Quieto no canto dele, o compositor Geraldo Vandré completará 90 anos em 12 de setembro. Até agora a imprensa, que adora efemérides, não se tocou. Todos os colegas de festivais de Vandré (Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Milton Nascimento, para citar os mais famosos) são festejados a cada aniversário. Poucos sabem disso, mas Vandré tinha um grande amigo niteroiense: Cláudio José da Matta, oficial de Marinha. Foi por intermédio de Cláudio que conheci o recluso autor de clássicos como ”Disparada” (com Theo de Barros) e “Pra não dizer que não falei de flores”.
Vandré foi o entrevistado que não consegui entrevistar em 42 anos de jornalismo. Passei uma noite conversando com ele, que contou um monte de histórias, gargalhou, cantou, tocou violão, mas não autorizou a entrevista.
O encontro foi na residência oficial do capitão-dos-portos de Salvador, cargo então exercido por Cláudio, capitão-de-mar-e-guerra da Marinha. Eu estava na Bahia em fins de setembro e início de outubro de 1990, enviado pela “Folha de S. Paulo” para cobrir a eleição estadual.
No dia em que cheguei a Salvador entrevistei o senador Antônio Carlos Magalhães, candidato favoritíssimo na eleição de governador. Acabaria eleito dias depois em primeiro turno. Após enviar a São Paulo o texto sobre ACM, liguei para Cláudio, grande amigo e irmão do meu padrinho, Fernando da Matta.
Cláudio me disse: “Passa aqui hoje à noite que vou te apresentar ao Geraldo Vandré”. Eu sabia que eles eram próximos. Chamei o fotógrafo que me acompanhava, Lula Marques, enviado pela Sucursal de Brasília.
“Você tá de brincadeira! Geraldo Vandré, aquele da música ‘caminhando e cantando’ [trecho de ‘Pra não dizer que não falei de flores’]? O cara é meu ídolo!”
Combinamos tentar entrevistar o reservado artista. Seria algo até então inédito. Apresentados pelo Cláudio, Vandré foi reticente. Não aceitou falar formalmente “às Folhas”, forma com que se referia ao jornal e à “Folha da Tarde”, do mesmo grupo empresarial. Mas respondeu sobre tudo, não recusou assunto.
Ele disse que deixou de se apresentar e a gravar discos porque não concordava com os rumos do país e da música. Negou que tenha sido torturado pelo regime militar. Fez grandes elogios à Aeronáutica e até cantou “Fabiana”, canção que compusera recentemente em homenagem à FAB.
Quando vinha ao Rio, contou que se hospedava no Clube da Aeronáutica, pertinho da Praça 15. Morava em São Paulo, onde tinha uma sala na Prefeitura, então conduzida pela amiga Luiza Erundina, paraibana como ele. Era assessor da prefeita.
Também passava temporadas em Teresópolis, onde moravam os pais, o médico José Vandregísilo e Marta. Vandré é um diminutivo do nome do pai. O nome de batismo dele é Geraldo Pedrosa de Araújo Dias.
Naquela noite, Vandré estava com um violão. E cantou pra gente. Depois de ‘Pra não dizer que não falei de flores’, lembro que disse: “É coisa simples, são dois acordes só”.
Fracassada a tentativa de entrevista, passei a insistir que escrevesse um artigo para a “Folha de S. Paulo” sobre um tema qualquer. Aí ele já demonstrou mais interesse, mas não garantiu nada.
Eu e Lula voltamos para o hotel de madrugada. Por volta das 7h, o telefone toca no quarto. “É da recepção. Tem um senhor aqui que quer lhe falar”. “Quem é?”, perguntei. “Seu Geraldo”, afirmou o recepcionista.
Desci logo. Era Vandré. Convidei-o para o café da manhã. Conversamos mais no restaurante do hotel. Em determinado momento, ele abriu uma bolsa e me passou o artigo que acabara de escrever.No texto, fazia comentários e observações curiosas, especialmente sobre política.
Quando voltei ao Rio, onde trabalhava, mostrei o artigo para a chefia da Sucursal. Notei que não houve muito entusiasmo, mas o texto seguiu para a sede em São Paulo. Acabou saindo sem muito destaque umas duas semanas depois.
Nunca mais encontrei Geraldo Vandré. Há alguns anos ele deu uma entrevista para a GloboNews, mas não assisti, nem lembro a razão. Cláudio já morreu, mas teve tempo de assistir, em março de 2018, como convidado, ao concerto que Vandré apresentou em João Pessoa, sua cidade natal. Foi o reencontro do artista com o palco.
Perdi totalmente o contato com Lula Marques, mas guardo com carinho as fotos em que ele registrou aquele tão inusitado encontro nas dependências da Marinha no Morro do Gavazza, área nobre de Salvador, bem em frente ao cartão postal do Farol da Barra.