Ronnie Von; a intérprete Marília Medalha, e tantos mais ainda hoje por aqui, como Byafra e Dalto.
Só que a vinda de artistas de fora para Niterói não é tão conhecida assim. Pouca gente soube que, antes de desaparecer, o compositor cearense Belchior (1946-2017) passou 20 dias em um hotel na Rua Belisário Augusto, em Icaraí. E que, ao vir de Bom Jesus da Lapa (Bahia), Guttemberg Guarabyra, antes de ganhar o 2º Festival Internacional da Canção com “Margarida” (1967), viveu no Barreto. Ele contou isso quando, com o parceiro Luiz Carlos Sá, fez em 1978 um show no Teatro Municipal de Niterói. Os artistas formam ainda a dupla Sá & Guarabyra.
Mais famosa é a história da gênese do clássico “Clube da Esquina”, álbum duplo lançado em 1972 por Milton Nascimento e o estreante Lô Borges. Os cantores e compositores mineiros passaram alguns meses do ano anterior em uma casa na areia da Prainha de Piratininga. Com eles estava o iniciante Beto Guedes, já parceiro de Lô em canções como “Feira Moderna”, letrada por Fernando Brant (1946-2015).
Ao que parece a casa não existe mais. Nem sequer o lugar é conhecido hoje pelo nome da época, Mar Azul. Pois foi ali que Milton e Lô, em parceria com os letristas-visitantes Ronaldo Bastos (niteroiense), Márcio Borges (irmão de Lô) e Brant compuseram o repertório do disco.
Nasceram em Mar Azul canções memoráveis, como “Nuvem Cigana”, de Lô e Ronaldo. Milton já disse que 90% do repertório do LP foram compostos na casa de Piratininga. “Clube da Esquina” reúne, entre outras músicas de sucesso, “Trem Azul” (Lô-Ronaldo), “Um Girassol da Cor de seu Cabelo” (Lô-Márcio), “Cais” (Milton-Ronaldo), “San Vicente” (Milton-Brant) e “Paisagem da Janela” (Lô-Brant).
Já o grupo vocal MPB-4 costuma ser apontado como originário de Niterói. Não deixa de ser, porque seus quatro fundadores se conheceram na Universidade Federal Fluminense (UFF). Mas só Aquiles é da cidade. Os demais vieram das regiões norte e noroeste fluminense: Miltinho, de Campos dos Goytacases; Ruy Faria (1937-2018), de Cambuci; e Magro Waghabi (1943-2012), de Itaocara.
Por fim, as vindas do poeta, compositor e cantor Vinícius de Moraes (1913-1980) a Niterói estão registradas em “Balada do Cavalão”, poema de 1946 em que cita o morro entre Icaraí e São Francisco, bairro onde se hospedava na casa do pintor Carlos Leão (1906-1983).
No curta-metragem “Balada do Cavalão – A Poesia que Desconhecemos”, o cineasta niteroiense Mateus Cardoso mostra que Vinícius frequentava um espaço de hipismo em Charitas. Naquele local cresceu uma favela, hoje batizada de Hípica, na base do Morro do Preventório.
Leia a “Balada do Cavalão”, de Vinícius de Moraes:
Balada do Cavalão
A tarde morre bem tarde
No morro do Cavalão…
Tem um poder de sossego.
Dentro do meu coração
Quanto sangue derramado!
Balança, rede, balança…
Susana deixou minha alma
Numa grande confusão
Seu berço ficou vazio
No morro do Cavalão:
Pequena estrela da tarde.
Ah, gosto da minha vida
Sangue da minha paixão!
Levou o anjo o outro anjo
Da saudade de seu pai
Susana foi de avião
Com quinze dias de idade
Batendo todos os recordes!
Que tarde que a tarde cai!
Poeta, diz teu anseio
Que o santo te satisfaz:
Queria fazer mais um filho
Queria tanto ser pai!
Voam cardumes de aves
No cristal rosa do ar.
Vontade de ser levado
Pelas correntes do mar
Para um grande mar de sangue!
E a vida passa depressa
No morro do Cavalão
Entre tantas flores, tantas
Flores tontas, parasitas
Parasitas da nação.
Quanta garrafa vazia
Quanto limão pelo chão!
Menina, me diz um verso
Bem cheio de ingratidão?
– Era uma vez um poeta
No morro do Cavalão
Tantas fez que a dor-de-corno
Bateu com ele no chão
Arrastou ele nas pedras
Espremeu seu coração
Que pensa usted que saiu?
Saiu cachaça e limão.
Susana nasceu morena
E é Mello Moraes também:
É minha filha pequena
Tão boa de querer bem!
Oh, Saco de São Francisco
Que eu avisto a cavaleiro
Do morro do Cavalão!
(O Saco de São Francisco
Xavier não chama não
Há de ser sempre de Assis:
São Francisco Xavier
É nome de uma estação)
Onde está minha alegria
Meus amores onde estão?
A casa das mil janelas
É a casa do meu irmão
Lá dentro me esperam elas
Que dormem cedo com medo
Da trinca do Cavalão.
Balança, rede, balança…